Volta a Portugal. Uma prova apaixonante

A Volta a Portugal 2023 chegou à mítica Torre com Délio Fernandez de amarelo. Para trás fica uma longa história feita de grandes rivalidades e de uma forte ligação ao futebol.

O ciclismo e o futebol foram introduzidos em Portugal com uma década de intervalo. Em 1870, o ciclismo, ainda designado por velocipedia, chegou ao nosso país e, em 1880, começou-se a jogar o “football”, designação original inglesa que foi adaptada em Portugal. São modalidades completamente distintas, mas com muitos pontos em comum. 
De início, tanto o ciclismo como o futebol eram praticados por uma elite, num misto de competição, recreio e exibição. Depois, o Sport Lisboa e Benfica nasceu da fusão entre o Sport Lisboa e o Grupo Sport Benfica, que tinha uma equipa de futebol fraca, mas alguma tradição no ciclismo, por essa razão o emblema do clube adota uma roda de bicicleta. O Vitória de Setúbal é outro clube de futebol que tem no emblema a roda de bicicleta. Esse elemento foi introduzido no símbolo quando o clube entrou para a história do ciclismo por ter a primeira mulher ciclista, Oceana Zarco.

A ligação entre ciclismo e futebol foi bastante forte até à década de 1970. Havia dois estádios municipais com o nome de ex-ciclistas, Mário Duarte, em Aveiro, e José Bento Pessoa, na Figueira da Foz. Além disso, várias das etapas da Volta a Portugal realizaram-se nas pistas que rodeavam o relvado dos estádios do Sporting (José de Alvalade), do FC Porto (Antas) e do Académico Futebol Clube (Lima). A popularidade do ciclismo permitiu encher esses recintos como que se de um clássico se tratasse.

Entre 1990 e 2000 houve menos de clubes de futebol no ciclismo nacional. A partir de 2010 os principais clubes voltaram às provas de estrada e a rivalidade aumentou. O ano passado havia dez equipas profissionais e cinco representavam clubes de futebol: FC Porto, Boavista, Feirense, Louletano e Oliveirense. Existem rumores de que o Benfica poderá voltar ao ciclismo.

Este cruzamento de interesses só acontece em Portugal, não há outro país em que, ao longo da história, o ciclismo tenha a mesma importância do futebol e arraste multidões. A par do futebol, o ciclismo tem duas competições – Volta ao Algarve e Volta a Portugal – que são consideradas pelo Governo como eventos de interesse generalizado do público.

Eterna rivalidade A primeira Volta a Portugal em bicicleta realizou-se em 1927. A partir daí a rivalidade entre Benfica e Sporting passou dos relvados para as provas de estrada. Uma rivalidade que nos leva para o mundo de sonhos, da paixão e da beleza do ciclismo. Nessa época, as provas eram extremamente duras devido às más condições das estradas, apelidadas pelos jornais da altura de  “Infernos de Dante”.

A intensa rivalidade entre o benfiquista José Maria Nicolau (vencedor em 1931 e 1934) e o sportinguista Alfredo Trindade (vencedor em 1932 e 1933) apaixonou multidões e aumentou a popularidade dos clubes de Lisboa e da própria modalidade. Nicolau impressionava pela sua compleição física e robustez em contraste com a silhueta franzina de Trindade, ambos tinham em comum um enorme espírito de luta. Durante a década de 1930 os dois corredores ribatejanos proporcionaram empolgantes duelos que muito contribuíram para dar a conhecer os seus clubes em regiões onde não se sabia o que era o Benfica e Sporting. Isso acontecia na mesma altura em que o modelo competitivo do futebol sofria uma mudança com a criação do campeonato nacional na época 1934/35. 

Quando parava o futebol, o dérbi de Lisboa prolongava-se nas bicicletas com lutas memoráveis, como aconteceu entre José Albuquerque, o “Faísca”, (vencedor em 1938 pelo Clube Atlético de Campo de Ourique e 1940 integrado no Sporting) e Aguiar Martins, do Benfica, considerado na altura como um dos melhores ciclistas a nível internacional, o prestigiado jornal L’Equipe apelidou-o de “português voador”.

Os anos 40 seriam dominados pelos ciclistas do FC Porto. Fernando Moreira é o primeiro rei do Norte (venceu a Volta em 1948) e António Dias dos Santos sucede-lhe com dois triunfos (1949 e 1950). A década de 50 viveu da rivalidade entre Alves Barbosa (Sangalhos) e Ribeiro da Silva (Académico Futebol Clube). Os dois protagonizaram interessantes etapas, vividas efusivamente pelos adeptos. Mas nem todos estavam de boa-fé a ver passar os ciclistas. Na edição de 1955, Alves Barbosa, perdeu a Volta na última etapa quando um grupo de pessoas atacou e sequestrou o camisola amarela o tempo suficiente para perder a prova (terminou em terceiro) para Ribeiro da Silva. Alves Barbosa foi o primeiro a vencer por três vezes a Volta a Portugal (1951, 1956 e 1958), em duas edições andou de amarelo da primeira à última etapa. 

A década de 60 foi dominada pelos três grandes clubes de futebol, com o FC Porto a vencer quatro vezes a Volta com Mário Silva e José Pacheco, o Benfica ganhou três edições com Peixoto Alves, Francisco Valada e Américo Silva e o Sporting triunfou com João Roque.

Houve outras grandes batalhas que ficaram na história da Volta e dividiam o país. Joaquim Agostinho (Sporting) e Fernando Mendes (Benfica) proporcionaram épicos duelos pela camisola amarela. Houve anos em que o povo saiu à rua para aplaudir estes craques. Eles marcaram uma geração que fez história no ciclismo nacional. Colegas e adversários afirmaram que a rivalidade só existia na estrada, pois fora dela prevaleceu a amizade. “Existia uma certa rivalidade, mas entre o Benfica e Sporting, e não entre o Fernando e o Agostinho. Eles sempre foram muito amigos”, explicou o antigo ciclista Joaquim Andrade. Aliás, um dos filhos de Fernando Mendes, Pedro Mendes, é afilhado de Joaquim Agostinho. 

O ciclista do Sporting venceu por três anos consecutivos a Volta a Portugal (1970 a 1972) ao passo que o corredor do Benfica ganhou apenas uma vez (1974). Por diversas vezes referiu que o seu maior percalço foi o Tino, sem ele tinha ganho mais vezes a Volta. A carreira dos dois ficou também marcada por alguns casos de doping. “Cada um tomava os comprimidos que queria”, disse um dia Alves Barbosa.