O chamado Verão Quente, em 1975, foi um dos mais complicados momentos do Processo Revolucionário em Curso (PREC) com as forças politicas divididas entre os que defendiam uma via eleitoral e outra o caminho revolucionário. O regresso das tropas e de mais de um milhão das ex-colónias vieram agravar a situação económica e social vivida em Portugal. Nesse mesmo ano, acentuou-se o confronto entre algumas forças de esquerda, que defendiam a tomada de poder pela força revolucionária, e outras fações políticas de centro e de direita apostadas numa democracia eleitoral. Em marcha estava o PREC, em que foi levado a cabo a nacionalização de algumas indústrias, assim como instituições bancárias, bem como a expropriação e redistribuição de propriedades agrícolas. As tensões foram subindo de tom. Vasco Gonçalves era o rosto desse período que foi primeiro-ministro dos II, III, IV e V Governos provisórios e foi também responsável pela descolonização de Angola, Moçambique, Guiné, S. Tomé e Príncipe e Cabo Verde.
Com a reforma agrária, entre março e novembro de 1975, mais de um milhão de hectares foram ocupados e constituíram-se cerca de 500 propriedades coletivas dirigidas por trabalhadores rurais.
Ao i, o politólogo José Filipe Pinto, lembra que o nosso país vivia, nessa altura, “num clima de revolução social nas ruas e havendo uma revolução social nas ruas, Portugal vivia numa quase anarquia, em que as manifestações eram uma constante”. E lembra que, apesar da vitória de Mário Soares, para a Assembleia Constituinte, a 25 de Abril de 75, “percebeu-se imediatamente o incómodo de Mário Soares que não conseguia celebrar a vitória porque percebia que o ambiente não era propício a esse festejo e que tinha muitas dúvidas de que o PCP e as forças da extrema-esquerda, principalmente a UDP, aceitassem os resultados”.
Ao mesmo tempo recorda que, nas ruas, o movimento de apoio a Vasco vai subindo. “Durante o Verão quente ficou conhecida a música ‘Força, força, camarada Vasco, nós seremos a muralha de aço. O que é que isto queria dizer? Que a própria rua e as organizações de trabalhadores juntamente com o PCP, a UDP e com outras forças de extrema esquerda pretendiam instaurar em Portugal um regime, um sistema de democracia popular”, salienta o politólogo ao nosso jornal.
Em agosto de 1975 é publicado o Documento dos Nove, um manifesto de resposta aos militares radicais, apresentado ao Presidente da República, general Costa Gomes, pelos militares favoráveis ao estabelecimento de um regime político pluralista e à continuação dos trabalhos da Assembleia Constituinte e tinha como signatários nomes, como Melo Antunes, Vasco Lourenço, Vítor Crespo, Vítor Alves, entre outros, em que estes militares rejeitavam o modelo de sociedade socialista tipo europeu-oriental e defendiam o modelo de sociedade social-democrata, exemplificada em alguns países da Europa Ocidental, propondo um modelo socialista estreitamente ligado à democracia política.
E, mesmo recebendo cerca de 80% de apoio dos oficiais quando o documento foi apresentando, Otelo Saraiva de Carvalho, os oficiais do COPCON e as Brigadas Revolucionárias de Carlos Antunes e Isabel do Carmo avançaram com um outro documento de proposta de trabalho para um programa político. “Isto mostrou que havia dentro do Movimento das Forças Armadas duas linhas completamente diferentes, completamente distintas”, lembrou José Filipe Pinto.
Definir projeto O politólogo chama ainda a atenção para o facto de o 25 de Abril ter começado por ser um movimento de capitães, que depois se transformou num movimento das Forças Armadas. No entanto, alertou para as incertezas: “Não havia um entendimento comum sobre quais eram os objetivos, já que havia uma grande parte deste movimento que pretendia organizar a transição do poder para a sociedade civil, entretanto organizada em partidos, enquanto havia outra parte que estava verdadeiramente interessada em permanecer no poder”
Daí, no seu entender, “haver duas posições: o Documento dos Nove mostra claramente que Portugal estava em perigo ou à beira de uma guerra civil ou de uma tomada do poder por parte das forças ligadas ao COPCON e, por outro lado, uma posição ligada ao Partido Comunista e a outros grupos, como o das Brigadas Revolucionárias”.
A 2 de setembro de 1975 realizou-se a Assembleia do Movimento das Forças Armadas, onde o general Vasco Gonçalves foi derrubado e substituído pelo almirante Pinheiro de Azevedo. Procedeu-se à constituição do VI Governo Provisório.
Segue-se o 25 de Novembro de 1975 que foi uma movimentação militar conduzida por partes das Forças Armadas Portuguesas, cujo resultado levou ao fim do Processo Revolucionário em Curso (PREC) e a um processo de estabilização da democracia representativa em Portugal. “Já se sabia de antemão que o sistema estava preparado para instituir a ordem. E costumo dizer que as revoluções nascem para fazer constituições e que as constituições, uma vez aprovadas, matam a mãe, matam a revolução. Isto porque há uma adesão a uma nova ordem. E fica tudo dentro dos tramites legais”.
Posição americana José Filipe Pinto lembra também a posição americana durante o verão quente ao recordar que o secretário de Estado norte-americano, Henry Kissinger, estava convencido que Portugal estava perdido para os comunistas. “Entendia que Portugal era um caso perdido e até havia nos Estados Unidos quem defendesse que Portugal poderia funcionar como uma espécie de vacina. Significaria que se o comunismo fosse implantado em Portugal, seguiríamos o modelo da União Soviética e serviria de aviso para a Espanha de Franco que estava a terminar o período da sua ditadura e estava a tentar já entrar no processo de transição, assim como para a Grécia”, salienta ao nosso jornal.
Uma ideia que acabou por ser afastada com o politólogo a admitir a importância do embaixador Frank Carlucci ao “convencer Kissinger que Portugal não era um caso perdido, que a maioria dos portugueses não se revia no modelo preconizado pelo Partido Comunista Português, que a maioria dos portugueses não estava na rua, que a maioria dos portugueses era contra as ocupações selvagens, era contra as expropriações, que era contra a criação de uma reforma agrária que verdadeiramente, em determinados aspetos, parecia mais uma reforma agarra. E porquê uma reforma agarra? Porque, naquela altura, o PCP considerava latifundiário quem tivesse um pedaço de terra”.
Revolução de massas Para a historiadora Raquel Varela, o Verão Quente é entendido como uma revolução feita pelas massas. “São as comissões de trabalhadores, são as comissões de moradores, isto é, é a população em ação a decidir os seus destinos. Todos falam da revolução como se tivesse sido feita pelo PCP e pelo PS, mas uma revolução não é isso”, refere ao i.
No entanto reconhece que essa posição é fácil de entender, já que considera que, “tanto o PS, como o PCP, queriam controlar o aparelho do Estado”, mas recorda que a partir de abril de 1975 assistiu-se a um controlo operário generalizado. “Mesmo nas maiores empresas do país, os trabalhadores diziam qual era o teto salarial e como é que a empresa tinha de ser gerida e isso leva a que essa situação de compromisso e esse Governo de unidade nacional tenha entrado em rutura e as classes dirigentes portuguesas decidiram fazer um golpe militar, o próprio Ramalhe Eanes admitiu isso”.
Já em relação ao 25 de Novembro, Raquel Varela entende o ato como sendo de um golpe de direita. “Evidentemente que para haver um golpe de direita tiveram de fazer uma provocação à esquerda”, garantindo ainda que, o PCP, por seu turno, não queria fazer uma revolução socialista.
“ O PCP queria continuar no Governo a dividir lugares com o Partido Socialista. Os trabalhadores queriam tomar o poder e isso não era a dinâmica do PCP. O que acontece no Verão Quente? Estudamos na história como uma crise revolucionária ou os trabalhadores tomam o poder ou a burguesia e classes dirigentes ficavam no poder. Não se podia continuar nessa situação de dualidade do poder. Há um momento em que a sociedade chega a uma tensão tal em que é de um lado ou é do outro. O Verão Quente representa isso. O que expressa o Verão Quente é uma crise revolucionária, em que a dinâmica dos trabalhadores era a de construir uma democracia participativa e a dinâmica das classes dirigentes era não permitir isso. Toda a construção do 25 de Novembro é dizer que o PS nos vinha salvar de uma ditadura comunista, o PCP nunca quis fazer revolução nenhuma. É o PCP que vai tirar o poder ao quinto Governo, ao Vasco Gonçalves. O PCP queria partilhar o poder com o PS, com o Grupo dos Nove”, salienta.
Passos seguintes Nas eleições parlamentares de abril de 1976, os socialistas alcançaram a maioria dos lugares, e o seu líder carismático, Mário Soares, foi eleito primeiro-ministro. Em julho de 1976, o general Ramalho Eanes foi, por sua vez, eleito presidente da República Portuguesa.