Anabela Mota Ribeiro. Açular a matilha

O texto de João Pedro George demoliu de forma estrondosa a suposta estreia fulgurante de Anabela Mota Ribeiro no romance, com o livro “O Quarto do Bebé”. Mas, como em tudo, e para que a polémica não fique por aí, vale a pena virar o bico ao prego, e dar a ver o outro lado…

Às vezes uma mulher precisa de ser sujeita a uma boa dose de espancamento, de se ver exposta e humilhada publicamente de modo a que fique claro essa série de interditos que persistem na sua condição, e que elevam por isso exemplarmente o seu esforço de se fazer representar com toda a complexidade, com direito à nuance e aos elementos do grotesco, sujeitando-se de sua vontade aos efeitos de degradação da sua imagem, esse que, no que à arte concerne, tem sido um território quase exclusivo da representação masculina, sendo ao homem que compete sempre contestar as figurações do sucesso social e económico ou político, é ao homem que cabe provocar escândalo, tendo o atrevimento de se apresentar como um glorioso falhado, transgredindo todas as expectativas – é um exclusivo seu. Apesar das supostas conquistas sociais em termos de igualdade de género, ao nível artístico e cultural, no que toca à possibilidade de exprimir e representar as dimensões mais complexas da condição humana, essa é ainda uma prerrogativa masculina, com a punição a ser desencadeada como um reflexo para qualquer mulher que ouse atacar essa reserva moral. Só assim se tornam claras as diferenças que continuam a manter as mulheres cativas de um ideal que constrange severamente a forma como se apresentam no espaço público, não lhes sendo permitido desfigurar esses mitos bondosos, essa disciplina que, no seu reverso, encontra a postura cavalheiresca da sociedade, a atitude protectora em relação às mulheres como às crianças, esse princípio de que não chegam a completar o processo de maturação e independência, tendo de haver sempre uma atitude de zelo em relação a elas, regras que estão ali para o seu bem e que, se violadas, as tornam alvo de castigo ou, em alternativa, de escárnio, com a matilha a ser açulada para as meter na ordem assim que causam problemas.

No limite, ao infringirem esses valores nucleares ficam condenadas ao apagamento. De resto, é bom lembrar as palavras de Simone de Beauvoir em O Segundo Sexo, ao frisar que não basta sequer à mulher ser heterossexual, nem mesmo uma mãe, para realizar o ideal feminino, pois o ser uma “verdadeira mulher” passa por corresponder a “um produto artificial que a civilização fabrica como antigamente se fabricavam os castrados”.

Mas Beauvoir diz-nos ainda que, sempre que uma mulher se comporta como um ser humano, e assume a densidade de um perfil psicológico mais complexo, sem viver em função de valores que lhe são impostos de fora, no fundo está a declarar que se identifica com o macho: “As suas actividades desportivas, políticas, intelectuais, o seu desejo por outras mulheres, são interpretados como ‘um protesto viril’. Há uma recusa em ter em conta valores em direcção aos quais ela se transcende, o que conduz evidentemente a considerar que faz a escolha inautêntica de uma atitude subjectiva.”

Assim, é preciso que entre em choque com esse ideal e assuma uma atitude indócil face ao papel que lhe é designado para que realmente possa conhecer a consequência dos seus actos, resistindo precisamente por ver a forma como é afastada e sujeita a retaliação, a ser descrita como uma bruxa ou uma cabra, pois só isso sinalizará o desejo de se elevar acima dessa encenação. Só essa forma de rebeldia pode libertá-la desta constante pressão anti-feminista, que remete para essa tese difusa de que, politicamente, as mulheres têm um papel crucial antes de tudo como mães, uma vez que só através delas se pode garantir a renovação e o futuro.

Por outras palavras, fica sempre a sensação de que o que as mulheres fazem com o seu corpo tem demasiadas implicações para que lhes possa ser deixada essa forma de autonomia, como uma mera questão privada. Na verdade, o corpo das mulheres acaba tantas vezes por ser usado contra elas, sendo a sua emancipação vista como um perigo que põe em causa toda a estrutura social, de tal modo que, contra a sua liberdade, podem ser invocados os direitos daqueles que estão ainda por nascer.

Não nos causa, por isso, grande estranheza que, quando uma mulher surge a fazer uso das suas capacidades criativas, tentando operar de forma subversiva, ou ferindo o regime decorativo que, no fundo, resulta como um mero pretexto para se tornar mais desejável, acabe por ser alvo de advertências, reprimendas ou outras formas de controlo e repressão. “Aqui, pomo-nos demasiado no papel de vítimas, ali, não fodemos como deve ser, somos demasiado debochadas ou demasiado amorosas, mas de qualquer modo não é para perceber, ou muito pornográficas ou não suficientemente sensuais…”, escreve Virgine Despentes em “Teoria King Kong”.

E quando mesmo assim se liberta desse corpete e dirige um ataque contra o statu quo é que fica claro como está sempre em causa “a própria posição da mulher como uma reconhecida estranha, a rebelde ‘ela’ em vez do ‘um’ supostamente neutro – na realidade, a posição de homem-branco-aceite-como-natural, ou oculto ‘ele’ como sujeito de todos os predicados académicos” –, e que essa posição constitui um factor acrescido de tensão nas propostas artísticas, ameaçando os constrangimentos culturais e ideológicos da época.

Ora, como assinala Linda Nochlin no ensaio “Porque não houve grandes mulheres artistas?”, que acaba de ser publicado entre nós: “a chamada questão da mulher, longe de ser um subtema menor, periférico e ridiculamente provinciano enxertado numa disciplina séria e bem estabelecida, pode tornar-se num catalisador, num instrumento intelectual que sonde os pressupostos básicos e ‘naturais’, fornecendo um paradigma para outros tipos de questionamento interno e, por seu turno, proporcionando ligações para paradigmas estabelecidos por abordagens radicais noutros campos”.

No fundo, a “bruxa” nasce como essa imprecação que engloba todas essas coisas que as mulheres não deviam ser, e a partir do momento em que o termo foi cunhado era possível sobrecarregá-lo de todos os preconceitos, bastava acicatar o clima de suspeita e o ensejo de criar bodes expiatórios para dar origem um enredo malévolo e permitir que essas mulheres fossem sinalizadas, estigmatizadas e perseguidas.

“Foi uma maneira de exercer controlo sobre os seus saberes e os seus corpos, sobre formas de sexualidade que não tinham como finalidade a procriação, sobre o sexo fora do casamento, sobre a sua independência laboral e legal”, diz-nos a filósofa feminista Silvia Federici.

“Hoje, muitas destas questões ou são criminalizadas ou são vistas com maus olhos. Do ponto de vista das mulheres, vemos como a bandeira democrática do capitalismo tem sido uma mentira. A figura da bruxa continua a ser o símbolo da transgressão e da resistência das mulheres”, acrescenta a filósofa.

 

Não sendo difícil demonstrar que quando uma figura como Anabela Mota Ribeiro se reclama feminista, só pode ser levada a sério se logo for assinalado que faz parte daquele “feminismo” neoliberal, que procura melhorar a posição de umas quantas mulheres dentro do sistema, sem nunca fazer qualquer esforço para mudar o sistema, talvez fosse importante questionar que fez ela de tão condenável para merecer tornar-se o alvo de um repúdio tão generalizado e da troça de tantos na sequência de um artigo em que se procedeu a uma selecção e montagem tendenciosa de certas passagens do seu livro “O Quarto do Bebé”?

Que fez ela, além de ter tido a audácia de exprimir, através de uma personagem, e num romance de assumida feição autobiográfica, os elementos mais dolorosos, esses complexos perturbadores e achincalhantes, que a maioria das mulheres não ousam revelar por receio de se tornarem alvo de alguma destas insidiosas campanhas de assédio?

Se, por um momento, pusermos de lado uma certa repulsa perante todos esses mecanismos de promoção e os consórcios entre quem goza e sabe manobrar a seu favor relações privilegiadas com o meio mediático, neste caso, e à semelhança do que temos visto ser feito com tantos outros produtos culturais bastante medíocres, podendo ser acusada de fazer de tudo para que o seu livro fosse acolhido como um grande acontecimento editorial e tivesse, assim, alguma expressão junto dos leitores, se for ultrapassado este oportunismo que há muito contamina o campo artístico entre nós, se formos capazes de reconhecer que nisto Anabela Mota Ribeiro apenas se submeteu ao que muitos encaram como as regras do jogo. Talvez emerja outra questão a partir deste caso. É certo que, num ambiente de competição ferocíssima, em que qualquer produto cultural está obrigado a impor-se em vários canais e por todos os meios antes de desaparecer e dar lugar à coisa seguinte, talvez este livro não tenha feito outra coisa além de nos mostrar o esforço de adaptação a novos ventos de uma mulher que, assim, quis pôr em causa a sua imagem pública até aqui cuidadosamente construída ao longo de anos de forma a fazer-se representar segundo esse ideal da figura respeitável e culta, que trabalha sem fazer sombra a nenhum homem, bela e sedutora sem ceder a essa neurose e passar o tempo a referir-se a regimes de exercício e dietas, essa mulher afável e com que se pode contar para promover as figuras a que importa dar destaque no regime de renovação e reforço do statu quo, sem nunca afectar nada de essencial, e contribuindo acima de tudo para sustentar essa relação que mantemos com a ideia de mulher como base de uma estrutura afectiva.

Porque da mulher se espera que sustente ainda esse ideal da figura infinitamente dotada, encantadora e calorosa, compreensiva e acessível sem ser oferecida. E, no entanto, no seu romance Mota Ribeiro expõe-se de uma forma a que não estamos habituados, sobretudo não da parte das mulheres. Explora a sua vulnerabilidade sem reservas, e confronta toda uma série de dificuldades e obsessões na sua relação com a defecação e as fezes, vai muito longe na indignidade desse tema.

E aqui, até para que não se diga que é tudo assim tão gratuito, apetece citar uns versos de Blas de Otero: “Humanamente falando, é um suplício/ ser homem e suportá-lo até às fezes,/ saber que somos luz e sofrer frio,/ humanamente escravizados pela morte.” Também a respeito do “aproveitamento da matéria”, são úteis os seguintes versos de Adélia Prado: “Só quem olha sem asco as próprias fezes,/ só este é rei./ Só ele pode ordenar-te:/ Poupa o cabrito e a grama,/ não maltrates borboletas./ A humilhação quebra a espinha/ de quem vai ao trono sem saber de si./ Agostinho, o santo, já disse:/ Vim de um oco sangrento,/ é entre fezes e urina/ que nasci.”

Se em vez deste aspecto escatológico, Mota Ribeiro se tivesse ficado por aspectos relativos à menstruação ou à menopausa, talvez até à masturbação, pelo evidente conteúdo de ordem sexual, seria bem mais delicado supor que esse tema, por mais inepta que fosse a abordagem, deixasse à-vontade hoje uma crítica de fundo sexista para se atirar sobre ela sem se denunciar. Contudo, se a ofensa for registada para lá desses limites, então ao publicar um livro qualquer mulher fica sujeita a que lhe venham “recitar o alfabeto de fronteiras que não deve atravessar” (Despentes)

A verdade é que, quando um homem sente a necessidade de intervir, já houve alguma coisa que correu mal, uma vez que a sociedade tem sabido internalizar de tal modo os complexos que raramente se vê as coisas chegarem a um tal ponto em que tem de haver uma censura clamorosa para que a mulher reconheça o seu lugar.

“Sentimo-nos constrangidas com as nossas capacidades e espiadas todo o tempo pelos homens, que continuam a imiscuir-se nos nossos assuntos e a indicar o que está bem ou mal para nós, mas sobretudo pelas outras mulheres, através da família, das revistas femininas e do discurso dominante”, escreve Despentes.

Esta autora vinca que, apesar da revolução sexual e feminista, as mulheres continuam a ser obrigadas a cumprir uma série de rituais no sentido de assegurar os homens de que estão comprometidas com o papel que lhes foi destinado. “Vale a pena usar trajes desconfortáveis e sapatos que entravam o andar, partir o nariz ou aumentar o peito, passar fome. Nunca nenhuma sociedade exigiu tantas provas de submissão às imposições estéticas, tantas modificações corporais para feminizar um corpo. (…) O sublinhar excessivo da feminilidade parece uma desculpa perante a perda das prerrogativas masculinas, uma maneira de nos tranquilizarmos, tranquilizando-os.”

Assim, e face ao que ficou exposto, é fácil perceber que uma mulher que se dá a liberdade de ousar pôr em circulação um romance em se expõe até ao limite olhando sem asco as próprias fezes, num aproveitamento da matéria que parece marcado pela dilaceração de si mesmo e numa obra que pode bem falhar redondamente enquanto proposta literária, corre esse risco decisivo de questionar a sua posição enquanto mulher sem aceitar nenhum dos limites que são impostos por meio dessa forma de vigilância e de violência de que tivemos mais um exemplo no longo artigo publicado por João Pedro George.

Só assim, e talvez mesmo desagradando e escrevendo um péssimo romance, aquela personagem pode existir de acordo com o seu processo de identificação autónomo, livrando-se dessa imagem das mulheres que surge na ficção escrita por homens, a mulher muito versátil, heroica e mesquinha, maravilhosa e sórdida, infinitamente bela e terrivelmente medonha.

Talvez o que mais custe aceitar é que as mulheres não chegam só a ter os mesmos desejos, o mesmo anseio de se distinguirem nesta ou naquela área, mas sobretudo algumas pretendem enfim ver reconhecida a igualdade no que toca a essa disposição para cometerem os mesmos erros, serem tão patifes como os homens, degradarem-se, voltarem as costas a seja o que for com a mesma naturalidade com que os homens o vêm fazendo desde sempre.

É na tolerância aos vícios e aos erros que está a verdadeira medida da liberdade de que alguém goza.

“O eterno feminino é uma enorme chalaça”, escreve Despentes em tom desafiador. A mulher que assume sem o menor rebuço que se deitou com centenas de gajos, sem nunca engravidar, sabendo embora onde teria de se dirigir no caso de ser necessário fazer um aborto, e isto sem pedir autorização a ninguém nem arriscar o pêlo. A romancista que não tem qualquer pudor em relatar os tempos que viveu enquanto puta, calcorreando a cidade de saltos altos e decotes pronunciados, sem prestar contas a ninguém, gastando cada cêntimo que lhe pagaram como bem quis. E depois resolveu tornar-se escritora e contar tudo, vendo-se então confrontada com a forma como o mundo político e cultural se organizava para a travar e incapacitar, “não enquanto indivíduo, mas enquanto mulher”.

E se é habitual dizer-se que a mulher é tantas vezes encarada como um mero objecto sexual, esta escritora entende que há algo ainda mais pernicioso que é essa tendência dos homens para perorarem infinitamente sobre as mulheres, sepultando-as debaixo de uma série de mitos. “Dir-se-ia que a vida dos homens depende da manutenção da mentira… mulher fatal, coelhinha, enfermeira, lolita, puta, mãe bondosa ou castradora. Tudo uma encenação. Uma coreografia com o guarda-roupa adequado. Isso tranquiliza-os a respeito de quê? Não sabemos exactamente o que temem que aconteça se os arquétipos completamente inventados se desfizerem”.

Talvez, por isso, seja preferível assumir a vulgaridade, e ver uma mulher que tenha a audácia de começar tudo outra vez, assumindo erros próprios, sem estar já empenhada em manipular perversamente os desejos do leitor, mas que, analogamente ao estádio anal, fosse construindo o seu desejo depois de este ter sido devastado e ocupado pela sociedade, procurando libertar-se das grilhetas e do tal corpete, compondo o texto com a matéria mais vergonhosa e que, no entanto, lhe permite proceder tal como a criança com as fezes, por si entendidas como ouro.

Afinal, o mais difícil é o tanto que as mulheres têm sido escondidas de si mesmas, e talvez a rejeição não possa senão começar de forma insegura, aparentemente pueril, num gesto ousado de quem reclama a sua verdade e se sabe condenada a alguma das muitas e subtis formas de linchamento público. Virginia Woolf entendia que o primeiro dever de uma mulher escritora é matar a fada do lar. Convenhamos que defecar no meio do salão literário não deixa de ser das formas mais cruentas de levar a cabo esse feito.