(Entrevista originalmente publicada a 2 de outubro de 2021)
Num recanto do gabinete, mostra-nos a imagem de Nossa Senhora do Mar, Nossa da Senhora do Ar, de S. Miguel Arcanjo – padroeiro da PSP. E ainda Nossa Senhora do Carmo, que protege a GNR, São Nuno e S. Jorge, padroeiro do Exército. «É a minha tropa», sorri D. Rui Valério, bispo das Forças Armadas e das Forças de Segurança desde outubro de 2018. Na sala há livros, as insígnias militares na parede, recordações de missões à civil e como capelão militar e um camuflado pendurado, para quando é preciso.
Fez a recruta no Hospital da Marinha, mas o chamamento para a oração e forma de estar na vida viveu-o aos sete anos, no Hospital Universitário de Coimbra, onde esteve internado largos meses. Hoje com 56 anos, o primeiro padre português da congregação dos missionários monfortinos a ser elevado a bispo quis continuar a viver com os irmãos na comunidade que o acolheu nos anos 90, na Póvoa de Santo Adrião, pondo de parte a hipótese de se instalar na casa de bispo em Lisboa.
No prédio em plena zona urbana, está no seu ambiente, embora a agenda e a assistência religiosa a um universo de 300 mil militares e polícias – ativos, na reserva e na reforma – o leve a percorrer o país. Acorda cedo e depois da oração e meditação corre uma hora por dia, porque é preciso cuidar do espírito e do corpo, diz. Sobre as polémica em torno da sucessão do Chefe do Estado-Maior da Armada, diz que acompanha com tranquilidade: «À política, o que é da política».
Há três anos disse que não sabia por que é que o Papa Francisco o tinha escolhido para bispo das Forças Armadas e Forças de Segurança. Já tem uma resposta?
Cada vez para mim é um enigma maior. Nunca temos a resposta concreta e profunda sobre quais são as verdadeiras e reais intenções quando pensam no nosso nome.
Era padre aqui na Póvoa de Santo Adrião, cheio de ocupações.
Sim, um padre feliz, tal como hoje sou um bispo feliz. Na altura era um padre duplamente feliz porque estas comunidades me davam a oportunidade para realizar aquilo que mais me enche, desde logo a oportunidade de ter uma vida de oração, seja a oração pessoal, seja a oração comunitária. Depois porque é uma comunidade onde é já assumido que a oração é primordial em qualquer caminhada. É uma comunidade que me espicaça para estar presente, que tem sede de aprofundar.
E um dia tocou o telefone. Foi o Papa Francisco a ligar?
Não foi, mas foi quase (risos). Foi D. Manuel Clemente, que me convocou para comunicar esse desejo do Papa Francisco. Há alguma diferença entre o Papa Francisco e o D. Manuel Clemente, mas ambos são bispos de grandes dioceses e importantíssimas capitais.
Pensou que ia ficar sem tempo para as outras coisas que gosta de fazer? Já me contou que tenta correr uma hora por dia.
Na altura não pensamos nisso. O que sobressai é que a escolha de alguém para Bispo insere-se num caminho de servir a Igreja, servir o mundo e servir Jesus Cristo. D. Manuel Clemente criou esse ambiente espiritual, não foi nada burocrático. Portanto, aquilo que à partida podia suscitar uma reação de um certo temor pela grandeza da responsabilidade, pela complexidade, foi ultrapassado pelo sentido do serviço, que me deu uma tranquilidade que depois foi o que ficou como meu lema: «Nas Tuas Mãos». Percebemos que não somos que simples trabalhadores nesta vinha do Senhor e o verdadeiro guia é Jesus Cristo.
Tornou-se bispo de quantos homens e quantas mulheres?
O que está estabelecido é que são os militares e elementos das forças de segurança no ativo, na reserva, na reforma e respetivos familiares. Andará à volta de 300 mil pessoas. O bispo não está sozinho, neste momento temos 40 a 45 capelães, contando com capelães na reforma e pontualmente a colaboração de capelães civis, que nos dão uma imensa ajuda.
A missão da assistência religiosa nas Forças Armadas e nas Forças de Segurança tem diferentes dimensões. A dimensão espiritual e religiosa é a fundante mas depois existe o acompanhamento das famílias, da própria caminhada existencial que cada um está a fazer, por muito distraído que ande, e que por vezes só toma consciência dessa caminhada existencial humana de aprofundamento quando há situações limite.
Que acontecem com maior frequência neste universo.
E com contornos diferentes. Enquanto na sociedade civil uma situação extrema é quando acontece um nascimento, uma doença ou uma morte repentina, no âmbito das Forças Armadas uma situação limite pode ser o súbito decreto de ter de ir servir o país em qualquer parte do mundo, uma catástrofe ou simplesmente a imprevisibilidade da missão. Conto-lhe um exemplo que me emocionou quando fui capelão militar na Marinha.
Foi onde começou como padre.
Comecei na Academia Militar e depois fui para a Marinha e o percurso de capelão militar foi quase sempre na Marinha, primeiro no Hospital da Marinha no Campo de Santa Clara e depois na Escola Naval. Havia uma guarnição a bordo de uma corveta, que tinha entrado ao serviço de navegação contínua em julho de 2009 e era para ser rendida em fevereiro de 2010.
Andava a navegar, raramente vinha a Portugal. Quando chegou a fevereiro de 2010, a corveta que os ia subsistir teve problemas e tiveram de continuar a navegação. Entrei a bordo a acompanhar uma turma de cadetes em julho de 2010 e aquilo que mais me emocionou foi um primeiro-sargento que tinha uma menina com três, quatro anos, no infantário, e a quem ligava quando se aproximavam de terra. E aquela menina começava a fazer perguntas ao papá: «Então vens me buscar hoje», «olha tu não vens mas a prima teve o papá a ir buscá-la». O sentimento daquele pai. Há uma certa impotência e como qualquer pai pressente a necessidade de estar junto dos filhos, um militar também.
Essa mágoa de não ter acompanhado tanto os filhos é comum nos militares e nas polícias?
Sim mas acho que ao mesmo tempo há ali um quid, como diziam os antigos, em que isso é canalizado para o desenvolvimento dos filhos, na promoção da autonomia e da independência, de uma forma de estar. Que ninguém me leve a mal e pode ser que esteja a exagerar, mas a perceção que tenho é que os filhos dos militares têm um processo de maturação mais precoce que os outros, não têm a proteção do pai que está sempre a ali.
A propósito, há uns anos ouvi uma senhora a contar uma história engraçada da filha, que ao ver uma cerimónia na televisão vê militares de branco a marchar e diz: «Mamã, olha tantos papás ali». É muito isto.
A Diocese completa 55 anos em 2021. Ainda faz sentido haver uma diocese específica na Igreja para as Forças Armadas e forças de segurança?
Costuma-se dizer que toda a gente é bom juiz em causa própria. Pessoalmente considero que, não só faz sentido, como é cada vez mais latente a sua necessidade. Não falo do aspeto institucional, mas para as pessoas. Só a pouco e pouco me vou apercebendo como além do acompanhamento espiritual e humano que o capelão e o bispo representam – até porque ao capelão se diz e se segreda coisas, situações e sentimentos que não se partilham com mais ninguém – há outra coisa fundamental: aquilo que dizemos nos diferentes momentos.
Ainda há dois dias encontrava-me com um general e que invocava memórias de capelães hoje já na reforma e dizia que mais do que aquilo que eles faziam, era o que eles diziam nos diferentes momentos. E isso é uma responsabilidade acrescida para nós, termos a consciência de quando somos chamados estão ali pessoas que fazem guia daquilo que dizemos.
Nunca sentiu que, num Estado laico, poderia ser questionada essa presença?
Sou o primeiro a ter um respeito imenso pela laicidade. A laicidade vem da própria perspetiva judaico-cristã. Quando Deus decide dar vida ao mundo, transmitir ser e existência a qualquer coisa diferente de si própria, foi quando se abriu a laicidade. A laicidade nas Forças Armadas não é um peso, é um bem e agradeço a Deus não ter de me envolver em aspetos que não tenho sequer conhecimento.
Tomar decisões?
Sim ou questões militares. Já viu o que seria se um padre fosse chamado a debitar sobre armas ou sobre isto e aquilo…
Os seus antecessores eram ainda assim publicamente mais interventivos.
Eu conheço-me um bocadinho e sei as minhas potencialidades e os meus limites. Há aqui diferentes questões e não estou a fazer comparações. Uma coisa é termos consciência de que a Igreja tem uma perspetiva em relação a todo o real. A Igreja tem a incumbência – aliás como diz um grande documento do Concílio Vaticano II que é o Guadium et Spes – de partilhar as alegrias, as tristezas e de ser luz para iluminar o caminho da humanidade. Uma coisa é estarmos aí nesse aspeto.
Outra coisa diferente e para a qual a Igreja não está mandatada – até porque Jesus disse «a César o que é de César e a Deus o que é de Deus» – é ficar ocupada com a gestão da coisa terrena. Isso está esclarecido não só desde o Evangelho como depois sobretudo naquilo que é o capolavoro [obra-prima] referencial da cultura ocidental, A Cidade de Deus, de Santo Agostinho.
Não quer dizer que a Igreja não esteja presente no mundo nas coisas terrenas, o que é uma evidência e cada vez mais latente. Mesmo agora uma vez por mês tento, nem sempre consigo, participar num grupo que surgiu aqui na comunidade e vai aos sem-abrigo levar comida e roupa. É uma forma de estar no mundo, zelar pelo bem-estar não só espiritual, anímico, afetivo mas de cariz terreno.
É o mandato de Jesus: dar de comer a quem tem fome, vestir a quem não tem, visitar quem está preso e doente. Uma das coisas que sobressaiu nesta pandemia e continuará a sobressair nos próximos tempos foi verificarmos que a Igreja foi decisiva no socorro concreto e material às pessoas, seja em alimentos, no corresponder aos compromissos que as pessoas têm de renda, luz, água e a Igreja esteve lá. Tal como foram decisivas as Forças Armadas e as Forças de Segurança.
Que imagem guarda deste mais de ano e meio de pandemia?
É uma imagem que me faz vir as lágrimas aos olhos. De repente ver uma inteira nação, inteiras nações, quase que vergadas a uma força desconhecida que não se sabia bem o que era. Ver o mundo nesta situação foi desolador.
D. Manuel Clemente escreveu na altura: «Foi como se o dia escurecesse a meio».
Talvez o tivesse sentido ainda com mais dramatismo, foi como se de repente um grande pedregulho tivesse caído e esmagado o mundo. Olhar para as ruas e não ver ninguém. E uma das coisas que me impressionou muito foi a ausência de perguntas, de interrogações.
A comunicação social nunca a vi tão expansiva, tão gritante, alarmista até, mas era um alarmismo que alarmava, não houve nenhuma instância que tenha levantado o braço e perguntasse: mas qual é a origem? Como sucedeu? Que sentido faz isto? Não houve e não há perguntas. É como se a humanidade estivesse e permanecesse adormecida debaixo de um peso para o qual toda a gente acha que foi inevitável. Aconteceu porque tinha de acontecer. Não é verdade. Não tinha de acontecer, ou não tinha de acontecer assim.
Acha que houve incúria dos países?
Não estou a dizer isso, o que digo é que me impressionou essa ausência de questões. Aquela particularidade que nós no Ocidente sempre tivemos, há pouco falei de Santo Agostinho mas vou mais atrás, desde Platão, passando por São Tomás de Aquino, Kant, Hegel, Nietzsche, Heidegger, Levinas. Nós somos herdeiros deste filão. Onde é que isso está? Os único filósofos que vi com alguma inquietação interior foram Edgar Morin, um homem de 100 anos, e Bernard-Henri Lévy. Temos de fazer perguntas porque é nas perguntas feitas que encontramos soluções.
Não gostou de ver os cartazes na janela a dizer vai ficar tudo bem.
Percebo-os, mas preferia que tivesse surgido esse cartaz: ‘Porque é que isto acontece e a sociedade não foi capaz de fazer essa pergunta’. Acho que perdemos essa capacidade de nos interrogarmos.
E vê alguma explicação?
O que significa uma sociedade ser incapaz de fazer perguntas, de se questionar? Não haja dúvida nenhuma de que, como já dizia Aristóteles, a inteligência de fazer uma pergunta é superior à de lhe dar uma resposta. Penso que vivemos num tempo em que o próprio pensamento se tornou um pensamento calculante e não dá hipótese para grandes perguntas, procura-se o óbvio.
Temos visto que quem questiona alguns aspectos é enquadrado naquilo a que se tem chamado os negacionistas, de quem nega a pandemia a quem foi tendo dúvidas. Não põe todos os negacionistas no mesmo saco?
Nem sequer sei o que isso é. Um dos temas que mais tenho estudado, seja como pessoa que gosta de pensar, seja por afetividade cultural, é o contexto dos campos de concentração nazi. Numa das teses de mestrado que fiz um dos autores sobre o qual me debrucei foi Elie Wiesel. A palavra negacionista para mim é para as pessoas que negam o holocausto e os campos de concentração.
É uma palavra com a qual deveríamos ter cautela. Não invocar em vão esta palavra. Percebo que há uma pobreza de vocabulário e que a nossa sociedade não tem imaginação para muita coisa e para decifrar o fenómeno, mas usou-se uma palavra deturpando o seu significado original. Um negacionista é alguém que se recusa à evidência das atrocidades cometidas em Auschwitz, em todos os campos.
Para designar estes movimentos, que penso que são muito insignificantes, pelo menos em Portugal, deveríamos usar outra palavra, por respeito àqueles milhões de pessoas que morreram no Holocausto e em relação aos quais existe de facto hoje uma ampla franja cultural e ideológica que tenta negar. Isso sim, preocupa-me. Em relação à pandemia, os efeitos nefastos são de tal ordem que toda a gente os vê.
O impacto na Saúde?
O impacto em todos os setores. Não foi uma nação bloqueada, foram várias nações, e ainda assim o impacto que teve em termos de mortes. Será que daqui a 10 ou 20 anos vamos ouvir falar destas pessoas? Não sei. Mas viver algo assim exige-nos a todos perguntas e foi isso que impressionou não haver. Claro que pandemias e pestes sempre existiram, cada uma no seu tempo, e houve imediatamente quem dissesse que é cíclico, mas podemos interrogar-nos na mesma.
Não fazer perguntas tornou mais governável a situação?
Acho que se tivesse havido mais perguntas teria acontecido uma coisa desejável: a participação dos cidadãos na procura de soluções, alternativas, propostas. Há um divórcio na sociedade em que, a páginas tantas, a única coisa que ainda consegue ser mobilizadora é o futebol.
É verdade que houve uma adesão extraordinária à vacinação e que a pandemia foi dos poucos momentos em que sentimos a nação unida, mas gostava que tivesse contribuído para envolver as pessoas na mudança, reconhecer que a sociedade tem estado apática em relação a temas como as questões ambientais, que têm sido tema ainda de uma certa elite, ou o envelhecimento e despovoamento do Interior.
Mas voltando papel das Forças Armadas e das Forças de segurança, penso que foram uma das razões para a grande unidade que se viveu no país.
Nos últimos meses, o vice-almirante Gouveia e Melo foi o protagonista desse combate. Como o viu no papel de coordenador da task-force?
Com muita naturalidade porque o conheço pessoalmente e conheço as suas habilitações.
É um homem crente?
Ele já disse publicamente que é crente. É um homem de fé, muito inteligente. Com uma inteligência para a matemática que impressiona.
Recorda algum episódio com ele?
Conto uma história de uma semana que estive com ele numa visita oficial a São Tomé e Príncipe. As nossas Forças Armadas têm uma embarcação em São Tomé e Príncipe, o Zaire. A certa altura fomos a Neves, onde uma irmã portuguesa, a irmã Lúcia, tem uma obra magistral com a sua congregação. Fomos lá visitá-los, levámos algum material escolar e depois passámos por todas as turmas para nos apresentarmos, para falarmos sobre a paz, tudo isso.
O vice-almirante Gouveia e Melo é um apaixonado por submarinos. Em todas as turmas, fazia um desenho no quadro e perguntava às crianças se sabiam o que era. Numa classe alguém disse «é um submarino». Ficou tão comovido que, àquele menino, deu um lápis que andava com ele desde os tempos de cadete, era precioso. Ali apreendi que além de ser um homem de caráter desprendido, é um homem que consegue oferecer aos outros, fazer da vida uma oferta.
E na pessoa do vice-almirante coloco todos os militares que oferecem tudo o que mais de precioso são e têm. Os militares, assim como as Forças de Segurança, dizem no seu juramento: «E, se preciso for, derramar o próprio sangue…» E vivem isto. Um pequeno gesto como este não é ocasional, tem essa profundidade. E como dizia, as Forças Armadas foram fundamentais em diferentes níveis, na resposta operacional à pandemia, no acudir aos lares e depois tiveram a sua coroação, de certa forma, na campanha de vacinação.
Mas para mim, as Forças Armadas e de Segurança foram determinantes para o ambiente de serenidade que se criou a nível nacional. Pudemos concentrar todas as forças da nação no combate à pandemia, não houve necessidade de despender forças, tensão a gerir outros conflitos, como aconteceu noutros países. E isso foi desencadeado por outros agentes mas pelas Forças de Segurança, que agiram sempre com pedagogia.
Apesar desse papel que refere, ouvimos repetidamente queixas dos profissionais sobre condições precárias nas esquadras e quartéis, falta de efetivo, trabalhos com risco mal remunerados.
Penso que temos de estar cientes do país que somos e acredito que o país confere e dá o máximo que pode dar. Sabemos que todos os setores têm carências, dificuldades, problemas mas como bispo aquilo que sinto que é a minha obrigação é manter acesa a chama do serviço, da prontidão, da resiliência.
Confio muito nas pessoas que têm a responsabilidade de nos gerir, na sua boa vontade e confio que dão o máximo e melhor de si. Claro que vejo e compreendo essas insatisfações que refere e quando rezo pelas intenções de quem se confia às minhas orações tenho em atenção uma imensidão de situações, agora estou convencidíssimo, por aquilo que tenho visto, que todos nós que vestimos uma farda e que têm responsabilidades dão, independentemente das dificuldades, o melhor de si.
O ministro da Administração Interna tem estado debaixo de fogo nos últimos meses. Sente que Eduardo Cabrita tem gerido bem os diferentes casos?
O senhor ministro tem sobre a sua responsabilidade uma missão que não invejo de maneira nenhuma. É um serviço que está a prestar à nação e é para isso que olho. Um ministro em Portugal, talvez noutros países também seja assim, nem sequer tem vida própria.
Tenho muito respeito por todos os que vivem para servir a causa pública e que têm áreas tão diversas como neste caso a segurança e a proteção civil de toda ela. Isso faz-me tirar o chapéu a quem exerce essas funções e abdica de ter uma vida própria em prol da comunidade. E acho que nunca nos podemos esquecer de que estamos a falar de pessoas, não são abstrações, são pessoas que têm uma história, que têm uma família.
Como tem acompanhado esta polémica da sucessão a CEMA?
Com muita tranquilidade e serenidade, dizendo isto: à política o que é da política, o militar e o seu bispo não nos metemos na política.
Mas gostava de ver Gouveia e Melo a assumir outras funções?
Para um militar, como para um bispo e para um padre, a nossa realização está no servir. Se me pedem ‘D. Rui, precisamos de si hoje’, a minha alegria é servir. E nos militares é mesmo assim: servir. O militar está para servir a Pátria.
Preocupa-o a infiltração da extrema direita nas forças de segurança?
Não. Quando falamos de Forças Armadas e Forças de Segurança, há uma solidez nestas instituições que não as deixa ao arbítrio. O polícia como o militar pronunciam um juramento e são-lhe fiéis. Exceções de percurso podem acontecer mas o que prevalece é que polícia, GNR Marinha, Exército, Força Aérea são instituições de tal maneira basilares que vão permanecer como baluartes. Estamos aqui a servir. Nós passamos. As ideias passam. Somos passageiros, somos transitivos e temos de ter esta noção.
Tem-se falado muito do impacto na pandemia na saúde mental. O que vê?
Preocupa-me perceber que a sociedade que está a emergir da pandemia está a dar sinais de que está faminta, com sede. Vemos que os níveis de consumo estão em níveis pré-pandemia e seria muito triste se eu, como bispo, não estivesse à altura de responder com outro alimento a esta fome e com outra água a esta sede. Muita angústia que vemos hoje é motivada por uma carência interna, ou de sentido de vida, ou de afeto, ou de motivação.
O Evangelho e o Cristianismo vieram para responder a isso e isto deve alertar-nos e tem de ser um estímulo para a Igreja responder e dar às pessoas aquilo que enquanto seres humanos necessitam – razões para a esperança, razões para acreditar, para retomar e reaprender o caminho da vida.
Se me preocupa, é evidente, mas não podemos responder com só com preocupação, temos de agir e pedir ao Espírito Santo que nos ilumine para que sejamos capazes de dar ao homem e à mulher do pós-pandemia coisas que estimulem o seu sentido de vida, que lhes deem razões para existir e que os ligue à construção do futuro com esperança e não com desalento. É uma hora decisiva para o mundo e decisiva para Igreja.
Foi bispo relativamente novo. O que mudava na Igreja? Quando combinámos esta conversa, disse-me que ia encontrar um bispo ao estilo do Papa Francisco, na comunidade.
Respondo-lhe com aquilo que é o grande desígnio do Papa Francisco para os próximos tempos. A insistência com que está a referir-se ao Sínodo de 2023 sobre a sinodalidade da Igreja é uma mudança que está a acontecer e que se traduz nesta ideia de que temos de fazer todos juntos, ter uma Igreja com uma participação ativa de todos para trilharmos os bons mares da realização humana, de maior justiça, paz, bem-estar social, físico e espiritual rumo a uma sociedade e humanidade mais próspera.
Respondo com este desejo do Papa Francisco: é o que ele almeja e eu, nesse e em todos os outros aspetos, estou plenamente com o Papa Francisco. Nós cá em Portugal estamos com um projeto em mãos que é decisivo para um maior envolvimento, que são as Jornadas Mundiais da Juventude. É hora dos jovens de Portugal se reencontrarem, reencontrarem os irmãos para servir e reencontrarem Cristo.
Sente essa mobilização?
É preciso ver que a pandemia não ajudou. Quer queiramos quer não, os meios à distância deram alguma continuidade aos grupos mas foi uma continuidade na descontinuidade. Os jovens são muito idealistas mas são muito empíricos, precisam de ver para crer. Fez-lhes muita falta para se sentirem mobilizados a presencialidade. E portanto creio que temos aqui um desafio: os jovens têm dado sinais do seu desejo de encontro mas espero que esse desejo cresça à medida que se reencontram uns com os outros.
Da parte da Santa Sé, há um grande enfoque na Jornada Mundial da Juventude diocesana, que vai ser realizada em todo o mundo nas dioceses a 21 de Novembro e proporcionar aos jovens esses primeiros encontros. Costuma dizer-se: caminha-se fazendo caminho. E, aqui, cresce-se na sensibilização para as Jornadas fazendo jornadas de encontro todos os dias.
A fé que tem hoje é muito diferente da que tinha aos 11 anos quando foi para o seminário?
A minha ida para o seminário foi fruto de diversas circunstâncias. Hoje, graças a Deus, podemos dizer que quando vamos estudar para além da 4.ª classe temos o liceu logo ali. Em 1976 não era bem assim em Portugal, sobretudo nas aldeias. Estudar significava deslocar-se e haver meios para isso.
Nasceu em Urqueira, em Ourém – continua a trazer água das fontes da terra para beber cá.
Sim. O seminário na altura, além de responder a uma vocação que eu já trazia, de facto foi resposta a uma necessidade de formação. Mas a fé é visceral em mim, e começou muito na família, por estarmos próximos de Fátima, por todo aquele ambiente.
A sua avó viveu o 13 de Outubro de 1917. Isso também o marcou?
Viu o sol a bailar, como ela dizia.
Acredita que o sol bailou?
Olhe, da maneira como ela dizia aquilo, só posso dizer que acredito. A minha avó não sabia ler uma letra mas, mesmo não sabendo ler, era uma biblioteca, passava horas a ouvi-la a contar-nos histórias enormes. Era impressionante. Nas noites longas de inverno, contava e contava e que pena tenho de na altura não haver gravadores para ter registado aquilo tudo.
Foi também num desses dias de inverno que a sua vida mudou.
Quando tinha sete anos. Foi um dia na escola primária, estava na segunda classe salvo erro. No intervalo fazíamos uma fogueira cá fora para nos aquecermos. Hoje temos dificuldade em imaginar estas coisas, mas era assim. Recordo-me perfeitamente que era uma sexta-feira, estava imenso vento, veio uma rabanada e virou uma labareda para cima da mim. Pegou fogo às calças e queimei a perna toda. A perna encolheu. Foi neste estado que passadas algumas semanas entrei no velho Hospital da Universidade de Coimbra.
Não foi logo para o hospital?
Infelizmente não. Não havia centros de saúde mas o enfermeiro da terra desvalorizou de alguma forma a gravidade da situação, foi um pouco assim mas foi assim porque tinha de ser. A experiência no hospital de Coimbra foi marcante. Logo na primeira noite vi uma pessoa a morrer ao meu lado. Colocou-se logo um problema, que era o que haviam de fazer comigo.
Não podia ir para pediatria porque estava queimado mas também não havia divisão de queimados, fui posto juntamente com os grandes. Quando saí do hospital pressenti que já não era criança e acredito que foi decisivo para a forma como encarei a vida. Prezo muito a liberdade, a autonomia. Esta urgência de agarrar com a minha mão os problemas, não os deixar para amanhã. Posso dizer que foi a minha recruta. Para mim, a relação entre fé e ciência nunca foi conflituosa porque desde esses tempos no hospital percebi que onde a ciência fraqueja, a fé tem a última palavra. Fiquei lá tanto tempo, vi tanta coisa…
Quanto tempo?
Para mim foi uma vida inteira, mas foram alguns meses. Iam-se fazendo operações, uma não dava, mais uma. Depois diziam: ‘Para a semana vem o dr. não sei quê que foi à Inglaterra’. Depois o dr. de Inglaterra vinha e a operação não dava.
Devo a minha capacidade de andar novamente ao Dr. Lacerda, que nunca mais vi, mas foi ele, foi Nosso Senhor através dele, que me restituiu a perna. Entretanto foi lá que a recitação do terço passou a ser central. No bolsito do pijama ia um terço e aquelas longas horas eram passadas a rezar. À medida que avanço na idade, revisito esses momentos cada vez com mais clareza, porque foram determinantes para aquilo que sou.
E a recruta na Marinha? Como foi andar no mar?
Foi no hospital da Marinha, experiência de mar só tive mais tarde. Repare, para quem esteve não sei quantos meses no hospital com sete anos, tudo isso se faz.
Conseguia bater o recorde de submarinista de Gouveia e Melo?
(risos) Não, isso é imbatível. Mas aprendemos que as coisas são relativas. Falando da minha recruta para as Forças Armadas, estive um ano ou dois no Hospital da Marinha e foi uma autêntica escola porque contactei com a velha guarda.
Recordo sempre um velho militar que estava lá todo ligado mas que nunca me cumprimentava nem deitado nem sentado, fazia questão de estar sempre em pé. Aquilo era um quebra-cabeças: sempre que eu entrava levanta-se logo e depois, como eu era sub-tenente, mesmo que dissesse para se sentar ele não me obedecia.
Do Hospital da Marinha fui para Lovaina estudar, vim para aqui em 1996. Também estive no Alentejo em Castro Verde e depois fui missionário da Misericórdia em 2016. Em Portugal foram enviados quatros missionários pelo Papa e foi das experiências mais belas que tive, quer cá quer nas viagens que fiz ao estrangeiro para estar com as comunidades portuguesas.
Qual foi a missão no terreno que o marcou mais antes destes anos de pandemia?
Acho que foram aqueles anos 94 e 95 em Castro Verde. De segunda a sexta ia a todas as escolas primárias, umas 15, para estar uma hora com as diferentes turmas. Pude constatar no terreno o caminho da evangelização. Estava com as crianças e a partir dali passava uma mensagem, que não era só estritamente de cariz religioso, víamos filmes, pensávamos, representávamos, líamos um livro, O Principezinho, por exemplo, mas falávamos de solidariedade, de amizade. Não nascemos por natureza solidários, temos de aprender a ser solidários.
A partir dessa experiências começaram a vir crianças daqueles montes que não eram batizadas e criámos a catequese. Os pais começaram a ser envolvidos, fundou-se o agrupamento dos escuteiros.
Ainda faz sentido ser missionário cá?
Ser missionário é mais do que nunca uma profissão do século XXI.
(Entrevista originalmente publicada a 2 de outubro de 2021)