Música e leitura são um pouco como água e azeite. Podem sobrepor-se, mas nunca se misturam. Competem pela nossa atenção e, se tentarmos ler e ouvir música ao mesmo tempo, o mais provável é não fazermos uma coisa nem a outra em condições.
Ainda assim, sempre achei que fazia sentido haver um aparelho de som – nem que seja um simples rádio – na zona ou divisão da casa que serve de biblioteca.
A leitura pede silêncio, mas assim que pousamos o livro abre-se espaço para a música, e é um pouco como se os ritmos e as melodias pudessem contagiar com a sua vida as paredes mudas das estantes de livros.
Por outro lado, não devemos esquecer os cruzamentos entre a literatura e a música. Existem excelentes livros sobre história, teoria musical e biografias de compositores – e até pode dar-se o caso de a biblioteca ter uma estante ou um cantinho dedicado a eles.
Mas há também uma grande tradição literária na música
Um dos exemplos mais conhecidos será o quarto movimento da 9.ª Sinfonia, em que Beethoven usou como fonte de inspiração um poema de Schiller, a Ode à Alegria. Noutros casos, são os próprios músicos que escrevem as letras das suas canções. Até podemos ter tendência para não lhes atribuir grande valor, por nos parecerem sempre subordinados à arte dos sons, mas há versos memoráveis em Bob Dylan, The Doors, Simon and Garfunkel e tantos outros. E também em português, claro: Zeca Afonso, Variações, Chico Buarque, Caetano Veloso, Sérgio Godinho e Jorge Palma, só para mencionar alguns nomes obrigatórios.
Mas sempre que penso nesta questão da poesia ‘escondida’ nas canções há uma frase de Tom Waits que me vem à cabeça. «The piano has been drinking, not me», do disco Small Change, de 1976. Explicá-la seria supérfluo. Para o caso, basta talvez dizer que está ao nível dos melhores escritores.
Trinta anos depois, em finais de 2006, Waits lançou o estupendo álbum triplo Orphans: Brawlers, Bawlers & Bastards, com trabalhos que se tinham acumulado na gaveta. Ele próprio as descreveu eloquentemente como «canções que caíram para trás do fogão enquanto estava a fazer o jantar». Não se pense, porém, que se trata de comida requentada.
Uma das 56 faixas desse album não é exatamente uma música – pelo menos na acepção habitual -, mas antes uma história, narrada na característica voz rouca e gasta do cantor. Começa na fila do supermercado. A senhora de idade que está à frente do narrador olha para ele fixamente, até que decide abordá-lo: «Desculpe, mas você é tão parecido com o meu filho que morreu». A senhora tira uma fotografia da carteira e mostra-lha, só que ele não vê qualquer parecença. «Na verdade ele era… chinês», conta o narrador. Ficam um pouco à conversa e a senhora pede-lhe por fim: «Importa-se, quando eu estiver a sair do supermercado, de me dizer: ‘Adeus, mãe’? Eu sei que é um pedido estranho, mas significaria muito para mim». A senhora faz as suas compras, afasta-se e acena: «Adeus, filho!». O nosso protagonista responde, um tanto constrangido: «Adeus, mãe!». A empregada da caixa, entretanto, passa os artigos e comunica-lhe o total: 475 dólares. «Isso não é possível! Só tenho uma lata de atum, um pacote de leite meio-gordo, mostarda e um pão…». «Sim, mas o senhor também está a pagar as compras da sua mãe!».
É por estas e por outras que os raros concertos de Waits – que nada têm que ver com as megaproduções das superbandas – são ocasiões especiais e altamente aguardadas. E é também por isso que na minha diminuta secção musical existe um livro chamado Lowside of the Road: A life of Tom Waits.
Música e leitura são como água e azeite. Nunca se misturam. Mas, da mesma forma que a literatura tem o seu lugar de honra na música, também pode haver lugar para a música numa biblioteca. Seja quando se pousa os livros, seja até dentro deles.