Apreendidos supercarros e contas aos milionários detidos no caso Altice

O gosto por carros de alta cilindrade é bem evidente nos veículos apreendidos.Os empresários são acusados de terem defraudado o erário público em 110 milhões de euros.

Foram apreendidos aos milionários minhotos Armando Pereira e Hernâni Vaz Antunes, detidos há dias no âmbito da Operação Picoas (investigação sobre uma burla gigantesca ao grupo internacional de telecomunicações Altice), 32 carros de alta cilindrada, assim como as contas bancárias de ambos.

Entre as viaturas apreendidas tanto a Pereira, cofundador da Altice, detentor da 19ª maior fortuna em França e certamente o português mais rico da atualidade, como a Antunes, seu amigo e colaborador num alegado esquema de delapidação do património material e financeiro do grupo, figuram um Rolls Royce, vários veículos da marca Ferrari (incluindo um Ferrari Monza), quatro MacLaren Senna, três Lamborghinis e dois Bugattis.

Ambos emigrantes na sua juventude, tanto o cofundador da Altice, nascido na freguesia de Guilhofrei, em Vieira do Minho, como o amigo, natural de uma aldeia próxima de Braga, eram colecionadores de carros de luxo (incluindo os chamados “supercarros” atrás referidos), e as autoridades judiciais justificam a apreensão das viaturas sob a alegação de terem sido adquiridas com as vantagens económicas indevidas que terão resultado dos esquemas ilícitos por eles aplicados no seio do grupo. Um dos MacLaren Senna de Antunes foi notícia em 2020 por se ter incendiado no centro de Braga.

Os investigadores estão a passar a pente fino a forma de aquisição de outro património valioso dos suspeitos, em particular as mansões que ambos os empresários tinham adquirido. Só do seu lado, Armando Pereira possui (em seu nome ou através de testas-de-ferro) mansões em Guilhofrei (a qual, ocupando uma quinta com área superior a 15 hectares, é considerada a maior do Norte do país), Genebra, Málaga e Ilhas Virgens, além de apartamentos de luxo em Nova Iorque (Manhattan) e em Paris (frente ao Sena). A aquisição do apartamento de Nova Iorque, por 70 milhões de dólares (63 milhões de euros), efetuada em nome da sua filha, Gaëlle Pereira, e do genro, Yossi Benchetrit (diretor de compras da Altice USA), foi notícia no ano passado, por ter sido considerada a operação imobiliária mais cara no mercado residencial de Nova Iorque durante 2022.

Quando, na quinta-feira passada, os investigadores do processo, uma investigação da Inspeção Tributária de Braga(AT) e conduzida pelo Ministério Público (MP), fizeram buscas a vários locais relacionados com a atividade de Pereira e Antunes (incluindo as residências de ambos e a sede da Altice na Av. Fontes Pereira de Melo, em Lisboa, que, por se situar em Picoas, deu o nome à operação), encontraram o cofundador da operadora de telecomunicações na mansão de Guilhofrei (onde acabara de regressar para férias, assistindo nessa altura à chegada de uma camião com dois novos supercarros para a sua coleção, um Lamborghini e um Aston Martin), mas o amigo desaparecera ao volante de um Porsche, carro que usava habitualmente para trabalho, e refugiara-se em Espanha. Contudo, Hernâni Antunes acabaria por se entregar às autoridades durante a noite de sábado, numa esquadra da PSP em Matosinhos, e estará a ponto de ser interrogado em Lisboa pelo juiz de instrução Carlos Alexandre, adstrito ao Departamento Central de Investigação e Ação Penal, depois de o mesmo magistrado conduzir a inquirição de Armando Pereira.

 

Uma das filhas detida

Foram também detidos, no âmbito da mesma operação, uma filha do milionário bracarense, Melissa Antunes, titular de várias participações de capital em empresas criadas pelos dois empresários para fazer circular os seus ganhos supostamente ilícitos por paraísos fiscais (fugindo assim ao pagamento de impostos sobre as respetivas fortunas), e o economista Álvaro Gil Loureiro, que terá concebido e montado grande parte do esquema. Tendo sido a primeira pessoa a ser inquirida por Carlos Alexandre, Melissa Antunes atirou para cima do pai toda a responsabilidade pela montagem do circuito empresarial e financeiro tendo sistematicamente respondido: “Não sei, recebi instruções do pai!”.

As suspeitas incidem sobre corrupção no setor privado e fraude fiscal, tendo a extração por Pereira e Antunes de lucros indevidos a partir da atividade da Altice durado, segundo os investigadores, à volta de uma década, com dois eixos de atuação: atuação de tipo mafioso no controlo do fornecimento de bens e serviços à operadora (que em Portugal sucedeu à PT – Portugal Telecom – e é dona da distribuidora MEO) e venda simulada de imóveis em Lisboa antes pertencentes à PT.

Com efeito, aponta o MP que a primeira indicação de suspeitas sobre a intermediação irregular de fornecimentos à Altice remonta a 2013, quando o grupo, com origem em França, fundado pelo marroquino Patrick Drahi, com 70 por cento do capital, e por Armando Pereira, com a restante participação, detinha em Portugal apenas a empresa Cabovisão, sociedade de distribuição de televisão por cabo. No ano anterior, alegadamente contando com a colaboração de Pereira, Antunes tornou-se fornecedor de referência do grupo tanto em Portugal como em diversos outros países europeus, nos EUA e na República Dominicana, tendo podido através dessa ligação – de acordo com a investigação – viciar a seu favor as decisões internas de contratação. E em 2013 formou a empresa HVJA General Trading FZC, com sede em Ajmã, nos Emirados Árabes Unidos (EAU), para fazer a intermediação do fornecimento de bens à Cabovisão, recebendo da empresa portuguesa, por essa via, 687 500 euros e repartindo supostamente os ganhos com o homem de Guilhofrei.

 

Usar influências

Suspeitos de atuarem em conluio, os dois empresários minhotos terão usado a influência conseguida sobre as decisões de contratação da Altice para intervirem junto de outros fornecedores (ou potenciais fornecedores) do grupo, impondo-lhes não só a cobrança de verbas indevidas, pagas a firmas da sua esfera pessoal, caso quisessem vender equipamentos ou prestar serviços à operadora (sob a ameaça de extinção ou não-celebração dos contratos), como a aquisição de supostos trabalhos a sociedades controladas por Hernâni Antunes.

Os lucros ilegais assim obtidos – conclui o MP – seriam repartidos entre Armando Pereira e o amigo e canalizados para sociedades offshore criadas por ambos nos EAU (e em particular no Dubai), com passagem pelo Luxemburgo, pelos EUA, pela República Dominicana ou, no caso português, pela Zona Franca da Madeira (ZFM). O nome dos próprios nunca aparecia associado a essa rede empresarial (sendo apenas os seus beneficiários finais), e daí a utilização de outras pessoas como testas-de-ferro – casos, por exemplo, de Melissa Antunes ou do pai do genro de Armando Pereira, que deu o nome para a criação nos EAU das offshores Sanjy International Commercial e CBIC Business Intermediary, apesar de os investigadores acreditarem que ambas pertencem ao homem da Altice.

Embora continuando a residir em Portugal (mais concretamente em Braga) e a partir daí manter o controlo e a gestão destas sociedades, Hernâni Antunes comunicou em 2014 à AT a mudança do seu domicílio fiscal para o Dubai, tornando-se numa espécie de “exilado fiscal e escapando, assim, aos impostos.

No ano seguinte, o empresário bracarense passou a controlar outra sociedade nos EAU, a Jana General Trading LLC, em cujo composição social aparecia o nome de outra filha sua, Jéssica, assim como de um seu colaborador, José Seborro, alegando contudo os investigadores que todos não eram mais do que meros fiduciários de Hernâni Antunes e de Armando Pereira.

Procedimento idêntico verificou-se em 2016 com outra empresa surgida no mesmo país da Península Arábica, a Global Gold International Commercial Broker LLC, cujas ações eram repartidas entre Pereira e o amigo de Braga, embora ocultados pelos nomes de fiduciários (incluindo, de novo, Jéssica Antunes, que formalmente só detinha 2 por cento do capital).

Já três anos antes, porém, o duo minhoto partilhara, com os mesmos fins, uma sociedade portuguesa, a Shar, SA (antes designada Sousa Castro, Lda.), embora mais uma vez, para ocultar os verdadeiros detentores do seu capital, tivessem sido usados nomes de familiares, como, de novo, Jéssica Antunes ou o irmão do pai, Joaquim Antunes. A partir de 2016, a Shar Holdings, SARL, criada no Luxemburgo e também partilhada pelos dois empresários, tornou-se única detentora do capital da sua homónima nacional.

A atividade de criação de sociedades-veículo, liderada por Hernâni Antunes embora sempre com ocultação do nome dos verdadeiros proprietários e com o recurso a pessoas de confiança como fiduciários, prosseguiu nos anos seguintes, com mais quatro dezenas de empresas – nove das quais sediadas na ZFM, para assim beneficiarem de uma taxa de impostos reduzida de 5 por cento, embora com centro de atividade no continente (e em particular na região de Braga), mantendo apenas um escritório fictício na Madeira. Todas as decisões de gestão nessas sociedades, porém, terão sido sempre tomadas pelo milionário bracarense.

 

A Cisco e a Hauwei

Casos em que surgem como fornecedores da Altice as multinacionais Cisco, com origem nos EUA, e as chinesas Hauwei ou Xaomi, ilustrarão, para os investigadores, o modus operandi da dupla nortenha. Ambos terão conseguido colocar na Shar, SA supostos contratos de desenvolvimento de produtos fornecidos ao grupo Altice pela Cisco, tendo uma empresa representante do grupo norte-americano, a Acinert, com filiais em França e nos EUA, efetuado entre 2017 e 2022 pagamentos de 50 milhões de euros à firma portuguesa supostamente pertencente a Pereira e Antunes. Para tanto, acrescentam os investigadores, terão sido concedidas vantagens indevidas a um quadro da Cisco, Olivier Duquesne, que foi colocado como sócio da Jacques Real Estate. Lda., uma das empresas do universo criado por Hernâni Antunes, constituída em 2019 com uma participação de 10 por cento da Smartdev, também fundada no mesmo ano integrando Gil Loureiro no capital. O MP suspeita assim que a contratação das sociedades de Antunes tenha sido apresentada como condição sinequanon para a Cisco ser fornecedora da Altice.

 

A força dos intermediários

Quanto aos fornecedores chineses, acreditam os titulares do inquérito que Pereira e o amigo terão levado a Altice a aceitar que as respetivas compras fossem intermediadas pela Edge Technology, outra sociedade do universo de Antunes, constituída em 2015 com sede na ZFM. Embora alguns dos fornecimentos efetuados por parte da Hauwei e da Xiaomi fossem diretamente negociados por representantes da Altice, como o português Luís Alveirinho, as aquisições correspondentes eram depois feitas com a intermediação da Edge Technology, que faturava as vendas a sociedades ligadas à operadora. Para Alveirinho entrar em tal tipo de triangulação, sob indicações de Armando Pereira (apesar de a contratação direta, em princípio, apresentar melhores condições para a Altice), acreditam os investigadores que terá recebido compensações indevidas, o que estaria provado por faturação fictícia que terá emitido através de uma sociedade sua, a Luís Alveirinho Unipessoal, a empresas controladas por Hernâni Antunes.

Só através da Edge Technology, Antunes faturou, relativamente a fornecimentos ao grupo Altice, 268,9 milhões de euros entre 2017 e 2022, enquanto a Shar, SA lhe garantiu mais 157,6 milhões de euros no mesmo período. No total, nesses cinco anos, a faturação acumulada pelas diversas sociedades do milionário bracarense para alegadamente executar o esquema de extração à Altice de vantagens económicas indevidas, que o MP acredita ter sido concebido por ele e pelo amigo de Guilhofrei, terá atingido os 660 milhões de euros, com perdas para o fisco português de 110 milhões.

Tais vantagens terão ajudado a canalizar para as contas offshore de ambos à volta de 250 milhões de euros, mas, para esse bolo, haverá que contar também com as verbas que os dois terão obtido da simulação de vendas de parte do valioso património imobiliário que a antiga PT possuía em Lisboa.

 

A delapidação do património da Altice

 venda de sete desses imóveis, que os investigadores consideram uma autêntica delapidação do património da Altice em Portugal, constitui a segunda parte das práticas supostamente ilegais levadas a efeito pela dupla minhota e agora sob investigação judicial. Os suspeitos terão recorrido, para o efeito, aos préstimos do então CEO da operadora no país, Alexandre Fonseca, que estava no lugar certo para dar o OK à operação. Algumas sociedades criadas em Braga por Antunes através dos habituais testas-de-ferro, surgiram interessadas na aquisição dos prédios, situados em zona nobre da capital, por valores abaixo do mercado, e Alexandre Fonseca, na sua qualidade de líder da Altice Portugal, apenas terá tido de tratar dos correspondentes contratos de venda. Em contrapartida, foi-lhe disponibilizada, por um valor considerado insignificante para o mercado imobiliário português, a aquisição de uma moradia na linha de Cascais no valor de um milhão de euros, tendo sido outro tanto depositado nas suas contas. Tempos depois, as sociedades de Antunes revenderiam os imóveis por valores muito superiores aos da aquisição.

Esteve nessas condições o edifício considerado a joia da coroa do património imobiliário da Altice em Portugal: a sua sede em Picoas, que já antes albergara a PT. O contrato-promessa de compra e venda foi feito entre a Smartdev e a detentora do prédio, a MEO, Serviços de Comunicações e Multimédia, uma subsidiária da Altice, tendo sido pago apenas um sinal de 1.952.177,07 euros, resultado de ganhos da Shar, SA que em 2019 haviam sido transferidos por Antunes para aquela outra sua sociedade, como suposto pagamento por uma prestação de serviços de assessoria e consultoria, supostamente fictícios. O imóvel havia sido adquirido 10 anos antes ainda pela histórica operadora portuguesa por 5.829.887 euros, mas o contrato de venda à Smartdev era de apenas 7 milhões de euros, sendo que durante um ano nada mais seria pago à Altice além do sinal, dando tempo a que o empresário bracarense pudesse vender o edifício por um valor muito superior e assim liquidar o resto da dívida com elevada margem de lucro, em claro prejuízo da Altice.

Foi essa a prática reiteradamente seguida com outros edifícios da Altice em Lisboa, nas ruas da Moeda, Andrade Corvo, Dona Estefânia, Visconde de Santarém, Conde Redondo e Tenente Espanca. No caso do imóvel da Rua Visconde de Santarém, por exemplo, a escritura de venda foi celebrada em maio de 2019 com a Almost Future, empresa do grupo Antunes formada três anos antes com participação da Edge Technology (e que também adquiriu à operadora os restantes cinco prédios), por 4 milhões de euros (com a liquidação de um sinal, no mês seguinte de um décimo desse valor), mas um ano depois o edifício foi vendido por 7,3 milhões, obtendo assim o empresário bracarense uma mais-valia de 3,3 milhões de euros.

Nos últimos tempos a ‘parelha’ tem investido em tudo o que aparece à venda em Vale de Lobo e Quinta do Lago, sendo que duas mansões de luxo estão a ser construídas na Quinta do Lago, uma ao lado e outras na traseiras na casa que foi de Duarte Lima, e que as autoridades brasileiras suspeitam ter sido construída com dinheiro desviado de uma conta offshore de Rosalina Ribeiro, alegadamente assassinada pelo antigo líder parlamentar do PSD.

 

A suspensão do CEO

Alexandre Fonseca, que em março do ano passado abandonara o cargo de CEO para passar a ser, entre outras funções, chairman da filial da Altice nos EUA (um dos mercados fortes em que a operadora está instalada, assim como a França e a Alemanha), anunciou ontem a suspensão de todos os seus cargos executivos e não executivos no grupo, na sequência das revelações vindas a público com a Operação Picoas. Em comunicado, a Altice justificou esta decisão: “Alexandre Fonseca pretende de forma inequívoca proteger os interesses do grupo Altice, e todas as suas marcas num processo que é público onde, aparentemente, são indiciados atos a investigar ocorridos no período em que este exerceu as funções executivas de presidente da Altice Portugal.  Esta postura contextualiza-se num acto responsável no caminho para o cabal esclarecimento da verdade”. 

A operadora diz que essa suspensão “auxilia a salvaguarda da prossecução da sua atividade empresarial e promove a defesa dos princípios da transparência, e da inequívoca colaboração no apuramento dos factos”.

 

As transmissões de futebol

No inquérito surge ainda o nome do advogado e empresário desportivo bracarense Bruno Macedo, que os investigadores suspeitam que tenha servido de placa giratória para a distribuição de comissões ilegítimas relacionadas com a aquisição, por parte do grupo, dos direitos de transmissão televisiva de jogos de futebol envolvendo diversos clubes portugueses.

Com efeito, em fevereiro de 2016, foi celebrado um contrato entre a BM Consulting, de MACEDO, e uma subsidiária da Altice para a prestação pela primeira de serviços de assistência no contacto e na negociação com vários clubes para a obtenção de direitos televisivos dos jogos, contra o pagamento de 20 milhões de euros. Alegam os investigadores que o contrato resultou de diligências efetuadas no seio da Altice por Armando Pereira e Hernâni Antunes, pelo que Macedo terá aceitado repartir com eles os ganhos assim obtidos, através de um suposto contrato de prestação de serviços pelo qual a BM Consulting pagaria 5 milhões de euros à Jana General Trading LLC.