Quando levei para casa uma bolinha de pelo cor de laranja e de olhos grandes de mel que cabia na palma de uma mão, os meus filhos chamaram-lhe Garfield. A comparação era óbvia. E o pequenino príncipe persa instalou-se nas nossas vidas com o à vontade de um Artaxerxes. Passou a ocupar os nossos lugares preferidos, a dormir nas nossas camas, a espreguiçar-se nos sofás, a afiar as unhas na madeira das cadeiras, das mesas e dos baús. Não éramos nós que o tínhamos a ele; era ele que nos tinha a nós. E assim viveu doze anos até ao dia em que morreu e sentimos cá dentro a tristeza que fizera dele indispensável. Não tinha ideia de que havia um Dia Internacional do Gato, mas também há dias internacionais de tudo e mais alguma coisa que também não me admirava que houvesse o Dia Internacional da Beringela ou da Couve Flor. Aliás, se calhar há e a ignorância é minha. Mas também não me vou pôr aí a procurar à toa porque estou aqui para falar de gatos e há gatos que cheguem na História da Humanidade para valerem várias páginas de uma revista como esta.
A rapaziada da minha geração recorda-se certamente de uma velha lengalenga que ia assim: «Era uma vez/Um gato maltês/Tocava piano/E falava francês/Queres que te conte outra vez?/Era uma vez/Um gato maltês/Saltou-te às barbas/Não sei que te fez/Queres que te conte outra vez?» Ora, esta do gato maltês já espicaça o suficiente a minha curiosidade para tentar saber de onde vem a expressão. Não há registos claros que a ilha de Malta, perdida lá no Mediterrâneo, seja uma fonte privilegiada de felinos. De qualquer forma, há que tirar nabos da púcara. Pelo que se pode encontrar com facilidade, o gato maltês é uma espécie cujo pelo é todo cinzento da raça Chartreux, famosa pelo seus olhos muito amarelos por entre a penugem parda. É das mais antigas que se conhecem, as suas origens parecem ter sido na Síria ou nas regiões montanhosas entre a Turquia e o Irão, e foi grande fornecedor de peles para os que não tinham contemplações em escalpá-los. Entrou para a literatura pela mão de Rudyard Kipling, o autor de O Livro da Selva, num conto que levou o nome de, precisamente, O Gato Maltês. Data de 1865, descreve um jogo de pólo numa planície húngara, e uma das personagens chama às bicicletas “gatos malteses”.
Mas, vendo bem, a nossa infância esteve repleta de gatos, e os desenhos animados estão aí para o comprovar. Comecemos, por exemplo, pelo pobre Tom criado pela dupla William Hanna e Joseph Barbera em 1940. Ah pois! Já tem a bagatela de 84 anos e ainda anda desesperadamente a tentar caçar o rato Jerry deixando geralmente um caos total por qualquer lado onde passem. As aventuras desta dupla começaram num episódio curto chamado Puss Gets the Boot. Havia uma pequena diferença em ambos: Tom chamava-se Jasper e Jerry chamava-se Jinkx. A sua vida foi mudando de produtoras – começou na americana MGM – e de desenhadores. Todos sabemos que Tom nunca apanhará Jerry e que continuará frustrantemente na sua peugada enquanto, volta e meia, vemos as chinelas da empregada lá de casa surgirem no ecrã. Mas, atenção, não é o único gato azarado que a animação produziu e popularizou de forma incorrigível. Olhem por exemplo para aquele a que os brasileiros chamam de Frajola e Adriana Calcanhotto, no seu alter-ego de Adriana Partimpim, fixou num letra tantas vezes repetida: «Avião sem asa/Fogueira sem brasa/Sou eu assim sem você/Futebol sem bola/Piu-piu sem Frajola/Sou eu assim sem você». Piu Piu, o Tweety em inglês, tem uma frase marcante: «I think I saw a pussy cat…». Que depois se conclui: «I saw! I saw a pussy cat!».
Curiosamente, o «pussy cat» de Tweety, para nós Piu Piu, tem a mesma idade de Tom e de Jerry – foi criado por Bob Clampet em 1940. Mas o Frajola, em português chamado de Silvestre, e originalmente apelidado de Sylvester, só surgiu cinco anos mais tarde num episódio intitulado «A Tale Of Two Kitties». Ganhou um Óscar.
Silvestre pode ser tão trapalhão como Tom mas é muito mais decidido e, até, possuidor de uma certa maldade intrínseca. Piu Piu, que originalmente era um passarinho cor-de-rosa, foi ganhando personalidade ao longo dos tempos, sendo agora um canário de cabeça enorme que se exprime de forma infantil. Tal como Tom, Silvestre nunca comerá a avezita, embora até já a tenha tido na boca, faltando-lhe coragem para a mastigar. E formam ambos a dupla de gatos mais ferozes das histórias dos desenhos animados e dos livros aos quadradinhos.
O gato pornográfico!
Dizem as estatísticas que os gatos são, de longe, os animais de estimação preferidos pelo homem. E dizem os norte-americanos, que são peritos em estatísticas, que só nos Estados Unidos há mais de 96 milhões de gatos de estimação. Ora felinos! É gato que bonda. Um desses gatos mais famosos foi Sam, mais conhecido por Unsinkable Sam, o Sam Inafundável. Ninguém alguma vez soube o seu nome autêntico porque, sendo o animal da tripulação do famoso Bismark, o primeiro daqueles navios inafundáveis que afundou em pleno Oceano Atlântico quando uma bomba aérea entrou pelo único sítio vulnerável do vaso de guerra, a chaminé. Estávamos no dia 18 de Maio de 1941 (irra que até agora os gatos que trago para estas páginas são todos mais ou menos da mesma idade!) seria encontrado a boiar num pedaço de madeira pelos marinheiros ingleses do destroyer HSM Cossak. Pescaram-no e deram-lhe o nome de Oskar. De tal ordem que no Código Internacional de Mensagens Marítimas a letra O significa «Man Overboard». Não lhe chamaram Oskar por acaso. De certa forma foi o nome mais germânico que lhes veio à cabeça. Quis o destino que o HSM Cossak não tivesse um futuro brilhante. Nesse mesmo ano, no dia 24 de Outubro, sofreu estragos irreparáveis graças ao ataque surpresa de um submarino alemão, o U-563. Durante a tentativa de refúgio em Gibraltar explodiu e, claro!, o Unsinkable Sam safou-se milagrosamente ao mesmo tempo que morriam 159 homens. Foi então adotado pela tripulação do torpedeiro HSM Ark Royal. Por pouco tempo. No dia 14 de Novembro o seu novo lar foi abatido. Foi outra vez encontrado à deriva no meio do mar e transferido para bordo do HSM Lightening. Só que o Governador de Gibraltar, depois de ter escutado a forma como sobreviveu a todas as suas sete vidas, passou-o à reforma. Viria a ser entregue aos cuidados de um antigo marinheiro em Belfast. A artista Georgina Shaw-Baker fez questão de pintar o seu retrato.
Aligeiremos o discurso para falar do mais pícaro dos felinos: Fritz The Cat. Surgiu em 1972 num filme criado por Ralph Bakshi. Nenhum outro como Fritz foi tão discutido. Até porque a sua base de crescimento sendo antropomórfica mexeu com vários segmentos da sociedade americana. Fritz resolve abandonar os estudos, misturar-se com a comunidade afro-americana, provocar sarilhos a torto e a direito e assumir uma política de esquerda. Além disso tem um apetite sexual incontrolável e não o esconde, bem pelo contrário. Tal como o consumo de haxixe em quantidades industriais viria a provocar movimentos de protesto em relação ao bichano atrevido. O facto de ter sido classificado com um X – filme para adultos – parece ter excitado os espectadores e atingiu os 90 milhões de visualizações em todo o mundo. Nada como umas porcarias para a malta saltar do conforto das cadeiras lá de casa e correr para uma sala de cinema.
Bichanos polidáctilos…
A casa do escritor Ernest Hemingway foi sempre um paraíso para gatos e ainda o é. Ernest queixava-se de ter ratos em casa e tanto se queixou que um dos seus melhores amigos, o capitão Stanley Dexter, lhe ofereceu um dos gatos que usava a bordo do seu barco para apanhar esses embirrentos roedores. O gato era de uma raça bastante particular, tinha cinco dedos em cada pata, geralmente designados como polidáctilos. Está comprovado que são os gatos melhores caçadores de ratos do universo da gataria e Hemingway deixou que Snow Ball, o seu primeiro, proliferasse a seu belo gosto o que acabou por transformar o seu lar em Key West numa habitação para uma família numerosíssima que chegou a atingir os quarenta elementos. Curioso é que os mitten cats, expressão usada para designar os polidáctilos, se multiplicaram em membros de todas as cores mas, sobretudo, desenvolveram-se noutra direção e surgiram os polidáctilo de seis dedos, tidos como os melhores de todos os gatos para barcos, por causa da sua incrível capacidade de equilíbrio e pela forma como dizimam pequenos roedores em tão pouco espaço de tempo.
Quem decididamente não sofria de polidactilia era Kitty, a gatinha japonesa que começou a aparecer em cartoons e mangas e, de repente, se espalhou por tudo o que é bolsas, pastas e objetos escolares das meninas de todo o mundo. O desenho de Kitty é tão simples que, basicamente, não provoca qualquer tipo de sentimento. Isto sou eu a falar, assim à bruta, se calhar, porque pelos vistos é uma bonequinha tão amorosa que o seu franchise chamado Hello Kitty atingiu o valor de seis mil milhões de euros. Lá está, uma questão de gosto. Ela por ela, prefiro a malandragem de Felix, o gato inventado pelo cartoonista australiano Pat Sullivan e pelo animador americano Otto Messmer ainda no tempo do cinema mudo, ou seja, em 1919. Pode dizer-se com toda a naturalidade que Felix foi o primeiro desenho a ser tão popular que lhe abriram as salas de cinema e os canais de televisão. Seria o sonoro a matá-lo. Quando Walt Disney apareceu com um ratinho chamado Mickey a pilotar um barco que tinha um vuuu-vuuu-vuuu muito audível, Felix começou a cair na preferência do público. Viria a ser redesenhado já nos anos-50 e ganhou uma versão mais moderna. A popularidade é que fora definitivamente abalada.
Uns e outros…
A história do cinema está cheia de gatos mais ou menos conhecidos, como nomes que se fixaram com maior ou menor facilidade na memória coletiva dos espectadores. Por exemplo: ninguém sabe como se chamava o gato de Marlon Brando, Don Corleone em O Padrinho, mas se falarmos na comédia Um Sogro do Pior quase toda a gente dirá sem dificuldade que o bichinho preferido de Robert de Niro é Mr. Jinkx.
Por seu lado, em 1978, Jim Davies deu ao mundo um dos gatos mais humanos de todos os tempos, ou talvez seja melhor dizer que nos ofereceu um bicho que aglutina todos os defeitos humanos e felinos ao mesmo tempo. Cor de laranja, preguiçoso, comilão, odiando as segundas-feiras, Garfield tem um sentido de humor fino e apurado que nos põe de bem com ele e com nós próprios. É sarcástico por natureza; não tem o mínimo respeito pelo dono; provoca situações incómodas; vive num mundo onde funcionam as suas próprias regras. Também laranja, mas exemplar como Garfield nunca seria capaz de ser, Orangey ficou para a lenda do cinema ao participar com Audrey Hepburn no famoso filme Breakfast at Tiffany’s. Todos ficaram fascinados com a sua presença na tela. Ganhou nome e prestígio. Passou a ser um profissional. Em seguida apareceu no filme O Diário de Anne Frank, no espectáculo televisivo de Dick Van Dike e em The Beverly Hills. Não era perfeito. Não há felídeos perfeitos. Volta e meia fugia, passavam dias sem lhe porem a vista em cima, até que voltava para alívio de todos e se podiam recomeçar as filmagens.
Foi a Hanna-Barbera Productions que gerou a existência de outro gato laranja, neste caso Mr. Jinks, inimigo de estimação dos ratos gémeos pixia & Dixie, que preferimos por cá Plic e Ploc. O bicho de estimação da família Simpson chama-se igualmente Snowball embora seja negro como um tição com o vício de cuspir tricobezoares. A Walt Disney fez sucesso com os Aristogatos e A Dama e o Vagabundo e o Gato das Botas fez sucesso por si mesmo com a sua pinta de cavalheiro espanhol Félicette foi a primeira gata no espaço. Em Alice no País das Maravilhas o Gato de Cheshire desaparecia e só sobrava o sorriso. O Manda Chuva e a sua pandilha foram populares nos quadradinhos. No antigo Egipto os gatos eram sagrados e o mais antigo exemplar de amigo do homem deve ser Ta-Miu, a gata que pertencia ao faraó Thutmose da 18ª Dinastia e cujos desenhos em relevo foram encontrados no seu túmulo. A lista poderia continuar por aí fora até ao infinito. Mas terminemos esta taramela sobre felinos com uma distinção: Nala, a gata siamesa mais vista na internet e que já atingiu mais de quatro milhões de seguidores no Instagram. Já Cats, o musical de Andrew Lloyd Weber baseado na obra de T.S. Eliot Old Possum’s Book of Practical Cats esteve 21 anos consecutivos em cena, em Londres. Rendeu quase quatro mil milhões de dólares. Cáspite! Às vezes os gatos podem ficar verdadeiramente caros.