O som e a linguagem são escutados, mas não podem ser tocados nem vistos, e sempre que uma canção produz um tal efeito naquele que a ouve ao ponto de se sentir tocado, esta impõe-lhe um estado alterado que chega a envenenar-lhe a consciência ou os sentidos. Os próprios deuses não podem ser vistos, mas apenas escutados. Aparecem-nos como vozes e, tantas vezes, o sagrado é definido como o momento em que se dá uma comunicação.
Pascal Quignard recorda-nos que o décimo hino do Rigueveda define os seres humanos como aqueles que, sem o saberem, têm o sentido auditivo como o seu chão. “As sociedades humanas têm a linguagem como o seu habitat”, reforça o escritor francês. “Não encontram abrigo nos mares, caves, nas cadeias montanhosas ou nas densas florestas, mas sim na voz que trocam entre si e nas suas estranhas pronúncias. E todos os actos de comércio e ritos são executados dentro desta maravilha acústica, invisível e sem distância, a que todos obedecem.”
Quignard frisa ainda que o que nos permite ouvir e compreendermo-nos uns aos outros é também capaz de ouvir e compreender por si mesmo. Da língua, esse músculo que constrói infindáveis variações vocálicas e através do esforço para nomear o mundo com propriedade, criando esse vínculo encantatório entre o que é proferido e o que descobre ao seu redor, assim é que o homem vai ao encontro do que existe fora de si, criando um sentido de progressão, um além, e, necessariamente, uma ideia de presença e uma representação da coisa na sua ausência, e com ela a ideia de descontinuidade, morte, união ou divisão, de intervalo, duelo, sexo, conflito ou discórdia.
A língua ou o idioma significam por isso, para uma comunidade, a sua capacidade de estabelecer uma relação com o outro, com a natureza. “A linguagem, em sentido estrito, não estende aquilo que nomeia, mas exterioriza-o”, esclarece Quignard. “Introduz o lado de fora na plenitude, introduzindo assim a demora no que antes era imediato”. Deste modo, as coisas arrastam-se através da memória do mesmo modo que os sons se combinam produzindo a música que nos embala no momento da espera, que, por sua vez, dá força ao desejo. Mas Quignard vinca que, no seu começo, todos os idiomas adquiriam sons cujo propósito era subtrair, proceder a uma excisão do que acabara de ser dito, e que era invocado de forma a colocar de parte certa coisa ou ser. A atenção foca-se num elemento e procura conhecê-lo ao mesmo tempo que o separa do resto.
Além das suas narrativas e ficções, este escritor tem vindo a desdobrar a sua obra num conjunto de instigantes ensaios escritor num estilo incisivo em que procede a uma análise penetrante de aspectos decisivos da cultura, entregando-se a devaneios que soam clandestinos tanto mais quanto se acercam dos signos e elementos nucleares de entre a vasta tradição dos saberes que hoje têm vindo a ser esquecidos ou desdenhados por essa ignorância petulante e essa ânsia de corrigir o passado, de tal modo que a sua estupenda erudição, ensopada nas brumas da antiguidade clássica, nos parece guiar na interpretação de mistérios cabalísticos quando nos está a devolver às fundações da nossa própria identidade.
Entre as suas especulações, Quignard diz-nos que é possível que o acto de escutar cânticos ou composições musicais pode ter sido não tanto uma forma de nos distrair de um certo terror acústico face às ameaças que nos cercavam, mas sim uma forma de restabelecer esse estado de alerta animal. “O que caracteriza a harmonia é a forma como ressuscita a curiosidade acústica que se perde assim que a articulação e a semântica de uma língua toma conta de nós”.
E, no entanto, há um outro lado, há também em nós uma luta contra o silêncio, e esse esforço de uma inteligência para assumir controlo sobre a imaginação e filtrar os seus sentidos, uma inteligência que emerge e se afina ou alcança uma harmonia apenas através da iluminação dos espíritos entre si, das ideias a que se chega ganhando o balanço em direcção ao outro, cada um comprometendo-se a ir além dos seus lugares preferenciais, arriscando hipóteses de inquietação comum, riscando bem para lá dos contornos da sua solidão. Ou seja, deixando o lugar estático, procurando uma frequência que possa ser sintonizada não no interior de si, mas nas posições intermédias, nos espaços de irresolução, de metamorfose e com vista à transcendência.
Georges Bataille diz-nos que “na base de cada ser existe um princípio de insuficiência”, um princípio de incompletude, sendo isto o que comanda e ordena a possibilidade de um ser. Por sua vez, Maurice Blanchot afirma que é indubitável que esta insuficiência apela à contestação, e que a diferença que caracteriza a existência humana é a forma como esta se coloca radical e constantemente em questão. “O ser busca, não o reconhecimento, mas a contestação: para existir, dirige-se ao outro, que o contesta e por vezes o nega, para que ele somente possa começar a ser dentro desta privação que o torna consciente (é ela a origem da sua consciência) da impossibilidade de ser ele mesmo (…), experimentando-se como exterioridade sempre preliminar, ou como existência estilhaçada por completo, não sendo feito senão de um desfazer-se constante, violento, silencioso”, escreve Banchot no livro “A Comunidade Inconfessável”, publicado entre nós pela Sr. Teste, com tradução de Joana Jacinto.
Se o destino de um grande número de vidas privadas é a mesquinhez, a comunidade surge como um limite a essa degradação e um elemento vinculador e de expansão da existência de cada ser, que se entrega a uma harmonia a partir do momento em que “evoca o outro ou uma pluralidade de outros (ao assemelhar-se a uma explosão em cadeia que precisa de determinado número de elementos para se produzir, mas que, se esse número não for determinado, corre o risco de se perder no infinito, tal como o universo, que se constitui a ele próprio ilimitando-se numa infinidade de universos)”.
Blanchot entende assim que a existência de cada ser convoca uma comunidade: “comunidade finita que tem, por sua vez, o princípio na finitude dos seres que a compõem e que não suportariam que aquela (a comunidade) não elevasse ao mais alto grau de tensão a finitude que os constitui”. Assim, em cada ser não é apenas a luta da memória contra o esquecimento o que se exprime, mas esse esforço de não se perder um traço de continuidade entre seres, em que o texto vibra de experiências que se mesclam, uma razão que não pertence a um só e isolado, mas surge da negociação, e vem animada do ímpeto humorístico que é o eixo fundamental da conversação, pois permite esse enlace entre compreensões diferentes, essa relação tolerante, expansiva, que se move segundo o princípio de que a diversidade constrói uma música governada pelo génio do acaso, esse vigor meio imprevisível, capaz de ressonâncias extraordinárias.
Temos (ou tínhamos em tempos) esta experiência ao lermos o jornal, rasgá-lo em pedaços, refazer a crónica, experimentar a relação mais desavergonha, passear sem destino pelas secções, produzir associações meio selvagens, nessa forma de seduzir o caos, estender uma estrada sobre qualquer superfície, e, assim, vamo-nos revezando na condução, uns tantos à boleia: “Eu ofereço-te o/ amor a terna intimidade o riso e essa suave conversa que/ prolonga o acto da carne. A doce liberdade (se assim o/ entenderes) de não aceitares nenhuma destas coisas”, escrevia Estradão de Sardes, no séc. II a.C.
E se a comunicação nunca pode fazer-se sem essa margem silenciosa, esse balanço em que cada um por vezes se retira para depois se entregar ao outro, Natalia Ginzburg, num livro de ensaios e memórias com o título “As pequenas virtudes”, lembrava que havia uma pressão cada vez maior na sociedade para as pessoas se retirarem e alhearem, e falou no silêncio como um vício que estava a envenenar a nossa época, exprimindo-se com um lugar-comum: “Perdeu-se o gosto pela conversação”. Esta escritora italiana lembrava que essa expressão fútil, mundana, estava embalada na compreensão de uma coisa verdadeira e trágica. “Ao dizermos ‘o gosto pela conversação’, não dizemos nada que nos ajude a viver: mas a possibilidade de uma relação livre e normal entre os homens, isso sim, falta-nos, e falta-nos ao ponto de alguns de nós se matarem por terem consciência desta privação. O silêncio ceifa as suas vítimas diariamente. O silêncio é uma doença mortal.”
Na altura em que foram redigidos os textos que integram o volume acima citado, estávamos ainda a largas décadas desse fenómeno de usurpação de todo o espaço comunitário pelas redes tecnológicas e pelo enorme complexo da internet, que, como defendeu o filósofo Bernard Stiegler, estabeleceu as condições para um “consumo massificado de comportamentos” e a hipersincronização da consciência, provocando a “decomposição do social enquanto tal”. Este pensador francês analisou a forma como o “reino hegemónico do mercado”, em que o cálculo e a computação se alargam a todos os domínios da vida, tornava impossível alguém amar-se ou amar outras pessoas, ou ter qualquer expectativa de futuro. Stiegler, que viria a suicidar-se no verão de 2020, sentiu o deserto a crescer à sua volta, e diagnosticou uma nova forma de miséria que, em lugar de ser atirada para as margens da sociedade, constitui o próprio seio desta sociedade dos consumidores, sendo que, paradoxalmente, “o seu seio tornou-se um gueto”: “largas faixas da população vivem em espaços urbanos desprovidos de qualquer urbanidade, enquanto uma minúscula minoria pode desfrutar de um meio de vida digno desse nome”.
No livro “Da Miséria Simbólica”, este filósofo nota como “uma grande parte da população está hoje privada de qualquer experiência estética, estando inteiramente submissa ao condicionamento estético em que o marketing consiste e que se tornou hegemónico para a imensa maioria da população mundial – enquanto a outra parte da população, aquela que ainda experiencia, fez o luto pela perda daqueles que se afundaram neste condicionamento”.
Curiosamente, Ginzburg assinalou o paradoxo deste momento em que, ao mesmo tempo que muitos de nós sentimos que não partilhamos qualquer experiência estética comum com tantas das pessoas com quem nos cruzamos diariamente, “jamais como hoje os destinos dos homens estiveram tão estreitamente interligados, de forma que o desastre de um é o desastre de todos”. E a autora italiana prossegue: “Então, verifica-se este facto estranho: que os homens se encontram estreitamente ligados ao destino uns dos outros, de tal modo que a queda de um arrasta milhares de outros seres, porém, ao mesmo tempo, estão todos sufocados pelo silêncio, incapazes de trocar uma palavra livremente. Por isso — porque o desastre de um é o desastre de todos — os meios que nos oferecem para nos curarmos do silêncio revelam-se insubsistentes. Sugerem-nos que nos defendamos do desespero com egoísmo. Mas o egoísmo nunca resolveu desespero algum. Estamos até demasiado habituados a chamar doenças aos vícios da nossa alma e a suportá-los, a deixar-nos governar por eles, ou a acalmá-los com xaropes doces, a tratá-los como se fossem doenças. O silêncio deve ser considerado e julgado no âmbito da moral. Não nos é dado escolher sermos felizes ou infelizes. Mas é preciso escolher não se ser diabolicamente infeliz. O silêncio pode atingir uma forma de infelicidade fechada, monstruosa, diabólica: entristecer os dias da juventude, tornar o pão amargo. Pode levar, como já se disse, à morte.”
Entretanto, num panfleto que, mais do que um mero documento de análise da crise em que estamos imersos, pretende ser uma forma de agitação e de incitamento, Jonathan Crary publicou este ano “Terra Queimada”, livro que acaba de chegar às livrarias com a chancela da Antígona, e que é com toda a probabilidade o mais contundente dos exames a esta era digital, em que o mundo se abandonou ao frenesi de um modo de ininterrupta produção, consumo e extracção de recursos, o qual não poderá resultar noutra coisa senão numa terra devastada, com a “degradação das comunidades e empobrecimento da experiência interpessoal e social”. Logo na primeira linha deste texto urgente, Crary diz-nos que “se houver um futuro habitável e partilhado no nosso planeta, será um futuro offline, desligado dos sistemas e das operações de destruição do mundo do capitalismo 24/7”.
No veemente diagnóstico que traça este teórico norte-americano atingimos já a fase terminal do capitalismo global, e todo o complexo da internet funciona como uma hiperestrutura paralisante, “uma máquina implacável de vício, solidão, falsas esperanças, crueldade, psicose, dívida, vidas gastas, corrosão da memória e desintegração social”. Tudo isto é um cenário que por fim vem cumprir a profecia de Marx feita na década de 1850, tendo o autor de “O Capital” entendido a inevitabilidade de uma unificação capitalista do mundo, no qual progressivamente se reduziriam os limites à velocidade de circulação e troca graças à “aniquilação do espaço pelo tempo”.
Outra forma de nos reconduzir ao silêncio é sepultar-nos debaixo de um ruído exasperante, em que se torna impossível qualquer forma de comunicação a um nível profundo, e que, deste modo, expulsa o elemento sagrado deste mundo, com o mercado mundial a conseguir levar à “dissolução da comunidade” e de quaisquer relações sociais independentes da “tendência universalizante do capital”. Permanentemente conectados, chegamos a uma realidade desencantada em que não se consegue ouvir as vozes dos deuses, que não são outra coisa senão esse sentido de absorção e comunhão em torno de certas experiências estéticas que geram em nós um desejo comum de ir ao encontro de uma realização mais plena. Ao contrário, entregamo-nos a uma apatia generalizada à medida que a cultura perde terreno e se impõe o ideal da utilidade, do lucro, cumprindo todos nós essa pena perpétua numa era que se caracteriza por um “niilismo aniquilador”, com a desigualdade económica, o desmantelamento dos serviços públicos e a criação do endividamento estrutural a servirem de pauta para a desintegração das formas estabelecidas de solidariedade social. Assim, e perante a sensação de nos ser exigido todos os dias um esforço cada vez maior apenas para não sermos descartados e reduzidos a uma existência de humilhação constante, não é difícil compreender como o ritmo das nossas vidas é marcado pelo desânimo e pelo desespero abrindo caminho à actual epidemia de depressões, adicções e suicídios.