A passagem do Papa por Portugal lançou discussões que têm animado o mundo eclesiástico e que levarão os seus membros a enormes controvérsias. A primeira é o que quis dizer com a Igreja é para «todos, todos, todos». O comum dos mortais associou à comunidade gay, aos recasados, à ordenação de mulheres e por aí fora. Mas dentro da Igreja nem todos fizeram essa leitura e acusam os leigos e os padres que entraram por essa via de precipitação. Mas já lá vamos.
É óbvio que estas questões estão na antecâmara do processo sinodal que ocorrerá em outubro, onde o mundo eclesiástico e os leigos irão discutir o futuro da Igreja Católica. E aqui, como é óbvio, há os ditos progressistas e os chamadas conservadores.
A outra questão, que é mais lateral e está ligada à primeira – e acaba por apanhar a nomeação de Américo Aguiar como cardeal –, é a composição do colégio cardinalício que elegerá o próximo Papa, já que, dos 137 eleitores, 99 foram nomeados por Francisco.
Todos os que se querem converter
«O Papa falou menos para a Igreja portuguesa do que nós pensamos que falou. O Papa veio cá para falar para a Igreja no seu todo, e nós estamos a ler isto de maneira um bocadinho limitada, creio, focando-nos, ainda por cima, só numa parte ainda mais limitada da conversa que é esta que tem que ver com a questão LGBT. Mas é muito mais do que isso. Quando diz que a Igreja é para todos não está a falar só da comunidade LGBT, está a falar dos pobres, dos doentes, dos que cheiram mal, das idades diferentes, dos que estão nas terrinhas perdidos e esquecidos. Nós conseguimos pegar numa coisa altamente profética e limitá-la muito. Conseguimos ideologizar uma coisa que era absolutamente não ideologizada. O que me parece que é o primeiro passo para que o espírito morra, não é? É transformar isto só numa coisa procedimental, etc. Isso parece-me bastante claro. Acho que houve movimentos ou pró ou anti LGBT que agarraram essa frase, de todos e para todos, e que a monopolizou a favor ou contra uma questão de moral sexual», diz ao Nascer do SOL um padre que não gosta de se identificar com os progressistas ou conservadores.
«A frase do Papa quer dizer muito mais do que isso, está a falar de ucranianos e de russos, pobres e abandonados, casados e recasados, e os pais que são maus com os filhos, e os avós abandonados, mas nós transformámos isto numa coisa muito parcial, que é só esse elemento muito específico de moral sexual, e não a totalidade daquilo que o que me parece que o Papa teria a pensar para chegar a todos», acrescenta.
O padre gosta de dar exemplos. «A minha igreja é altamente aberta a quem vem, mas é uma igreja onde imagino que alguém pobre e mal cheiroso não se sinta bem. Porque, quer dizer, o ambiente não é esse. E é uma pena. Temos que conseguir que todos se sintam bem uns com os outros. Andámos aqui a pegar nas palavras do Papa e a transformar isto só numa coisa sobre LGBT, em vez de perceber que o Papa está a falar de muito mais do que isso. E isso é que seria importante discutir».
Já se percebeu que a história de ‘todos’ não é o mesmo para todos. «Estou convencido que vai haver de um conjunto de pessoas a fazer perguntas ao Papa sobre isso nos próximos tempos, precisamente para esclarecer o que é que queria dizer. Parece um bocadinho enigmático, ainda por cima o Papa falou nisto duas vezes, quer em Lisboa como em Fátima usou a mesma expressão e disse a mesma coisa, e é muito interessante perceber isto. Porque em Fátima o Papa está diante de um grupo de deficientes profundos e de reclusos. Quando disse todos, não está a falar de LGBT, está a falar dos deficientes profundos e dos reclusos, e a dizer que aqueles que tem diante de si são aqueles que muitas vezes são excluídos da vida pela Igreja, até sem maldade, é pelo que for».
Uma questão de conversão
No mesmo sentido, mas um pouco mais direto, vai outro padre de outra paróquia. «O tom das mensagens foi todo muito de evangelização, de abrir a portas para todos. Mas abrir portas para todos não quer dizer abrir as portas a tudo para todos. Todos, inclusive os bandidos, têm lugar na Igreja, mas não é para continuar a ser bandido, é para se converterem e deixarem de ser bandidos. Todos nós podemos entrar na Igreja, eu também tenho pecados e estou dentro da Igreja e tenho que me confessar e tenho que me arrepender e tenho que mudar de vida. A Igreja à partida não exclui ninguém, mas aquilo que faz é a proposta que Jesus fez: converte-te, acredita no Evangelho, há sempre qualquer coisa que na nossa vida muda. O que o Papa quer é que as pessoas não pensem que só porque eu sou assim ou assado a Igreja já não me quer. Não, queremos todos, mas como Jesus quer todos, que todos nos convertamos, que todos possamos ter uma fé mais viva e todos possamos ter uma vida mais caridosa».
Quererá isto dizer, em última análise, por exemplo, que um gay tem deixar de ser gay para ir à igreja? «Quer dizer que um gay deixe de ter uma vida ativa homossexual, uma coisa é a atração outra é a prática. Quer dizer também que os heterossexuais não tenham uma vida de desbunda. Que os casados tenham uma vida fiel às mulheres, que os pais sejam bons pais, tudo isso. A moral é a vida de acordo com aquilo que é o bem da pessoa humana e da sociedade, da família. Às vezes há esta ideia que as pessoas têm direitos, mas isto não é uma questão de direitos, é uma questão da verdade da pessoa. Como é que Jesus converte? Mostra-lhes uma vida melhor».
Já se percebeu que a Igreja tem muito para discutir e conversar e não quer afunilar a conversa, algo que em outubro, no encontro sinodal, fará correr muita tinta. «Às vezes há é esta tendência de que quem fala de Jesus e defende a família e defende a vida é de direita, e quem fala dos pobres e dos migrantes é de esquerda. É conservador ou progressista, mas a verdade da fé junta essas duas coisas. E quando se começam a se separar aí é que entram as ideologias, entram as opções: eu quero isto e não quero aquilo. Quero tudo», remata o mesmo padre.
Tolentino ‘papabile’
Em 30 de setembro, quando os novos cardeais eleitores se juntaram aos já existentes, o Papa terá uma ‘equipa’ sua considerável, pois dos 137 cardeais eleitores 99 foram nomeados por si.
Há quem acredite que Tolentino – que foi um dos principais inspiradores dos discursos do Papa em Lisboa – começa a ser um dos principais nomes à sucessão de Francisco, devido precisamente ao ‘júri’ que o Papa está a criar, e desde que os cardeais estejam dispostos a nomear um Papa que terá um longo papado pela frente, devido aos seus 57 anos. «Tolentino é uma pessoa muito relevante, neste momento, no ambiente eclesiástico, nomeadamente no Vaticano e é uma figura a nível mundial. É um homem profundo, é interessante, é paciente, tem muitas qualidades e está num lugar importante. Se ele cumprir bem as funções, certamente que vai ser reconhecido. Acho que Tolentino Mendonça é ‘papabile’», avança um padre lisboeta.
Mas significará que os 99 cardeais eleitos por Francisco tomarão uma decisão linear com o seu pensamento? «De entre os 99 cardeais que o Papa nomeou, que vai nomeando à medida que é necessário, uns são mais progressistas mas outros são mais conservadores. O Papa Francisco escolheu o Cardeal Muller, que é de doutrina mais conservadora, e fez cardeal o americano Robert Walter McElroy, que é bastante mais progressista. Acho que essas leituras que as pessoas fazem, de que o Papa fez isto para garantir que o próximo seja na minha linha, pode não fazer sentido. Às vezes o tiro sai pela culatra», acrescenta.
Opus Dei sem prelatura?
Entretanto, o Opus Dei perdeu privilégios devido à decisão do Papa de retirar-lhe o estatuto de prelatura, passando a associação pública. A notícia está a animar o meio eclesiástico e ao Nascer do SOL fonte da organização diz de sua justiça: «Na prática não significa muito. A questão é saber, perante a realidade que é o Opus Dei, qual o estatuto canónico que melhor expressa essa realidade. A Santa Sé em 1982 concluiu que era o estatuto de prelatura pessoal. Porém, o conceito que então se tinha dessa figura, e que levou à sua aplicação, tem sido sujeito a novas leituras, uma delas a que inspira este motu proprio do Papa. Por decisão do Papa o Opus Dei está desde o ano passado num processo de revisão dos estatutos que ainda não terminou, e é provável que se faça a análise sobre se ainda existe adequação entre a ideia de prelatura, com as novas nuances, e a realidade do Opus Dei tal como foi recebida no carisma fundacional».