Por José Cabrita Saraiva
Quando meti a chave à porta e a rodei quatro vezes não podia imaginar o que ia encontrar do lado de lá, no hall de entrada do apartamento dos meus tios, fechado há perto de um ano. O cadáver estava virado de barriga para cima, com os frágeis membros rígidos, a apontar vagamente para o teto. Supus que estivesse ali há algum tempo. Qual teria sido a causa de morte? Não havia sangue à vista nem quaisquer outros indícios, só mesmo o cadáver. O cadáver de uma barata.
Era um sinal apropriado. Afinal, embora não fosse roubar nada, o que me levava àquele apartamento de férias era uma missão relacionada com mortes e crimes: recolher uma Colecção Vampiro completa que o meu tio Nuno generosamente me ofereceu.
Ele próprio colecionou-os de forma metódica, quase fanática, desde o primeiro número da primeira série – Poirot Desvenda o Passado, de Agatha Christie, publicado em 1947 – até ao último número, o 703, Do Álbum de um Detective, de Headon Hill, publicado em 2008.
Empoleirado em cima de uma cadeira, varrendo com o olhar as prateleiras repletas, as lombadas iam-me revelando títulos sugestivos: O Mistério dos Fósforos Queimados, A Chave de Vidro, A Mão Decepada, O Barbeiro Cego, A Sombra Chinesa, Um cadáver na Biblioteca – lá voltei eu a lembrar-me da pobre barata – e, o meu favorito, Morrer Não é o Fim, um romance de Agatha Christie passado no Antigo Egipto.
Mas o que mais me intrigou foi talvez a quantidade de títulos assinados por Georges Simenon. Que fecundidade prodigiosa! Socorro-me agora do que escreveu Marc Lefrançois em Histoires insolites des écrivains et de la littérature: «Georges Simenon foi o mais prolífico autor de língua francesa de todos os tempos. Entre 1919 e 1980, terá escrito mais de 500 livros, dos quais 218 romances (incluindo romances do inspetor Maigret) em nome próprio e 300 sob 17 pseudónimos, cuja tiragem ultrapassou os 500 milhões de exemplares, assim como 25 obras autobiográficas e mais de um milhar de contos e de artigos de jornal». Escrevia de rajada e chegou a completar um livro em 25 horas, o seu recorde. Como conseguia produzir a esta velocidade? Continua Lefrançois: «Na véspera de começar um livro, Simenon limpava os seus cachimbos e duas máquinas de escrever (para o caso de uma delas se avariar), desdobrava um mapa da região onde a história se iria desenrolar, escrevia os nomes das personagens num envelope. Sete capítulos mais à frente, sete dias depois, o romance estava terminado». Dizem as más-línguas que gostava especialmente de trabalhar na casa de banho.
A rapidez de Simenon era tão célebre que se conta a seguinte história a seu respeito (mais uma vez, cito Lefrançois):
«Um dia, Alfred Hitchcock telefonou-lhe:
– Lamento mas não lhe posso passar a chamada, Sr. Hitchcock, respondeu-lhe a secretária, ele começou agora mesmo a escrever um novo romance.
– Não faz mal, teria respondido Hitchcock, eu fico à espera que ele acabe!».
Regressemos ao apartamento dos meus tios. Enquanto ia pondo os volumes em sacos, ocorreu-me que o nome da coleção, apesar das conotações sinistras, é particularmente feliz. Pequenos e leves, em especial se o papel estiver já um pouco ressequido com a idade, os livros da Vampiro parecem-se de facto um pouco com morcegos. E, se os abrirmos, a curvatura das páginas, vista de perfil, até faz lembrar as asas.
Mas, embora cada volume em si seja leve, quando falamos de 700 volumes o caso muda um pouco de figura. Quanto pode pesar um saco cheio de vampiros? Diria que depende. Depende, entre outros fatores, da quantidade de sangue que eles tiverem conseguido chupar. E as páginas destes vampiros estão bem ensopadas… É assim que os leitores de policiais gostam deles.