José Fragata: “A experiência é algo que não se lê nos livros, é preciso vivê-la”

Foi o rosto do Hospital Santa Marta, onde fez milhares de operações, e na hora da despedida faz um balanço sobre o estado da Saúde.

É uma figura incontornável da Medicina portuguesa, tendo feito milhares de operações cardiotorácicas, e fez a sua lição de jubilação na última semana. Sai do serviço público por aposentação no limite da idade, mas continuará a andar por aí. 

Há cinco anos deu uma entrevista onde admitia poder trabalhar no sistema público até aos 75, devido à alteração da lei. Por que decidiu mudar de opinião?

Por várias razões. A primeira é que ninguém me desafiou para isso, e, provavelmente, se me tivessem desafiado a minha resposta seria não. As pessoas têm o seu tempo, e esse tempo tem determinado perfil de funções. Seria impensável que prolongasse para além dos 70 anos, ficando em qualquer lugar de chefia. Porque, obviamente, há aqui questões de quebra geracional e há a expectativa legítima das pessoas que têm agora menos 10 ou 15 anos ou até quase 20 do que eu, de ter a possibilidade de gerir os destinos das instituições e de liderar as próprias equipas. Não pareceria muito bem, e não seria sequer bem aceite, manter-me no lugar. É claro que a lei permite que a pessoa se mantenha, não em lugares de chefia, por períodos a prazo, de seis meses, que os respetivos ministérios vão autorizando, foi isso que a lei consagrou. 

Disse na altura que sabia perfeitamente que se dissesse que ia prolongar o seu tempo havia colegas que se suicidavam [risos].

Pois claro, as pessoas têm a expectativa que me vá embora. Vou dizer-lhe uma coisa: as pessoas quando estão para se reformar, ou morrem, ficam sempre muito melhores. Naturalmente as pessoas querem-me bem, mas acharam que tive o meu tempo na vida pública, digamos, nas instituições como o Serviço Nacional de Saúde ou com a universidade pública.

Vai continuar a operar? 

A operar, a fazer consulta, a fazer a minha vida, a preparar os meus doentes enquanto me sentir bem, enquanto tiver procura e enquanto tiver doentes. Não vou morrer para a profissão. O que vou, basicamente, é sair do setor público, quer seja do Serviço Nacional de Saúde, onde servi 46 anos, quer seja da universidade pública, onde servi 50 anos, mas vou ficar disponível para a minha atividade privada. Seria um desperdício, na fase de vida em que estou e com a experiência que tenho, dizer que abandonava – enfim, não seria útil para mim nem para a sociedade. Como alguém disse, vou andar por aí.

Disse que a pior coisa que há na vida é uma pessoa reformar-se. 

Sim, é uma das piores coisas para quem centrou toda a sua vida no trabalho e para quem sempre teve um foco maior no trabalho do que nos hobbies e até, infelizmente, na família. Verdadeiramente, a reforma é uma violência, porque a reforma para mim é dia 23 de julho. É naquele dia. Tudo o que é muito abrupto nunca é bom. E, de facto, mesmo para saúde mental e para a saúde física está mais ou menos estabelecido que a reforma não nos traz nada de bom. As pessoas devem manter algum grau de atividade e isso é um desafio grande, encontrar na sociedade os campos em que a pessoa possa continuar a ser útil. Como cidadão sénior e como médico e universitário sénior que sou, indiscutivelmente, mas obviamente não ocupando lugares que possam impedir racionalmente a carreira de outras pessoas. Se me oferecessem para continuar a dirigir o meu serviço neste momento, eu diria que não, porque obviamente não é esse o tempo, não é esse o registo e não seria útil nem para mim nem para a instituição. 

Mas se dissessem para continuar a dar a sua colaboração, a reunir-se uma vez por semana, falar de casos em avaliação…

Sim, se essa figura existisse, com certeza que isso parece-me perfeitamente razoável. Aliás, quando a pessoa chega a esta fase, depois de dezenas de anos de trabalho, a pessoa acumulou uma experiência irrepetível, e a sociedade devia aproveitá-la. Em muitas sociedades, nomeadamente a americana, por exemplo, utiliza essas pessoas como conselheiras. Costumo dizer que os conselhos são sempre coisas muito boas, porque as pessoas podem segui-los ou não.

Noto na sua cara alguma tristeza por isso não acontecer. Isto é: no privado ganha muito mais do que no público, mas é pelo facto de no público não reconhecerem as suas mais de 10.000 operações. Sente que é um capital que se desperdiça? 

É sempre um capital que se desperdiça. A forma mais inteligente de lidar com esse capital acumulado é reconvertê-lo. Extingui-lo não é inteligente, mas pode converter-se no papel de ensinar os outros, o papel de aconselhar, isso é uma reconversão. A vida profissional das pessoas vai tomando facetas diferentes com o tempo. Obviamente que vou continuar a operar e a ser cirurgião e a fazer a minha vida com médico, mas naturalmente que à medida que os anos passam, a pessoa vai ficando com mais apetência para ensinar, para aconselhar, até porque já viveu mais tempo, a experiência é algo que não se lê nos livros, é preciso vivê-la. Para as pessoas que agora estão a começar ou estão a meio, a experiência dos outros é verdadeiramente uma biblioteca que não deve ser desperdiçada.

Há uns meses fui a uma consulta de dermatologia e o médico, que também tinha sido diretor da especialidade no Sistema Nacional de Saúde, dizia-me que o que o mais o desencantou no SNS foi deixar de trocarem-se experiências ao final do dia, pois era praticamente impossível encontrar os colegas, devido aos novos horários implementados. Acha que se está a perder essa experiência?

Acho que sim. O modelo de trabalho no sistema público de saúde, e também no privado, mas agora estamos a falar do sistema público, tem sofrido de uma enorme falta de visão, que tem a ver com dois aspetos, que, aliás, estão relacionados. Um deles tem a ver com o facto das pessoas poderem acumular no setor público e no setor privado. Isso, obviamente, cria dispersão. Por outro lado, o regime de trabalho na função pública aplicado ao pessoal de Saúde, que tutelas recentes definiram, faz com que hoje seja legal para um médico trabalhar três dias por semana num determinado hospital, estando a tempo inteiro, porque há sempre um dia de folga da urgência, que é obrigatório, e os contratos já são feitos com um dia de não trabalho, e, portanto, é muito fácil, numa semana de cinco dias, subtrair dois. No serviço onde trabalhei até há menos de uma semana, tinha colegas que trabalhavam três dias por semana, perfeitamente legal, já que era o enquadramento com que estavam contratados. Considero que essa atitude está em confronto absoluto com a necessidade de querer desenvolver ou de dizer que se quer desenvolver um Serviço Nacional de Saúde que responda às necessidades. É a mesma coisa que uma empresa contratar funcionários três dias por semana. Em princípio, não precisa deles nos dias todos, ou não lhes pode pagar… Isso faz com que as pessoas deixem de se encontrar tanto, o chamado efeito campus das instituições deixa de existir, as pessoas funcionam mais por horários do que por tarefas e estão sempre na disponibilidade de ir para outro lado. Não foi assim que comecei a trabalhar no Hospital de Santa Cruz. Ia para lá as 7h30/7h45 e saia de lá quando era possível. Esse modelo acabou. Não posso pedir hoje esse modelo a nenhum colaborador meu. Há muita migração do setor público para o setor privado, que paga melhor, mas já nem é o pagar melhor, são as condições de trabalho que são melhores. Objetivamente, a opção público/privado faz com que haja um desinteresse pelo SNS por parte dos profissionais, faz com que as pessoas se encontrem menos, e depois, a cereja em cima do bolo foi o regime de contratações e de reduções de horários que, obviamente vindo da esquerda, até parece mal, porque verdadeiramente assim parece que estão em dissonância com a necessidade de defender um sistema que se quer público. 

O SNS fica cada vez mais frágil.

Claro. Isto é paradoxal. Esse regime de contratação, que até permite que as pessoas tenham opções no setor privado em acumulação, junto com essa redução de horas de trabalho, fez com que a capacidade que as pessoas têm para se dedicar é menor. Hoje em dia é mais difícil treinar pessoas mais novas pelo regime de trabalho que temos. Daria a ideia que deveríamos seguir no caminho de maior devotação de horas e dedicação das pessoas ao sistema. Há aqui um problema grave, o Estado nunca se deveria ter exposto à competição com o setor privado, porque não está preparado para isso. As pessoas não podem ser obrigadas ou amarradas. Ou o Estado criava condições salariais e de trabalho mais apelativas ou as pessoas invariavelmente continuarão a sair para o estrangeiro ou para o setor privado. Temos sorte se saírem para o setor privado, porque se tivermos azar vão para o estrangeiro e perdemo-las, pois nem todos voltam.
Isso é uma espécie de contradição, isto é, não aproveitam a sua experiência para dar conselhos aos mais novos… 

Não aproveitam formalmente, informalmente irão aproveitar. Isto ainda não acabou.

Mas deixe-me concluir a minha pergunta. E ao mesmo tempo, formamos médicos que vão para o estrangeiro ou para o privado, e que não ficam no Estado.

É verdade.

Mas qual é o caminho. Onde é que vamos parar? 

O caminho tem a ver com não ter havido até agora nenhuma estratégia de desenvolvimento para o sistema de saúde português. Tem a ver com isto. E isso é uma afirmação forte, mas que eu assumo. Temos andado entretidos na discussão, que agora já caiu, que apodreceu, entre público e privado. Costumo dizer e escrever que a doença não é pública e não é privada, é só má em si mesma. Temos que ter um sistema de saúde que integre o setor público, o privado, o social, e em que o Estado tem um dever constitucional de prover a saúde dos portugueses, mas não tem obrigação constitucional de prestar saúde aos portugueses. São coisas diferentes. O Estado tem que se preocupar que os cidadãos de Vila Real, Trás-os-Montes ou em Chaves tenham acesso a uma ressonância magnética, mas não tem necessariamente que ser o Estado a prestar esse serviço, não é? Seria uma opção política se o Estado quisesse só ele prestar esse serviço. Mas para isso teria de colocar meios financeiros, de organização e de investimento que não tem colocado. Os investimentos na Saúde dos últimos dez, 12 anos têm sido tremendamente parcos. Durante esse período, o hospital privado em que eu trabalho vai agora instalar a quarta ressonância magnética, quarta. Veja agora quantas temos no sistema público em Lisboa.

Quantas tem?

Não me vou comprometer com números, mas não tem muitas. Proporcionalmente, um hospital privado tem quatro máquinas de ressonâncias magnéticas – e estamos a falar de um hospital que não tem 200 camas. No serviço público, estamos agora a construir Évora, e depois será o Oriental de Lisboa, espero eu, que já está prometido há mais de 20 anos, ainda é pior que o aeroporto, mas de facto não tem havido grande investimento em infraestruturas e em equipamento, apesar de o Estado nos últimos tempos ter colocado no orçamento para a Saúde um aumento muito importante. Pergunta-se: para onde é que vai o dinheiro? Acho que o dinheiro foi usado muito na altura da pandemia para tapar buracos e para responder à crise pandémica que, obviamente, tinha que ter resposta e portanto teve que se arranjar meios para isso, e tem sido para pagar a pessoal. Normalmente para pagar a pessoal com contratos de duração transitória, não houve reforços de quadros significativos, mas pagar bolsas de trabalho… e fazendo uma outra coisa que para mim é absolutamente paradoxal da saúde, que é o plano de recuperação de listas de espera cirúrgicas. Dou-lhe o exemplo do serviço em que trabalhei até há pouco tempo [Hospital Santa Marta]. Nós temos três salas de operações. Uma está fechada por falta de pessoal, mas essa sala é usada, pagando ao pessoal, não quero dizer 10 vezes mais, mas perto disso, para recuperar listas de espera. E quando não é ali, são feitas no setor privado, onde quer que seja. Dá a ideia que é a mesma coisa que eu ter instalações de uma fábrica, ter essa parte fechada porque não contrato pessoal, ou porque não há ou porque não quero contratar, ou as Finanças não deixam, e depois pagar a esse pessoal, fora de horas, cinco, seis, dez vezes aquilo que custaria em horário regular, para recuperar a lista de espera. Enquanto o esforço de recuperação de lista de espera é meritório, o molde económico-financeiro que o Estado utiliza é péssimo. Precisamos de uma organização diferente e não de mais dinheiro.

A última vez que estive com o professor, em plena pandemia, estava perfeitamente desesperado, um pouco fora de si, precisamente porque tinha salas no Hospital Santa Marta fechadas, dizendo-me que iam morrer imensas pessoas.

As salas mantêm-se fechadas e continuam a ser 300 pessoas em lista de espera. A mediana é a mesma por uma razão muito simples. A Saúde devia ser um serviço transversal de uso comum, e, como tal, o Estado tem que ter uma palavra a dizer sobre ela. Deus nos livre que o Estado não tivesse uma palavra séria a dizer no prover da Saúde, e o acesso universal dos cidadãos à Saúde. Na minha conceção de organização de sociedade, acho o mesmo para a eletricidade, para a água, para um conjunto de bens essenciais. Mas que depois seja o Estado que tem que prestar esses serviços todos, não tem. Agora que tem que ser responsável pelo bem comum e pela felicidade comum, isso sim. O papel do Estado é defender-nos. Nós precisamos, mais do que colocar dinheiro na Saúde ou pensos rápidos, de uma reforma profunda do sistema de Saúde. Que integre o setor público, social e privado. E porquê? Neste momento, 72% da prestação de cuidados de saúde faz-se no setor público da saúde. Mas 51 ou 52% da capacidade instalada está no privado. E essa capacidade do setor privado até é assimétrica, porque, em termos de tecnologia, houve um transfere grande do setor público para o privado. E, neste momento, o setor privado está muito melhor apetrechado tecnicamente do que o setor público. 

Em todas as áreas? 

Sim, sim, dominantemente. Em tecnologias pesadas, estou a pensar em PETs, ressonâncias, em maquinaria pesada. Isso faz com que seja estúpido que um país, que nem sequer é rico, é riquinho, desperdice para os seus cidadãos essa capacidade que está instalada. O papel do Estado será o de cooptar essa capacidade instalada no setor privado ao serviço, e não é nacionalizá-la, é colocá-la ao serviço, contratualizando-a, de uma forma séria. Não é quando o Estado está aflito. Nós já vimos isso. O Estado deve encarar o setor privado e o setor social como parte de uma rede de prestação de cuidados de saúde e deve-se encarregar de controlá-la no acesso e na qualidade.

Mas deve contratualizar o quê? 

Deve contratualizar serviços de cirurgia cardíaca, serviços de cirurgia torácica, serviços de cirurgia geral, mas há áreas que acho que não deviam estar no setor privado, como por exemplo, a área da transplantação e dos serviços de sangue. São áreas muito sensíveis, até do ponto de vista ético e da dádiva, e, portanto, não quer dizer que não pudessem estar, mas teriam que ter um escrutínio muito superior. Não as colocaria imediatamente nessa esfera. Agora, todos os outros serviços, sim. E há aqui um aspeto muito importante. Há aqui uma estrutura de ligação intermediária entre o Estado e os prestadores, que são as seguradoras. Seguradoras que podem ser uma abrangência de seguro, como a ADSE ou seguros privados. Mas atenção, relativamente aos prémios, não pode acontecer que um doente comece o tratamento no setor privado de saúde e a meio do caminho acabe o dinheiro e o doente vá para o setor público. Estes sistemas tinham que ter alguma responsabilização sobre os cuidados que prestam.

Muitas pessoas, com seguros, não fazem estas perguntas e depois, a meio do processo, têm de ser transferidas para o público.
Nós em Portugal, às vezes, temos a ideia que estamos a inventar a roda. Mas há países que já passaram por isso. Na Holanda, por exemplo, encontraram a maneira de fazer isso. Não consta que o sistema de saúde holandês seja mau, aliás está como sendo um dos melhores sistemas de Saúde da Europa. No fundo, é ter um seguro geral e ter um seguro de doença crónica ou doença aguda, e ter a população nesses dois seguros. E o que o Estado tem que garantir é que cada pessoa paga 100 euros por mês ou que quer que seja para o seu seguro. O Estado tem que garantir uma coisa muito simples, quem não tem esse dinheiro para pagar tem que estar seguro na mesma. E, de facto, esses chamados indigentes de baixo rendimento, e os menores de 18 anos, estão seguros pelo Estado. Lá está, é o papel de cobertura geral do Estado. Se isso existisse, obviamente as seguradoras passavam a entender-se com os hospitais, e, como há seguradoras que têm hospitais, é uma gestão que fica dentro de casa. Naturalmente, os prémios têm que ser ajustados, as seguradoras não são casas de beneficência, têm o seu negócio, mas tem que haver regras. O sistema tem que ser mais original do que o velho chavão público versus privado, que é um chavão gasto, e basta ir, por exemplo, à Holanda. Não há sistemas perfeitos, mas o holandês está entre os melhores sistemas europeus. E depois, por exemplo, quando pergunto aos meus colegas na Noruega como é que vai a prática privada deles na cirurgia cardíaca, que é a minha especialidade, eles dizem que não têm prática privada. Porquê? Porque o hospital público responde numa semana. Realmente, o Governo norueguês coloca o dinheiro na saúde que o governo português não coloca, porque se o Hospital de Santa Marta respondesse numa semana, provavelmente a cirurgia privada em Lisboa não existia. É óbvio, as pessoas se puderem ir a um sítio onde é bom e pagam menos, é lá que vão. Diz-se muitas vezes que o setor privado deu cabo do setor público. Não. O setor privado cresceu pela incapacidade do setor público. O Estado verdadeiramente não cuidou, e agora é tarde, de impedir que houvesse uma competição entre o setor público e o privado. Nunca deviam estar em oposição, deviam estar sempre em cooperação.

Mas também defendeu já várias vezes que se se acabasse com o Serviço Nacional de Saúde e se criasse o Sistema Nacional de Saúde, onde havia, portanto, a integração destes vários atores, que seria proibido estar no público e no privado.

Sim, não faria nenhum sentido. Acho que a estruturação de um sistema de saúde e de assistência têm que estar no Estado. Caso contrário ficamos com um sistema completamente liberal, o que não me parece que seja, enfim, seguro. A orientação e organização de uma coisa dessas tinha sempre que pertencer ao Estado, que tem a obrigação de garantir o acesso e a qualidade do acesso à Saúde. E o acesso tem várias dimensões: uma dimensão geográfica, de tempo e de qualidade e inovação. Não há acesso se não houver inovação, não há acesso se não for a tempo, e não há acesso se não podemos aceder economicamente. Quando se fala em acesso, não é ir para um centro de saúde às quatro da manhã, com 80 anos de idade, apanhar uma ficha de consulta para as nove do dia a seguir. Isso não é acesso, ou se o centro de Saúde ficar a 50 quilómetros também não. O Estado tem que se preocupar com essa geometria e com essa harmonização. Agora tem que usar os meios ao seu dispor, privado, social, público para fazer isso. Tenho defendido isto há muitos anos, era preciso um pacto de regime para a Saúde, que se estendesse para além das legislaturas e que permitisse que pousássemos, é o termo, num modelo de saúde, de administração hospitalar, para não estarmos – de cada vez que mudou um governo com períodos de quatro anos – a mudar de regime. Veja o que se passou com as parcerias público-privadas, que foram basicamente cilindradas por motivações puramente ideológicas. Não foram políticas, foram ideológicas. Isso é óbvio para toda a gente. 

Foi feito um inquérito nos hospitais de Coimbra onde 497 pessoas foram ouvidas. Destas, 98% disseram que havia uma desumanização nos cuidados de saúde e 74% disseram que tinham tido experiências muito, muito negativas. 320 relataram coisas graves, desprestigiantes e muito lamentáveis. Há ou não uma desumanização da prática médica? 

Acho que há uma tendente desumanização da prática, que é crescente e que tem a ver com várias dimensões. Uma delas é o peso tecnológico da profissão, que faz com que, hoje em dia, mais do que a relação pessoal médico-doente, se interponha frequentemente um computador, isso é comum. Vai ao médico e a maior parte do tempo o médico está a olhar para o computador e não para o doente, e, por outro lado, há as máquinas de diagnóstico, mas penso que isso é em todo o mundo. Ainda há uns anos fui ao Estados Unidos fazer uma ressonância magnética nuclear e não vi ninguém. O técnico meteu-me numa veia o contraste, não me disseram nada e fui tratado como uma peça de sistema, e não deixei de pagar e muito por isso. Neste aspeto aqui, em termos gerais, a tecnologia interpõe-se demasiado na relação médico-doente. Por outro lado, a carga assistencial e o peso do trabalho e o cansaço e o modelo com que funcionamos hoje em dia não favorece muito a que pessoa tenha tempo, e isto é verdade no público e no privado, as consultas são tabeladas a tempo. Acho que há uma desumanização progressiva da medicina e nós temos que lutar contra isso. E estou farto de escrever e apregoar e ensinar isso aos meus colaboradores – há uma forma muito simples que eu sempre ensinei os meus internos, quando em dúvida sobre uma atitude, sobre o tratamento, sobre qualquer coisa relativa a um doente, a pergunta é a de Confúcio: ‘O que é que eu gostaria que fizessem se aquele fosse eu?’. É preciso é que as pessoas tenham a distância e, sobretudo, o tempo para poder pensar assim. 

Por que foi aos Estados Unidos fazer esse exame e não o fez cá? 

Porque não havia em Portugal. Era uma coisa específica de avaliação neurológica.

Mas há muito a ideia de que quando se vai a um médico no particular ele manda fazer imensos exames, falando-se até em operar nalguns casos. Depois essas mesmas pessoas vão pedir um conselho a um médico do SNS e a resposta é bem diferente. Por que isso acontece?

Não sei se isso é uma prática generalizada. Não conheço. Profissionais bons e maus há em todo o lado, no público e no privado. A classe médica, quero pensar, é uma classe séria e está obrigada a um conjunto de princípios. Naturalmente, essa classe pode ter membros que se comportam melhor ou pior, e daí o papel tão importante que poderia ser o papel da regulação profissional pelas ordens. Isso é outra pecha gravíssima com que vamos lidar agora no futuro próximo. Pode haver quem no privado pense em ‘tratar’ da sua vida, mas isso vai ao arrepio de quaisquer princípios da profissão. E esses exemplos, se existem, são obviamente condenáveis. Sabe que há uma coisa curiosa: os doentes na medicina podem ser doentes, utentes ou clientes. Sendo tudo da mesma maneira, continuo a preferir chamar-lhes doentes primeiro, utentes depois e clientes no fim. E isso responde à sua pergunta. Eu chamo sempre doentes e olho sempre para eles como doentes, serão depois para mim utentes e já no fim é que serão clientes. E era assim que devia ser para todos. 

Desempenhou duas funções muito distintas. Uma foi a de cirurgião, outra foi responsável pelo serviço. O que muda de uma para a outra?

Muda muito. É muito mais fácil operar doentes do que dirigir serviços. Dirigir serviços é lidar com os doentes, lidar com os colaboradores, lidar com o sistema. Usar de resiliência para com o sistema, lidar com os media, lidar com as más conversa, com as queixas, e nunca esquecer as transmissões fundamentais que são tratar de doentes, ensinar internos e inovar a prática. O desafio é mais abrangente do que propriamente só operar doentes. Os doentes, enfim, há casos piores, melhores, à medida que a gente vai andando na vida e com a experiência vai compensando muito disso, e depois, naturalmente haverá sempre os casos impossíveis. Mas lidar com as pessoas, lidar com as expectativas, andar-lhes a prometer permanentemente melhores condições de trabalho e melhores condições salariais e não isso não depender de nós e não conseguirmos isso… Essa falta de empreendedorismo que a saúde pública tem neste momento é corrosiva.

Recorda-se da primeira operação que fez?

Sim. Recordo-me do Dr. Machado Macedo de me ter ajudado a fazer a primeira comunicação interauricular e depois de termos ido jantar à Mercearia, que era uma coisa no Bairro Alto. 

Quando começou em Santa Cruz tinha o professor Queiroz… 

O professor Machado Macedo e o professor Queiroz e Melo, era como se fosse um irmão mais velho. Eu ainda era interno e o professor Machado Macedo era a figura tutelar, digamos, era o príncipe aristocrático da medicina portuguesa. E é um senhor, um gentleman à antiga. E o professor Queiroz e Melo era um jovem recém-chegado dos Estados Unidos, truculento, era como se fosse um irmão mais velho. 

Nos textos aparece sempre que o primeiro transplante cardíaco foi feito pelo professor Queiroz e Melo, em 1986… 

Sim, é verdade, ajudado por mim como primeiro ajudante e pelo professor Machado Macedo como segundo ajudante. 

Ao longo destas mais de 10 mil operações houve passos históricos… 

Fizemos muitas das primeiras… Vamos lá ver. Isto vale o que vale, porque as pessoas agarram-se sempre às primeiras, por uma questão de celebração, de comemoração. As primeiras vezes, a única coisa que têm é a ousadia e o risco. O risco normalmente é mais para o doente, mas também para quem faz e, digamos, essas primeiras vezes acabam por ser marcos históricos e as pessoas lembram-se por isso. Mas o que é importante depois é a continuidade e as séries que se fazem. Estive ligado a várias primeiras vezes, o transplante cardíaco foi o João Queiroz e Melo que fez, comigo a ajudar, mas depois fiz muitos. Logo em 91 ou 92 fizemos o primeiro transplante cardíaco na infância, que a Dra. Isabel Fragata anestesiou. É um rapaz que hoje tem 30 anos, que já tem um filho da idade que ele tinha quando foi transplantado [e estiveram na audiência na lição de jubilação]. Depois houve muitas das intervenções de cardiopatias congénitas neste país, algumas delas foram introduzidas por mim. Depois fizemos em 2005 a primeira assistência ventricular externa, coração artificial externo, numa criança lactente, que seria depois transplantada com sucesso. E depois implantámos em 2017 o primeiro coração artificial em Portugal, o primeiro dispositivo da ciência esquerda de longa duração. O doente viveria ainda cerca de cinco anos após o implante, vindo a falecer devido à múltiplas comorbilidades de que padecia.

E a primeira vez que perdeu um doente numa operação? Como encarou a família depois?

Muito mal. Mas vou-lhe dizer uma coisa. Cada vez que a gente tem um mau resultado, ou perde um doente ou um doente tem uma complicação, se houve coisa que, ao longo dos anos, para mim nunca melhorou no sentimento foi essa. Acho que se tem agravado, porque hoje em dia não aceito errar. Acho que para a experiência que tenho, que é muita, a minha margem de erro deve ser muito baixa. 

Mas quando não tem a ver com a sua margem de erro? 

Tem a ver com o resultado. Uma coisa é o erro provado, outra coisa é a nossa consciência de que devíamos ter feito diferente. Uma coisa é um erro objectivamente cometido, por uma má indicação ou execução, outra coisa é a pessoa ficar a pensar se tivesse feito diferente, se não teria tido obrigação de ter feito diferente, se não devia ter obrigação na sua experiência, a sensação, o peso moral do dano, não tem a ver com culpa. Responsabilidade é uma coisa diferente de culpa, a responsabilidade pelo dano noutro, para mim, tem-se tornado avassaladora. E então desde que tenho netos, relativamente a crianças, pior ainda. Sou cada vez mais duro comigo e mais mole com os doentes.

Mas lembra-se da primeira vez que teve de dizer a uma família que alguém tinha morrido? 

Claro, com certeza. Já fiz isso várias vezes na minha vida, se na minha especialidade tiver operado 10 mil ou 12 mil doentes e se a mortalidade na minha especialidade for 3%, como diria o eng. Guterres, façam as contas. Já disse isso vezes demais, é terrível. A pessoa tem de estar preparada para emoções fortes, às vezes, para ser chamada de nomes…

Também disse que isso é uma arte, conseguir transmitir uma má notícia… 

É uma arte e faz parte de uma disciplina, que é a capacidade de comunicar más notícias. Não há nenhuma maneira de fazer isso. A única maneira de fazer isso é dizer a verdade. A verdade é sempre dura. Agora, o modo como a verdade é transmitida não tem que ser sempre desastrosa. Há uma coisa que é absolutamente imprescindível, que é demonstrar empatia, empatia é sentimento pelo sofrimento dos outros.

Há uma história muito célere de um bebé com um mês e tal. Isso não foi um transplante cardíaco? 

Foi um transplante, com um bocadinho menos de dois meses de idade de uma criança do Porto.

Mas mudou-se ou não se mudou?

Mudou-se tudo, claro. Um transplante é isso mesmo. Há sistemas de apoio e há transplantes completos. Por acaso é uma história curiosa. Eu tinha ido ao Porto fazer umas provas universitárias de agregação e pediram-me para ver uma criança que estava em cuidados intensivos, nessa altura, recém-nascida. E que tinha uma cardiopatia muito grave, não estava bem e perguntaram se nós púnhamos em Santa Marta um coração artificial. Um dispositivo de assistência para um recém-nascido, com menos de três meses, é de facto uma aventura.

E menos de três quilos também…
Sim. É uma aventura. Falei com os pais e com os colegas e disse assim: ‘Acho que vocês devem aguentar medicamente o mais possível para ver se o bebé vai evoluindo e aqui a única chance é um coração, transplante, mas arranjar um dador para esta idade e para este peso é uma lotaria, não vai acontecer’. E ficámos neste entendimento que é basicamente ‘boa sorte, tenham sorte’. Cheguei a Lisboa, no final dessa semana, há um bebé de uma maternidade de Lisboa, não vou dizer qual para não ser identificado, nasce sem cérebro, encéfalo. E os pais têm a enorme generosidade de dizer que não sendo um bebé viável, que ofereciam os órgãos do bebé para transplante. Naturalmente estávamos em apelo para essa criança, começamos em apelo sem grande convicção, e perguntaram-nos se queríamos aquele coração que era exatamente do mesmo peso da criança que tínhamos no Porto. Mandámos vir a criança do Porto, e diferente do habitual, em que as colheitas são à distância, foi trazido o dador para uma sala de operações e foi colocado o recetor noutra sala. Foi tirar de um lado e pôr de outro. Essa criança tem hoje tem sete anos. Está no Porto e é uma criança saudável. É uma história bonita.

Porque é que diz que, às vezes, não estamos sós? É por causa destes casos? Alguma vez sentiu estar a operar a alguém e dizer assim: ‘Houve aqui uma coisa que me escapou’?

Não, esta é considerada a parte difícil e delicada da conversa, prende-se com aquilo que é o acreditar de cada um. Há algumas situações em que aquilo que acontece é tão inexplicável que, obviamente, os seres humanos, de acordo com o seu credo e com a sua interioridade – quando digo credo não tem a ver com religião, tem a ver com forças superiores – para quem acredita que exista, fica a pensar e acha que não está só. Às vezes funciona bem, outras vezes funciona mal, mas normalmente a gente lembra-se das vezes em que funciona bem. E falando com colegas meus, até internacionais, alguns me têm dito, ‘sempre achámos que não estávamos sós’ e, portanto, vale o que vale. Mas o que posso dizer é que nem tudo o que acontece é facilmente explicável pela ciência. Houve vários momentos em que coisas aconteceram que são difíceis de explicar, daí a colocarmos um nome de um santo ou de uma senhora por detrás disso é um bocadinho mais difícil. Mas é bom preservar esta interioridade profunda. Não vou elaborar mais, mas algumas vezes achei que de facto não estávamos sós.

Hoje há muitas séries de medicina na televisão, e as pessoas comentam muito as brincadeiras durante as operações. É muito comum alguém estar a operar e estar com brincadeiras? 

Nas operações há momentos que estamos concentrados nos tempos críticos que, às vezes, são um período de uma hora, duas horas e o silêncio é permanente. Pelo menos, eu imponho-o. As salas de operações portuguesas são barulhentas. Somos um país do Sul. Inglaterra era mais silencioso, mas pelo menos eu imponho o silêncio e sou conhecido como tal. Aliás, o barulho perturba-me e não permito barulho. Depois, quando estamos numa fase final, a fechar, o doente está bem, é a puxar a pele, a parede, são gestos importantes, mas menos nobres de perigo, aí pode haver uma anedota, com certeza. As pessoas são humanas e, sobretudo, a seguir a um grande período de tensão até pode haver algum período de riso, sem que isso signifique menor respeito. Costumo dizer aos meus colaboradores que qualquer um de nós, despido, nu numa marquesa, anestesiado e coberto de betadine é o ser mais frágil que existe. É um ser que merece toda a consideração e respeito que se possa ter. Mas também sou conhecido por operar com música clássica.

Tinha uma grande admiração por João Lobo Antunes, que o marcou em muito. Já agora, tinham em comum, pelo menos em determinado tempo das vossas vidas, o facto de ambos serem casados com anestesistas…

Sim, é verdade, Lobo Antunes foi casado com uma anestesista que trabalhava no Santa Cruz. Curiosamente, era a diretora de serviço da minha mulher, que também é anestesista. Havia aqui uma décalage de idades. Costumava dizer que falávamos muito quando trocávamos de roupa. No hospital da CUF tínhamos o cacifo ao lado um do outro e à tarde, quando íamos operar, normalmente encontrávamo-nos por volta das três, quatro da tarde e enquanto trocávamos de roupa falávamos da realidade. Era um homem superiormente inteligente, era um filósofo da Medicina, com uma memória prodigiosa, uma cultura geral muito boa e um pensador. 

Como foi ter uma carreira toda ao lado da mulher anestesista? 

Foi um privilégio enorme. 

Ainda hoje é anestesista… 

É minha anestesista na privada. Foi uma anestesista pioneira neste país, como foi, sobretudo, uma pedagoga de anestesia enorme. Treinou gerações e gerações de anestesistas, umas conseguiu reter no sistema público, outras foram daquelas que lhe foram dizer no final:’Gostamos muito de si, mas vamos trabalhar para a privada’. Vi-a verter lágrimas por isso, dedicada totalmente à causa pública, sem conhecer horários, nem nada. Relativamente a mim, foi a possibilidade de uma equipa sempre leal e competente. Fizemos muita coisa juntos pela primeira vez neste país e as pessoas têm o seu tempo e o serviço está feito. Sobretudo nos doentes que tratávamos e nos que formámos. E para mim foi um privilégio. É claro que também teve um inconveniente. Herdámos sempre as lutas e as querelas no serviço, que foram sempre partilhadas. É óbvio, apesar de termos tentado no serviço manter sempre uma distância, atuarmos como se não fôssemos casados. Costumava dizer que Isabel no Bloco era a anestesista que pior me tratava, é verdade, em termos de acutilância, mas é óbvio que o serviço continuava sempre e continua para desgraça das minhas filhas e na casa continuava sempre à mesa de jantar. Cada um dia dizia as suas e esse aspeto não foi bom, mas o aspeto de ajuda de disponibilidade a 100% e de cumplicidade, isso foi uma experiência irrepetível e útil.

Recordo-me da Paula, filha de João Lobo Antunes, contar que, por vezes, iam para os hospitais. O professor teve uma experiência ao contrário com a sua filha, isto é, com cinco anos teve que ser operada…

Sim, acho que isso marcou, tinha três anos. E isso marcou muito a minha mulher e marcou-me a mim e até marcou aquilo a que nos dedicaríamos que foi a cirurgia das cardiopatias congénitas.

Ela foi operada…

Ao coração, em Inglaterra.

Onde estavam a trabalhar…

Onde eu estava a trabalhar e a minha mulher também. Deixámos de trabalhar nesse período, como é óbvio. Mas isso marcou-nos muito. Marcou-nos muito em dois aspetos. No ramo que escolheria como especialidade, no caso dela, anestesia pediátrica, no meu caso, cirurgia cardíaca pediátrica. E marcou-nos muito ao ter percebido aquilo que os pais das crianças e os familiares dos doentes sentem quando os filhos estão na mesa de operações e eles ficam do lado de fora. Isso levou a que, durante toda a nossa vida, durante as cirurgias, a enfermeira circulante saísse e viesse por duas, três, quatro vezes dar informações aos pais de como estava a correr. Lá está, estamos a falar de humanização da medicina. É uma forma de humanização da medicina, porque sabemos o que é andar durante três horas nas ruas, em Inglaterra, à espera. Na altura, não havia telemóveis, ficávamos à espera de ligar para o hospital e de termos uma notícia.

Hoje em dia, as máquinas conseguem ler muito melhor o corpo, o interior do corpo e há uma tentação dos médicos de querem operar por tudo e por nada ou não? Ou há mais uma tendência? 

Pode é haver uma tendência das pessoas se basearem mais nos exames do que na clínica, do que no doente. Aliás, isso hoje passa-se com os carros. Quando tinha o meu velho Peugeot 204 ia à oficina e o senhor Diamantino punha a chave de parafusos em cima da cabeça do motor e ouvia o bater das válvulas e acertava o ralenti do ouvido. Hoje em dia eu levo o carro à oficina e começo a dizer que noto isto e dizem-me logo que não vale a pena, porque ele vai à máquina e depois dizem ‘precisa disto, preciso daquilo’. Hoje em dia, a medicina corre muito esse risco, só que nós não somos máquinas e, portanto, às vezes, é mais fácil pedir uma TAC do tórax do que perder dez minutos sobre o que é que o doente quer. Mas a maior parte dos doentes vai ao médico porque precisa de falar. Acho que temos que centrar a tecnologia, a medicina e o digital, muito agora, no papel que têm que é ajudar a arte social que é a medicina e não substituí-la. 

Não se pode deixar de ouvir o doente… 

É fundamental saber ouvir sempre o doente, sendo crítico e usando a experiência. Agora, na dúvida, encontra-se sempre uma boa justificação. Costumo dizer: é sempre muito mais importante saber quando não operar do que quando operar.

E gasta-se muito mais dinheiro…

O médico que está num balcão de urgência, que é, digamos, o primeiro contacto, é normalmente o médico júnior. Mas se houver um médico sénior a quantidade de exames que se poupam é enorme, porque o médico júnior, como tem menos experiência, a defesa que tem é pedir exames. Percebe-se isso, é uma coisa que se chama de medicina defensiva. Pode ser defensiva por questões médico-legais ou defensiva porque a pessoa não sabe e vai buscar exames. Um tipo mais sénior ouve o doente, diz: ‘Nã, isso não é nada, vá para casa’. Não quer dizer que não se engana, mas a probabilidade de se enganar acaba por ser pequena porque tem experiência, por isso é que a experiência é time driven. É preciso vivê-la, não se lê nos livros. 

E isso pouparia imenso dinheiro…

Pouparia, mas os médicos também seriam mais caros se lhes pagassem melhor. Mas o sistema também não contempla isso. 

Mas hoje em dia pedem-se exames por tudo e por nada… 

A medicina está hoje baseada muito em tecnologia de exames, então a imagem pede-se muita. Estou convencido que se pedem exames demais. 

Ainda faz pesca e vela? 

Pesca pouca, vela sim. E espero agora ter algum tempo mais para fazer isso. A minha família está a pensar que não vou arranjar esse tempo, mas farei o possível. 

Já não leva os seus netos a pescar? 

Levo os meus netos para a vela, levo-os para o barco.

Acha que Marcelo por nadar e andar tanto ajuda-o a ter tanta energia aos 74 anos?

O professor Marcelo é uma força da natureza. Mas faz por isso também. Sabe que as pessoas que têm uma atividade intelectual e física grande envelhecem mais tardiamente e têm menos doença de Alzheimer, isso está provado. O ocupar do cérebro, e acho que o professor Marcelo deve ter o cérebro muito ocupado, e a atividade física que faz contribuem para a jovialidade e para a juventude das pessoas. 

Há dias na televisão ouvi alguém dizer ‘sou cirurgião, não sou médico’. Acha que é cirurgião e não é médico? 

Eu? Digo o contrário, eu sou médico e depois sou cirurgião, por amor de Deus. Não sei quem é que disse isso, nem interessa…

Eduardo Barroso…

Vou-lhe dizer, há três hierarquias. Primeiro, sou pessoa e tenho obrigação de ser uma boa pessoa, depois sou médico. E ser médico é um estatuto muito próprio. Ser médico não é, obviamente, ser um sacerdote, mas é ser ungido também de qualidades que são especiais. E depois exerço na Medicina uma coisa que é cirurgia. Mas talvez o que me diferencia de alguns colegas meus é que sendo cirurgião sempre fui médico.

É uma boa resposta para Eduardo Barroso…

Eduardo Barroso não me perguntou nada e não lhe estou a responder nada. É a minha maneira de ver as coisas. 

Por que se diz que razão está ligada ao cérebro e a paixão está ligada ao coração? 

Parece que teve acesso à minha aula de jubilação. [risos] Durante muitos anos houve a noção de que, aliás, no tempo de Aristóteles, houve a noção de que o coração controlava o cérebro e as emoções. Isso mudou com Galeno: quem comandava o corpo era o fígado, eram os humores. As pessoas ainda comunicam: ‘Como está o teu fígado?’ ‘A minha figadeira vai andando’. Isso caiu depois, no Renascimento, e percebeu-se que o coração era, de facto, a sede da circulação e que as emoções residem no cérebro, numa parte do cérebro que é o sistema límbico, onde a gente tem os olfatos, as emoções, o instinto sexual, várias coisas. Curiosamente, hoje, desde há dois ou três anos, sabe-se que o número de influxos nervosos que o coração manda para o cérebro é superior ao número de fluxos que o cérebro manda para o coração.

Isso quer dizer o quê?

Prevê-se hoje que o cérebro, aliás, até se diz que no coração há o pequeno cérebro. É curioso que hoje se sabe que o coração influencia o modo como percecionamos a dor, as emoções. Portanto, que o coração seja obediente ao cérebro é verdade, mas que o cérebro recebe muitas aferências do coração também é verdade. Se é por isso que o coração metaforicamente está ligado ao cérebro, também é verdade que os doentes ficam muito ligados a quem lhes mexe no coração.

Como assim?

A relação que os doentes têm com os cirurgiões cardíacos é diferente da relação que os doentes têm com cirurgiões de outros órgãos.João Lobo Antunes costumava dizer: “Não percebo. O cérebro comanda a razão, ora você opera-os ao coração e eles ficam-lhe ligados a si pelas emoções do coração”. Eu ia dizia: ‘Ó João, são coisas que o coração conhece e a razão desconhece’. Estou sempre a receber chamadas e mensagens de pessoas que operei há muitos anos e não sou necessariamente lamechas com os doentes – opero-os e pronto – mas há um simbolismo muito grande que é ancestral, que vem da antiguidade, em que o coração é como sede das emoções e como sede da vida. De facto, há uma ligação. E essa ligação é dos doentes a nós, mas também é de nós aos doentes. Eu sempre liguei muito aos doentes. 

Uma das vezes que estive com o professor recordo-me que estavam várias pessoas a ligar e disse que atendia toda a gente e que até alguém dizia que tinha trazido uma galinha…

Ainda agora estive a arrumar o meu gabinete e tinha lá uma garrafa de aguardente que me tinham dado, uma aguardente de medronho. Há umas prendas mais valiosas que outras [risos]. Agora os doentes dão menos, está-se a perder a tradição. Um serviço médico à periferia levava sempre galinhas e coelhos vivos para casa. Depois passámos para a altura da Vista Alegre, depois a altura da porcelana Atlantis e depois a altura das canetas da Montblanc. São fases. Agora, neste momento perdeu-se.

Nem um medronho?

Depois veio uma lei do Ministério da Saúde, em que tínhamos de declarar as prendas superiores a 50 euros, enquanto para os deputados eram 150 euros. Daí, deduz-se que é muito mais caro corromper um deputado do que um médico. 

Não pode receber.

Poder posso, agora menos. De vez em quando, no Natal, um doente leva uma garrafa de qualquer coisa, mas houve uma altura, nos anos 90, na viragem do século, em que os doentes, em sentido de apreciação, davam os seus presentes. Hoje em dia acho que se toma muito o bom resultado e o bom cuidado como uma obrigação. E depois a lei também se encarregou de dizer que era preciso declarar as prendas, para impedir a corrupção médica e as relações, essas às vezes perigosas, entre o chamado complexo médico-industrial ou farmacêutico-industrial e a medicina propriamente dita. 

Mas isso não são doentes, são prestadores de serviço…

Mas claro, com certeza. Mas por isso tudo pagam os justos pelos pecadores e hoje tudo o que seja mais do que uma esferográfica por lei teríamos que declarar, mas ninguém vai declarar isso. Mas, de facto, perdeu-se um bocadinho essa tradição. Tenho muitas canetas boas dados por doentes e alguns relógios, é verdade, e eram um sinal de reconhecimento.

Mas isso quem tinha mais dinheiro, quem tinha menos dava o que podia… 

Tenho esta caneta, que é uma caneta Montblanc da gama mais baixa, tem o meu nome, ‘Professor Fragata’, e foi-me dada por um velhote que operei em Santa Marta. Operei ele ou a mulher, não me recordo, em Santa Marta, uma pessoa de uma pobreza extrema e que uns dias depois de ter tido alta, foi ao meu gabinete dar-me esta caneta. Tenho a certeza que representou para ele um esforço das economias e tenho canetas destas de ouro e uso sempre esta caneta, porque de facto sei que representa uma gratidão enorme e um esforço despendido económico que não devia ter tido e ninguém lhe pediu, como é óbvio. E lembro-me perfeitamente de me ter dado a caneta e percebi que foi o melhor que ele pôde, é a mais barata que há da Montblanc, mas ainda investiu para pôr Professor Fragata. Esta caneta é a que uso depois desse dia, é a caneta que tenho usado, tirando algum casamento ou alguma cerimónia melhor, em que levo uma das outras. Esta é a caneta que uso diariamente, porque simboliza para mim um reconhecimento brutal. Mas sabe quando a gente tem reconhecimento, não tendo que pagar o esforço por isso, o mérito do reconhecimento é relativo, mas quando alguém verdadeiramente reconhece alguém na gratidão e tem que pagar por isso, o preço que lhe dói, então isso é uma natureza especial.

Quer dizer alguma coisa em relação à última aula?

Quero dizer que isto foi uma viagem com altos e baixos, mas que olhando para trás acho divertida e sobretudo útil.