Para se ganhar alguma perspectiva sobre os elementos que têm conformado o espaço da edição independente entre nós teríamos de dar uns bons passos atrás, de tal modo que o risco é sempre o de nos perdermos no contexto, irmos atrás de outra coisa, dando-nos conta de que não há um só fio para a meada, mas muitos, e que, tantas vezes, é em certos juízos proféticos de autores que nos parecem distantes que encontramos um diagnóstico atento e escrupuloso da condição em que nos vemos enquadrados. Como escreve Robert Musil, numa passagem de “O Homem sem Qualidades”, “hoje, numa época em que se misturam todos os discursos, em que profetas e charlatães usam as mesmas fórmulas com mínimas diferenças, cujo percurso nenhuma pessoa ocupada tem tempo de investigar, num tempo em que as redacções dos jornais são constantemente incomodadas por gente que acha que é um génio, é muito difícil ajuizar do valor de um homem ou de uma ideia. Temos de nos deixar guiar pelo ouvido para podermos perceber se os rumores, os sussurros e o raspar de pés diante da porta da redacção são suficientemente fortes para poderem ser admitidos como voz da ‘polis’”.
Em grande medida, com a emergência das redes sociais neste século e a erosão do papel dos intermediários, os próprios órgãos de comunicação de massas viram-se capturados e reconduzidos à condição de satélites que procuram preservar alguma influência nessa caótica esfera de consumo de conteúdos, os quais, dada a sua saturação, devem suceder-se a um ritmo alucinante e corresponder crescentemente aos impulsos, excitações e afecções que mobilizam de forma imediata a atenção. Deste modo, e com a pressão concentracionária dos modelos económicos, este imediatismo vingou e os circuitos de informação foram-se atrofiando e vendo-se obrigados a trair a sua função cultural e crítica, ficando-se por um regime editorialista que não faz outra coisa senão acompanhar e corresponder a esses impulsos e fornecer uma certa tipologia que corresponde às sensibilidades irritadas que permitem àquela esfera propagá-las com pequenas variações numa escala cada vez menor, até àqueles que ficam a falar sozinhos, mas que não deixam de usar desses tiques de quem nunca atraiçoa a sua compulsão dramática.
Também assim, entre o muito que aí vai de figuras, figurões e figurantes que se reclamam editores, se formos ver o que fazem eles pelos textos, pelo conhecimento dos autores, esse afincado trabalho de os trazer à conversa, à relação crítica, damo-nos conta de que não passam afinal de receptadores, candongueiros. E neste contexto contemporâneo em que os meios de divulgação e os ditos suportes artísticos vêm em legiões, depois falta-lhes a glória de fazer mundo, mas atamancam-se numas feiras e organizam-se uns escaparates, até com o apoio dos fundos imobiliários, com o fito de ver valorizadas certas zonas, e lá vem o pagode dos fazedores desses formatos impressos, tantos deles tomados por rabiscos, a bonecada, os cartazes, as fanzines e demais bugigangas presunçosas, alegrando-se muito do seu empenho, desses quartéis sem hierarquia, mas que depois é a mesquinharia que se sabe. Aquilo que mais agrada a quem passa por ali a ver se lhe entra alguma coisa no olho, é poder dizer que participou nessa espécie de safari, mergulhando no coração das trevas desse campo desagregado cuja marginalização ostensiva e a pouca ou nenhuma audiência faz deles fenómenos tantas vezes de pura jactância, sempre com aquela subversão bem-comportada que passa mais por quezílias lá uns com os outros. Daí que em vez de uma geração delapidada se possa antes falar numa que se amofinou nesses ambientes tendentes a descender em desvarios um tanto inócuos, montando um território escalavrado que não tem qualquer leitura para quem está de fora, senão como uma montra para se exporem os sinais dessa demência ociosa, as facas que de tanto serem afiadas continuam rombas e que ficam ali prometidas a delitos que se perdem nos efeitos de salivação. No fundo, é uma margem improdutiva para esse teatro de umas selvajarias controladas e inofensivas. De resto, nenhuma obra é proposta à circulação, nada que emerja e represente a suposta função transgressora no sentido daquilo que vieram a ser as vanguardas de há um século. Não passa, por isso, senão de manifestações que, sob aquela constelação fixada com cuspo do anarco-surrealismo, vivem ali no seu pseudo-espontaneísmo, dando uma certa cobertura à pretensão de diversidade de um meio cultural tão pretensamente exuberante quanto estéril ou até decrépito. Mas isto permite, pelo menos, ir guisando mansamente e apurando essas cambiantes delicadas de um registo de sufoco, enquanto se vai falando de uma suposta renovação geracional, com outros nomes que, na sua ineficácia, pelo menos, se mostram muito orgulhosos com o compromisso de produzir e distribuir eles próprios o seu trabalho em vez de se ficarem pelo circuito habitual e em linha com o regime institucional ou com a dinâmica mais geral dos consumos.
Entre os inúmeros meios à disposição, vamos encontrar esses formatos impressos que muitas vezes não cumprem mais nenhuma função senão a de assinalar essa obstinação nostálgica pelas técnicas tradicionais de impressão mas também pelos livros de artista que encontram as suas origens na arte conceptual, na poesia concreta e nessa linha que, demarcando-se da tão nobre e bafienta tradição bibliófila, assumia uma acção impugnadora da nossa mitologia cultural vigente, e que tem claramente em Vitor Silva Tavares um antepassado totémico. Havia uma tranquila radicalidade na sua atitude que não tem sido encontrada noutros lados. A persistência de uns quantos já não tem como ensejo a vontade de sacudir a cidade, e também não há forma de se estabelecer um qualquer pacto de convivência e cooperação mais profícua, desde logo porque, se todos estão condenados a uma relação de vizinhança (que sentem que de algum modo os apouca, uma vez que nos seus delírios têm pretensões de estarem isolados), vão interagindo de forma mais ou menos fria, ou desprezando-se abertamente, numa intriga amarga, cansativa e vazia. E se hoje já não há propriamente ruas onde tudo convirja, nem cafés atraindo aquela fauna estrepitosa que ficava ali procurando “o sol da vida entre os fantasmas do real”, como dizia Cardoso Pires, resta como consolo essas beatarias que estão salpicadas um pouco por todo o lado, como na Rua Anchieta, em Lisboa, ao lado da livraria que enverga o título da mais antiga do mundo e se envergonha naquele azucrinante ambiente de corredor aeroportuário para o corrupio da turistagem. No fundo, parece que a nossa vida cultural não consegue senão produzir a cópia do culto católico, e não mais soube sequer encomendar-se de forma profana elencos ou cenas com algum gozo pelo massacre ou sequer pela contestação, refúgios ao menos para o exercício de sobressaltos ou de um fascínio sincero por “um real captado na sua face quotidianamente mítica, irreal à força de enraizamento concreto no imaginário ambulante do nosso próprio, único, inexorável e eterno tempo” (Eduardo Lourenço). E isto de modo a cativar os espíritos mais indómitos que por aí se despenham, capturando algo menos fastidioso que esse ambiente em que tudo se coagula numa retórica de movimentos e pausas irritantes, sem chegarmos a ver mundos e ouvir vozes até ali interditas.
Assim, vemo-nos uma e outra vez, por aqui, como se diz que acontece em toda a parte, entregues a “um exército inumerável de pedantes armados de ignorância e despojados de talento”, segundo um memorável exercício de reconhecimento de Joris-Karl Huysmans, nessa obra-prima malévola que é “Ao Arrepio”, e onde nos diz que, para cúmulo da má sorte, depois também as beatas se sentem encorajadas, resolvendo pôr-se também ao barulho e acabando por ver a sua palraria miserável exaltada como obras de génio tanto em sacristias mal-amanhadas como em salões imprudentes. Parece que vamos, de um modo ou de outro, sendo reconduzidos a um beco sem saída, e isto quando se esperava que o próprio desespero – “abolida a nostalgia de todas as infâncias, abolida a miragem de um futuro onde nunca entraremos” (E. Lourenço) – pudesse servir para acicatar uma arte verdadeiramente profana e contrária a esse cálculo que nos deixou soterrados debaixo de um gigantesco amontoado de insipidezes. Ora, para continuar com a imagem do tal ambiente da catequese, que nos devolve sempre a rituais que suportamos inexplicavelmente no seu aborrecimento esmagador e inamovível, vale a pena ler mais algumas das impressões apuradas pela pena de Huysmans, notando a forma como o protagonista daquele romance retirava de todo esse arranjo medíocre “a ideia de um eco aprisionado numa capela onde toda uma série de gente afectada e pia resmungava as suas rezas, perguntando-se, em voz baixa, por novidades, repetindo com ar misterioso e profundo uns poucos de lugares-comuns sobre política, sobre previsões do barómetro sobre o estado actual do clima”.
Este balanço todo, em lugar de um mero gozo em produzir sucessivas declarações de óbito para uma mesma realidade nauseabunda, serve-nos para impor um vinco nesta paisagem, uma vez que, recentemente, uma pequena livraria independente com a quilha em seco no bairro de Arroios tem feito um esforço notável para levar a cabo um exame geral que não insista nos deslastrados tropismos de sempre, cheios de frivolidades morais e aspirações lorpas. A Tigre de Papel, com a condução de Fernando Ramalho, tem convidado os editores a participarem numa reflexão sobre o estado da arte, e assim, no que poderiam ser os trabalhos preparatórios para se reconhecer os projectos e os agentes em campo, e isto em contramão face a esses regimes de palhaços que ajudam à festa nas feiras, tem permitido que os editores expliquem os seus propósitos, exponham as suas feridas mais incuráveis, mais vivas, falem dos títulos que têm marcado o seu percurso, das dificuldades que enfrentam na tentativa de fazer chegar os seus livros a um público tão vasto quanto possível, mas também desses enguiços de amores não correspondidos, do desafio de criar uma dinâmica da leitura enquanto acto social. E isto sem cair logo nesse embaraçoso regime das indulgentes lealdades que resultam como uma forma de caridade prestada pelos mandarins do nosso regime mediático.
Numa das últimas sessões, Ramalho recebeu o casal que dirige as Edições do Saguão, Mariana Pinto dos Santos e Rui Miguel Ribeiro, que têm construído uma das mais discretas, congruentes e heteróclitas colecções no nosso espaço editorial, e isto segundo uma fisiologia que leva a que entre os diversos títulos se vá enunciando, sem a menor fanfarra e sem que os próprios se destinem a uma função de publicitários, a uma ténue orientação política, isto segundo eles mesmos tiveram oportunidade de explicar no passado dia 30 de junho.
A editora, nascida em 2017, recuperou alguns títulos já editados pela Pianola, projecto que, além de Mariana e Rui, integrava ainda outros elementos, sendo uma das chancelas editoriais integradas no Homem do Saco (atelier de tipografia, serigrafia e edição com oficina em Lisboa), o qual alberga ainda vários outros projectos seja de cariz mais editorial ou gráfico. Além do enorme cuidado posto nas edições enquanto objecto, não condenando os seus autores a esse regime ordinário que surge como reflexo das exigências da impiedosa forma como os livros hoje são postos a circular e sujeitos a todo o tipo de destratos, em vez de uma colecção que se rege por um padrão mais ou menos estável, e com os textos impressos em papel-farrapo, há um evidente esmero na selecção dos materiais e na composição de todo o aparato que serve para enquadrar e interpretar o conteúdo, seja este de ordem gráfica seja de ordem informativa. O primeiro livro publicado com o selo das Edições do Saguão foi a tradução de "A Balada do Velho Marinheiro", de Coleridge, por Alberto Pimenta, um autor que tinha já publicado também na Pianola, e viu, entretanto, outros três originais publicados já neste selo: “Pensar Depois no Caminho” (que tendo saído em maio de 2018 está de momento esgotado), “Zombo” (que viu sair a segunda edição em março de 2020) e “Ilhíada” (editado em março de 2021). Outra das colaborações deste autor que transitou do catálogo do &etc. de Silva Tavares para esta editora, é a tradução dos “66 Poemas” de Hans Magnus Enzensberger, editada em outubro de 2019.
Na sessão, o tom foi marcado pelos pormenores lacónicos e precisos sobre o trabalho que têm vindo a fazer, e Rui Miguel Ribeiro insistiu a certa altura em vincar aquilo que se percebe logo que um livro desta editora nos chega às mãos: “Quando pensamos o livro, não estamos a falar só do conteúdo, mas a referir-nos a todos os elementos que compõem o livro: estamos a falar da capa, do papel que é usado, estamos a falar da maneira como é encadernado, das informações que o livro transporta na sua apresentação. Não descuramos nenhuma dessas componentes. E vamos aprendendo como trabalhar cada uma delas. Na verdade, o próprio interesse pelo livro faz-se de uma aprendizagem.” De resto, os editores escusaram-se a entrar num discurso mais aberto e panorâmico, sem, em qualquer momento, assumirem o facciosismo e o tom de desprezo ou ignorância que foi a tónica da intervenção de Helena Vieira na sessão anterior deste ciclo de “Conversas com Editores”. Nessa sessão, que acabou por incorrer em todos os vícios que explicam o motivo por que este tipo de iniciativas raramente conseguem apelar a uma audiência que não seja a das costumeiras aves de cemitério, vimos a editora da Mariposa Azual mostrar a cárie sempre crescente das suas impressões bastante vagas e trapalhonas sobre projectos vizinhos que, além de ficarem por identificar, esta, depois, se ufanava de não conhecer. Fomos assistindo assim a uma representação paródica dessa figura bastante comum no meio e que se caracteriza por uma sensibilidade irritada quando não ressentida, tornada facilmente azeda e atreita à auto-ilusão, ludibriando os seus pensamentos uns com os outros para se engrandecer a si mesma, vendo-se como o exemplo audaz de quem segura o leme da alegria possível e enfrenta os infortúnios e indignidades num ambiente minado não só pela avidez das cadeias do lucro como pela insuficiência dos tantos espíritos que vivem engalfinhados em guerras inúteis.
E, no entanto, ali estava a nossa esperança enredada nesse mesmo esquema de intolerâncias e incompreensões, incapaz de manifestar encanto fosse pelo que fosse ou de escapar à resmunguice desgastante de um espírito cansado de operar no vazio. Quanto àquela verve indómita, o talento áspero, desvairado que se espera dos editores, disso não houve o menor sinal. E mesmo na admiração assumida por um projecto ou outro o que ficou mais foi aquela sensação de promiscuidade ou até de incesto. E este retrato, que não deixa de merecer destaque por abranger nele a atitude de vários dos chamados “agentes culturais”, explica também porque o gozo de sustentar florações mirabolantes parece ter os dias contados no campo editorial. Por mais obstinada, confusa, limitada que tenha sido a edição de livros no nosso país nos últimos anos, até este século tinha conseguido defender o seu espaço, encontrar um público que a valorizava e que estabelecia com ela relações de cumplicidade fortes, permitindo ao editor ir afinando o seu míster, desenvolvendo um perfil, sem deixar de cometer bastantes erros pelo caminho até chegar a combinações criteriosamente pensadas, arriscando e abrindo brechas de forma a que, mesmo nos géneros minoritários, como o ensaio, a poesia, o teatro ou até os contos, fossem surgindo propostas irreverentes, impetuosas, capazes de oxigenar o organismo literário.
Hoje, pelo contrário, vem triunfando esse género de ficção que é gémeo da reportagem que corre nos canais mediáticos, guiando-se pelas convenções universalistas, apuradas como fórmulas para dar o que se espera que dêem, e os autores que as produzem revezam-se nas obras de expansão do mesmo projecto global. De fora, vão ficando todos aqueles cuja visão fere essa ordem razoável, até mesmo pragmática e realista. Autores que trazem pedras para os textos, essas “palavras-urtigas”, como lhes chamava Ernesto Sampaio, criando à margem dessa “novelística de ‘senhoritos’ dominante”. O que essas obras cada vez mais raras ainda fazem é ferir através das suas representações o próprio mundo que descrevem, tornando-o de novo disponível para que ele mesmo se coloque em causa. Assim, a realidade mental e social de um país obtém por fim um reflexo de si mesma, e pode então lutar contra essa flutuante e vaga imagem que não lhe dá hipótese de se desembaraçar dos seus complexos e preconceitos, das noções tão amplificadas quanto estéreis, da estreiteza de uma psicologia mórbida que reconduz tudo aos mesmos motivos banais.
Como antídoto, aquele que, a par de Eduardo Lourenço, foi o mais engenhoso e sofisticado crítico na sondagem dos aspectos mais angustiantes das tensões que marcaram as últimas décadas do século passado, sinalizava a necessidade desses “acentos de graça dolorosa, arrebatamento, sede, ardor, abandono, pequenas artimanhas, sinceridade, grandes mentiras, calão e literatura duvidosa, frenesi e complacência” que ele encontrava em autores como Manuel da Silva Ramos, e que ilustram aquela máxima de Élie Faure quando diz que "as obras mais importantes se assemelham a uma vingança do espírito e do coração martirizados pelo hábito universal, oferecendo-se aos olhos do vulgo como um paradoxo completo".
Ao publicar ensaios de Silvina Rodrigues Lopes e Maria Filomena Molder, a poesia tão acutilante e mordaz de Alberto Pimenta, entre mais um punhado de autores que se debatem com esse horizonte paralisante do regime decorativo a que a literatura se destinou, um selo como as Edições do Saguão não se preocupa em vir colmatar lacunas nem explorar certo filão, mas consegue marcar uma posição forte pela forma como se exclui e se extrai permanentemente de outras lógicas comuns. E Mariana Pinto dos Santos fez questão de citar Silva Tavares quando este inscrevia a &etc. numa linha que em vez de fazer aquela gracinha de se considerar marginal, adensando esse regime de uma profanidade que, afinal, apenas reforça o campo gravitacional face a um mesmo centro, preferia a sorte de uma existência paralela, adequando-se, assim, a uma condição que, mesmo quando resiste, não o faz segundo aquele número sacrificial e espalhafatoso de quem se contorce exageradamente para fazer ver e ouvir a sua agonia. Aqui, pelo contrário, há uma espécie de melodia que se mostra empenhada em descobrir-se à medida que avança, sem estar de olhos presos numa pauta para redundar nas mesmas modinhas que levam o público ao êxtase de as trautear a partir do momento em que estas se apossam dele.
Ao assumir à partida um desejo de publicar “pouco, mas bem”, as Edições do Saguão deixam logo claro que não lhes interessa desenvolver uma receita ou uma qualquer mistela que possa depois ser destinada a essas mercearias e bazares que têm livros nas estantes como outras têm enlatados e frutos secos. E é aqui que entra um sentido de estratégia que, não se confundindo com uma moral, tem um alcance que está bem para lá daquele que define a literatura efémera do nosso tempo. Esta editora é provavelmente a única entre nós que se pode reclamar como herdeira daquele ideal que norteou a actividade do príncipe da edição italiana Roberto Calasso, e que a recebeu do seu mentor Roberto Bazlen, e que passava pela ideia de trazer a lume “livros únicos”, num sentido de serem obras que, escapando ao regime impositivo das grandes obras e dos clássicos que um leitor não pode deixar de ler, estavam mais de acordo com uma harmonia inusitada, com um vigor que não está ali para ser compreendido por todos, não fede a fenol, mas representa essas compreensões mais oblíquas, estabelecendo um quadro que escolhe os seus leitores, os que se dão o tempo de seguir um percurso retirado das vias principais, detendo-se em obras que são elas mesmas acasos fulgurantes, reunidas assim através de uma minuciosa triagem, tantas vezes criando uma espécie de correspondência entre espíritos subtis e atormentados. Calasso remete-nos para o livro que encabeçou a sua Biblioteca: “L’Altra Parte”, de Alfred Kubin. “O único romance de um não-romancista. Livro que se lê como se entrássemos e permanecêssemos numa poderosa alucinação. Livro que foi escrito na envolvência de um delírio que durou três meses. Nada de semelhante, na vida de Kubin, antes daquele momento; nada de semelhante depois. O romance coincide perfeitamente com algo que aconteceu, uma única vez, ao autor”, esclarece Calasso no ensaio que abre “O Cunho do Editor”, que acaba de ser editado por cá, nas Edições 70.
Rui Miguel Ribeiro mostrou o seu exemplar, na edição original, deste livro de Calasso, acolhendo esta filiação e referindo-se a livros que foram publicados pelas Edições do Saguão e que se adequam a este regime de obras que, longe de serem as principais de um autor, são muitas vezes esses jubilosos acidentes de percurso que acabam por revelar outros sintomas e abrir caminhos secundários que agitam como heresias esse quadro dos géneros literários, trazendo esse elemento de desconfiança essencial para testar uma fé que se torna tão mais inabalável quanto mais medíocres e repetitivas são as suas manifestações.
Na sua pronúncia inimitável, estas obras que surgem de forma inesperada relembram-nos esse elemento essencial da literatura que deve sempre perturbar as nossas certezas. Este ensejo de ir buscando obras dotadas de um encanto singular, um deslumbramento que nos mexe no fundo das entranhas, também obriga o editor a desfazer-se daquela postura de um sectário endurecido, que tantas vezes degenera numa forma de paternalismo insuportável, valendo-se de uma qualquer receita político-ideológica e de uma revolução pronta-a-comer que o leitor só tem mesmo de empinar.
Em sentido diverso, Rui Miguel Ribeiro explicava na dita sessão o seu comprometimento com essas obras improváveis, e que começam por provocar o leitor causando-lhe um certo desconcerto, baralhando as expectativas: “Nós editámos agora um livro que parece ser uma excentricidade, o Zara, de Antero de Quental, uma que reúne todas as traduções que foram feitas de um poema seu de duas quadras, que tem uma história longa e não vou agora maçar-vos com ela, mas está ali contida, naquelas 160 páginas, uma questão política da época e que ressoa até aos nossos dias, que se prende à uniformização da língua, sendo o poema uma resposta a essa tentativa da língua nacional naquela altura, mas, como sabemos as línguas estão sujeitas a outras formas de uniformização, e também aos constrangimentos da circulação. Depois há a questão das traduções, sejam boas ou más, e da forma como também elas nos ensinam qualquer coisa, trazem à luz certos aspectos que contribuem para o nosso esforço de interpretar um texto. Nesta edição poliglota, e com as várias traduções que ali surgem de um mesmo poema, às tantas a nossa abordagem à leitura de um poema e a interpretação das variantes amplifica o seu significado, e, assim, aquele livro, que é um objecto estranho, aponta em duas direcções que se interligam. Assim, quando hoje se fala dos livros digitais, em que o que está em causa é que há apenas em circulação uma versão do mesmo livro, ou quando temos um editor [Francisco Vale] a insurgir-se contra as traduções que supostamente teriam sido realizadas com recurso ao ChatGPT ou outras dessas ferramentas de inteligência artificial, o erro aqui é pensar que deve existir uma tradução única, uma tradução definitiva… Isso não existe, e é preciso considerar, pelo contrário, que a tradução faz parte de um movimento de multiplicação, e que quando queremos chegar a um texto muitas vezes a melhor forma é servirmo-nos de várias traduções. (…) Ao publicarmos o Zara, se te viesse falar nesta ideia, serias levado a pensar que o livro venderia 10 ou 15 exemplares, que seria uma excentricidade para alguns bibliófilos, mas na Feira do Livro foi um dos livros que mais vendemos. É claro que, para que isso aconteça temos de falar sobre ele, e, portanto, isso compromete-nos a nós. E ao editar um livro nós assumimos esse compromisso de falar sobre o livro, transmitir o que nos entusiasmou e os aspectos que o livro confronta. E isso implica ir ao encontro do leitor, muitas vezes através do livreiro.”
Numa altura em que as estatísticas sobre os hábitos de leitura apontam para um fracasso absoluto do ideal da socialização da cultura, e isto quando os tops dos livros exibidos por toda a parte nos devolvem um reflexo desse nível de vulgaridade e estupidez que dá vontade a qualquer leitor de se lançar pela borda fora desta época, sendo assombrado pela nostalgia de séculos que talvez nem tenham passado nem se possa conceber que venham a decorrer, tudo reforça a tese do teórico dos media e ensaísta Boris Groys de que o contrato que os autores estabelecem com a cultura da nossa época é um contrato que se assemelha a uma relação masoquista: “um está obrigado a servir o outro, que reserva para si o direito de o maltratar, assim que se sinta mal servido”, como sintetizava António Guerreiro numa das suas crónicas em que começava por lembrar que “a última vez que em Portugal ouvimos um artista manifestar publicamente o seu desprezo pelo público e afirmar que se subtraía ao seu poder de maneira soberana – e ostensiva – foi quando, na estreia de Branca de Neve, João César Monteiro disse a uma jornalista que ousou evocar tal entidade: “Eu quero que o público português se foda”.
“Obter o favor do público, satisfazer os caprichos do consumidor – eis a base, muito clara, desta relação masoquista”, continua Guerreiro. “Nada é durável, na arte e na literatura, para além do tempo instantâneo da simpatia do público. O autor, diz Groys, tem uma relação com a liberdade, mas com a liberdade do outro, de que ele é escravo: ‘O autor enquanto autor já não é livre, só o outro é livre, só o seu leitor vive sob a condição do amor livre (…). Hoje, só o consumidor pode ser considerado como um filósofo em busca de evidência e de amor. O autor vive para além da evidência e para além do amor’. Isto é, ele é a presa, o objecto – masoquista – de uma experiência da evidência.”
Se a arte moderna, ou de vanguarda, precisava de ser interpretada, de suscitar reacções e ser “comentada”, formando uma unidade inseparável, nos nossos dias, de acordo com Groys, o gosto do público já não se exerce ao de uma interpretação, mas viu-se reconduzido a uma mera adesão que se orienta por aquilo que tem a capacidade de criar uma espécie de consciência aprisionada entre infinitos ecos e reflexos, daí que em lugar do comentário, dessa tentativa de introduzir uma variação de acordo com a posição e o conhecimento do observador, em vez das palavras, busca-se agora um consolo nos números. As próprias emoções devem ser recenseadas, e a sensibilidade pop que daí decorre gosta de ver-se ao espelho desses tops, e estar permanentemente a actualizar e comparar o seu nível de desvio e conformidade com esse quadro. “Assim, aquilo que ergue os autores ao pedestal é exactamente o mesmo que de lá os retira sem dó nem piedade. Para o público, o cânone histórico não tem qualquer valor, já que ele vive aqui e agora, gosta ou não gosta, consome ou não consome. E deixa de ter qualquer relevância a diferença entre público qualificado e público não qualificado, cultivado ou não cultivado”, conclui Guerreiro.
Face a isto, o papel de uma editora independente, e sobretudo de uma que foge ao dinamismo cretinizante deste cerco, passa necessariamente por reaver alguma liberdade, excluindo o público e as suas exigências ou caprichos do processo criativo, reganhando a folga necessária para readquirir alguma distância e formular essa visão tantas vezes fria e até cruel que permite entrar em choque com a nossa época, e alcançar aquelas apoteoses feéricas de outras eras, esse balanço vigoroso que o espírito alcança entre as abjecções atraentes do deboche.