Khalid Jamal faz parte da direção da Comunidade Islâmica de Lisboa e numa entrevista sem tabus fala dos problemas existentes entre as diferentes comunidades – de Marrocos, Argélia e Bangladesh – islâmicas que lutam pela liderança de mesquitas ‘irregulares’ no Martim Moniz e no centro do Porto, que eventualmente poderão estar ligadas a redes ilegais de imigração, embora desvalorize o caso – « não acredito que sejam lutas sanguinárias». Fala também sobre os condutores de TVDE, dizendo que não percebe como não falam português e conseguem carta de condução. A todas as questões fraturantes deu a sua resposta. Mas quer deixar bem vincado que o Islão é uma religião pacífica e que os maus exemplos de países ditatoriais são um mau cartão de visita. «É um disparate pensar-se que a Europa se vai converter ao Islão e que se passe a andar de hijab ou de burka. É um faits divers e não acredito que isso vá acontecer», afirma.
Como é ser muçulmano em Portugal?
É ser um português como outro qualquer. É o que me apetece dizer. Claro que percebo o alcance ou a dimensão da pergunta e não vou ser redundante, mas diria que, tirando o facto de fazermos cinco orações diárias, de não bebermos álcool ou um copo de vinho às refeições, de não comermos a bela charcutaria portuguesa e o presunto, etc., não há grande diferença no aspeto quotidiano. Claro que temos algumas diferenças culturais, em termos de prática religiosa e de hábitos quotidianos, designadamente nas dietas alimentares, nas cinco orações diárias que fazemos – também temos de ter algum tempo para elas e, quiçá, um trabalho que nos permita assegurar esse quotidiano religioso –, tirando isso e o termos um nome que, às vezes, é mal dito numa qualquer loja de cidadão, não há assim nada de estruturante que o muçulmano possa ter de diferente em relação a qualquer outro cidadão português.
Mas sente que os portugueses recebem bem outras religiões? Estou a falar nisso porque houve recentemente aquele ataque no centro ismaelita de Lisboa, o que poderá ter criado alguma desconfiança…
Diria que nós portugueses recebemos muito bem, a priori, quem é diferente de nós. Agora, como é óbvio, é próprio da natureza humana que olhemos sempre com alguma reserva para algo que é diferente. Isso é da natureza humana, não é da portugalidade. Somos um país que participou além-fronteiras e nesse quadro somos naturalmente muito mais abertos a outro tipo de realidades culturais e religiosas do que outros povos. Contudo, como disse, é próprio da natureza humana olharmos um bocadinho de lado com, se calhar, curiosidade ou com vontade de perceber quais são essas diferenças e porque é que são diferenças em relação ao que conhecemos.
Nessa altura defendeu que tinha de haver um acompanhamento maior em relação aos imigrantes que chegavam a Portugal. Sente que têm sido dados passos para melhorar esse acompanhamento ou continua aquém do que é desejável?
Acho que continua aquém do que é desejável, não censurando, claro, as instâncias do Governo. Acho que o Governo, as entidades públicas – temos várias agências e várias entidades que lidam com estas matérias – fazem aquilo que podem, mas continuo a achar que os recursos que Portugal tem como um todo são insuficientes para lidar ou para fazer com que a integração passe a ser cabal e plena. Sei que isso é o ideal e desejável e se calhar não passa de uma miragem ou de um sonho. Mas acho que devemos tentar o melhor que sabemos e conseguirmos para materializar aquilo que é este fenómeno da portugalidade. No fundo, sempre recebemos bem, sempre acolhemos bem quem procura Portugal legitimamente na aspiração de melhores condições de vida. Portugal é um país cada vez mais conhecido, com cada vez mais turistas, com cada vez mais pessoas a procurarem o país para a sua morada, para a sua residência, e não faz sentido que não continuemos a ter essa tónica de bom acolhimento, fazendo com que as nossas instituições trabalhem efetivamente para que isso aconteça.
A falta de mão-de-obra e esta ânsia em tentar colmatar esta falha poderá levar a que o controlo seja mais leve e não seja tão rigoroso?
É verdade que quando existem necessidades estruturais no país, designadamente em termos de mão-de-obra, como refere, alguém tem de colmatá-las. Somos um país livre e, em princípio, o mercado trata ele próprio de requisitar ou, se quiser, de convidar, sugestionar que venham para cá pessoas que estão dispostas a fazer esse tipo de trabalho. E nós aí, se calhar, temos pouco a dizer, porque o mercado é livre e regula-se a ele próprio. Diria que a nossa postura deve ser sempre atenta em relação a quem entra no país, colocando a tónica na integração. Porque isto é uma estrada de dois sentidos. Por um lado, o próprio que vem para Portugal tem de fazer um esforço para se assimilar e para se integrar na dinâmica do país, por outro lado, o país também tem de dar mostras de que quer integrar estas pessoas verdadeiramente para não acontecer, por exemplo, o que se passa em França, onde existe uma guetização da sociedade na semi-periferia e periferia de Paris.
A vossa comunidade tem feito sempre um apelo à moderação e condena de certa forma o extremismo. Como encara o que se passa no Martim Moniz? O que me dizem é que neste momento há conflitos abertos entre as comunidades marroquinas, argelinas e do Bangladesh por causa de saber quem é que manda nas mesquitas ilegais ou improvisadas.
Como responsável de uma comunidade religiosa encaro sempre com uma certa apreensão, para não dizer preocupação. Porquê? Porque, tanto quanto possível, a minha vontade, o meu desejo, é que estas comunidades sejam o mais integradas possíveis no seio da sociedade portuguesa. Essa integração não se materializa só através de pensamentos e de romanticismo. Materializa-se através de atitudes que levem a sociedade portuguesa a crer que estas comunidades estão integradas. Se escolhem Portugal para sua morada, os filhos, muitas vezes de segunda geração, já nascem portugueses e nesse contexto ficam portugueses de pleno direito que são, em que frequentam escolas portuguesas, têm em princípio o português como língua materna, comportam-se como um português normal dentro de tudo aquilo que é possível observar, com a honrosa exceção de terem uma herança cultural e religiosa diversa.
Mas em relação aos casos do Martim Moniz e da Baixa do Porto sabe que há conflitos ou não tem conhecimento que há problemas em relação a quem quer controlar as mesquitas e quem quer controlar a imigração ilegal?
Tenho conhecimento.
Tem conhecimento desta luta pelo poder nas mesquitas?
Quando existe poder envolvido e quando existem comunidades religiosas, mais uma vez, é próprio da natureza humana que as pessoas discutam. Não daria excessiva importância a essa disputa. E vou mais longe, não diria que essa disputa é determinante para as eventuais dificuldades de integração que estas comunidades possam ter. Se me disserem que é mais um obstáculo no seio das comunidades, isso é, indiscutivelmente.
Como líder de uma comunidade não fica preocupado, por exemplo, que não frequentem a vossa mesquita, que é legal, e criem clandestinas?
Em bom rigor não existem mesquitas clandestinas. O que existe são mesquitas que estão em situação irregular, o que é um bocadinho diferente. São irregulares como? São locais de culto que, embora com o conhecimento das autoridades, não são objeto de uma licença de utilização, não têm um espaço especialmente afeto a este fim. A Mesquita Central de Lisboa foi construída de raiz como mesquita. Quando pegamos num local de culto, numa sala, numa garagem, numa sala de condóminos, numa mesquita de vão de escada, permitam-me o uso desta expressão, não no sentido depreciativo do termo, e o afetamos a uma comunidade ou a um fim religioso passa a ser uma mesquita em ponto pequeno. Não há problema que haja centenas de mesquitas no país, porque todas têm um lugar, desde que haja fiéis e haja vontade da sua parte. O problema é quando a liderança destes locais de culto ou quando a disputa pela liderança começa a criar clivagens entre as pessoas e essas clivagens começam a depreciar o nome dos muçulmanos em Portugal. Isso sim, preocupa-me.
Mas era aí que queria chegar. As informações que tenho dos serviços secretos é que acham que se está a extravasar completamente o que é a normalidade…
É verdade, preocupa-me que a sede de poder de alguns possa criar problemas em termos de imagem que a comunidade tem em Portugal. A comunidade sempre foi integrada, com uma excelente imagem, que contribui para o tecido empresarial a nível nacional, social, cultural, cívico – a todos os níveis. Comunidades como a dos nossos irmãos do Bangladesh são mais recentes e naturalmente ainda não ocupam um lugar-chave. Não se desenvolveram o suficiente nesse âmbito da integração que permita que a sociedade portuguesa reconheça o seu papel e o seu contributo para ela.
Na última entrevista que nos deu, há dois anos, dizia que se estava numa reunião e tinha de fazer as suas orações não ia dizer ‘esperem aí um bocado que vou fazer a minha oração’. Ou retirava-se ou fazia depois, porque ninguém fica chateado com isso mesmo. Não acha que aquelas imagens que nos surgem do Martim Moniz e do Porto, em que ‘cortam’ as estradas, poderão dar um sinal negativo de uma comunidade em relação ao que estávamos habituados?
Confesso que pode ser mal interpretado, mas tenho de reconhecer que existe uma linha de separação muito ténue entre o livre exercício da minha fé em esfera pública e entre ser visto como um fanático que não pode esperar cinco minutos para fazer a sua oração dentro das quatro paredes.
Chegou a dizer que ‘Deus não me lançará ao inferno por adiar cinco minutos da minha oração’…
Acredito nisso, mas também aceito quem pense o contrário.
Há dois anos dizia que tínhamos 70 mil muçulmanos em Portugal…
Hoje temos acima de 100 mil. E alguns apontam para 120 mil muçulmanos em Portugal.
E alguns ainda não estarão imbuídos da cultura portuguesa?
Não estão e isso é preciso dizê-lo com verdade.
Isso pode ser preocupante? Como se controla isso?
Temos as nossas metodologias, digamos assim, sempre numa perspetiva pedagógica e construtiva. Mas temos um limite: não podemos invadir a esfera privada de ninguém. Ou seja, não posso martelar uma vontade num cidadão que vem de outra parte do globo e não se quer integrar. Posso sugestionar que se integre, dizer que Portugal é um país extraordinário, que tem bons hábitos e que as pessoas são bondosas, recetivas, calorosas, fraternas, agora não posso obrigar ninguém a fazer algo que não queira. E voltando aqui ao exemplo da questão da oração, isto é produto da nossa liberdade de expressão. Concordo se me disser ‘não temos o direito de impor a nossa religiosidade em esfera pública’. E se existe uma estrada no Martim Moniz ou na Rua do Benformoso, cujo principal propósito é passarem automóveis e se alguém está a obstruir a estrada em pleno dia de trabalho para fazer as suas orações, em termos de princípio não considero correto, e vou mais longe: o Islão também não considera correto, porque o Islão é uma religião que defende que para se praticar a nossa fé não podemos impedir os outros de fazer as suas vidas. Esse é o princípio religioso. Infelizmente há pessoas que não entendem desse modo e entendem pôr a sua necessidade, o seu pressuposto, a sua necessidade religiosa, acima, por exemplo, das necessidades laborais ou de circulação do próximo. É preciso levar tudo isto com uma dose de bom senso, mas volto a repetir que temos de ser um bocadinho tolerantes e sensibilizar estas pessoas que têm uma certa tendência para o extremismo, vamos dizer assim, de forma a que deixem de pensar assim.
O sheik Munir disse que ‘nos países islâmicos, temos militares e temos ditadores e temos pessoas que querem o poder e que não o querem deixar. Quando há uma pequena abertura para a possibilidade de haver um governo civil, há sempre golpes de Estado. Este é o mundo islâmico atual, em que a democracia não entra. Isto é assim, mesmo que a pessoa queira [mudar], não dura muito’. Haverá algum perigo desta nova leva que vem com princípios que não são os nossos?
Tenho uma posição um bocadinho diversa daquela que o sheik Munir tem. Por uma razão simples, porque não podemos confundir o mundo islâmico com o Islão. Uma coisa são os países de maioria islâmica e também não gosto da expressão ‘mundo islâmico’, mas estamos a rotular o Islão com um conjunto de geografias que têm de facto uma maioria islâmica, que são coisas diversas. Segundo, temos de olhar sempre numa perspetiva otimista. Por um lado, perceber que esses países que, às vezes, não são tão democráticos quanto nós queríamos que fossem estão a percorrer o caminho das pedras. Quando olhamos, por exemplo, para o fenómeno da Primavera Árabe ou para uma transformação praticamente absoluta como acontece na Arábia Saudita, onde no passado as mulheres não podiam guiar automóveis e hoje já podem fazê-lo. Ou seja, temos de perceber que as coisas têm um contexto, tem um timing, que existe uma luz ao fundo do túnel e que estes países, a pouco e pouco, estão a mudar e a ‘aproximarem-se’ daquilo que é a nossa realidade plenamente democrática e livre.
Não acha que há perigo por parte daqueles que vêm agora quererem impor aquilo que tinham como garantido e não se adaptarem?
Não, e sabe porquê? Por duas razões: a primeira porque ainda expressa uma minoria. Embora haja uma vaga de emigração já expressiva, os 20, 30, 50 mil imigrantes que professam a religião islâmica estatisticamente ainda não têm expressão, nem força. Segundo aspeto, quem vem para Portugal e quem escolhe Portugal tem duas opções: ou se assimila ou então tem de procurar outro lugar. Com isto não quero dizer que estamos a expulsar alguém ou que estamos a dizer que são desavindos ou que não são bem-vindos ao nosso país. Acho que todos são bem-vindos. Contudo, acho que há uma tendência natural para que as pessoas que chegam a Portugal, e quando perceberem que este modus vivendi é, porventura, mais igualitário, mais justo e que de alguma forma permite a redução das assimetrias e permite que a minha condição de nascença não determine o lugar que almejo chegar ficam absolutamente fãs desta forma de viver e acabam por se assimilar e não o contrário.
Então acha que não corremos o risco de termos o que se passa em França e no Reino Unido, em que há zonas onde a Polícia praticamente não entra e onde as mulheres não têm direitos nenhuns?
Penso que não, por uma razão que resulta também de uma política muito bem operada pelos nossos dirigentes, que sabiamente não criaram guetos na semi-periferia e na periferia das cidades. As comunidades, neste caso islâmicas, é por essas que falo, têm comunidades onde são mais expressivas, mas não existem guetos na semi-periferia e na periferia de Lisboa.
Não recebem queixas, por exemplo, de pessoas que foram praticamente traficadas como escravas, isto é, que pagaram não sei quanto a alguém e que chegam cá e ganham miseravelmente porque têm de dar…
Surpreendentemente não. Ouvimos alguns casos e sabemos que eles existem, mas ou não existem em número estatístico grande que nos permita ter de tomar medidas ou alertar as autoridades para tal ou então as pessoas não procuram a comunidade para denunciar este tipo de práticas.
Mas tem conhecimento que existe…
Tenho conhecimento que existem casos pontuais e marginais, em que as pessoas são de alguma forma usadas no sentido mais laboral do termo.
Como viu esta proibição do uso de abaya em França?
Vejo com muita tristeza, penso que a França está numa deriva muito radical no sentido do laicismo. E um laicismo exacerbado e radical é tão prejudicial às sociedades como as sociedades com base e assentes numa religião de Estado.
Acha então que não há este perigo de haver uma guerra religiosa na Europa com os novos imigrantes?
Penso que não e vou dizer isto a brincar: o capitalismo e o liberalismo têm uma força enorme e acredito que faz mais sentido que os muçulmanos se assimilem e se a aculturem àquilo que são os cânones e à vivência em tempo moderno em pleno século XXI em solo europeu do que o contrário. É um disparate pensar-se que a Europa se vai converter ao Islão e que se passe a andar de hijab ou de burka. É um faits divers e não acredito que isso vá acontecer. Por um lado, ainda bem, porque também não é isso que defendo.
Em relação ao Afeganistão, nessa entrevista que nos deu disse que tinha alguma esperança que os talibãs entrassem por uma linha mais ou menos…
Esperança essa que foi completamente destruída. Como sabemos houve um retrocesso gigante civilizacional, mas já era esperado. Muitos especialistas e muitos opinion makers diziam que o Afeganistão iria entrar numa senda de retrocesso civilizacional e assim que assumissem o poder não iriam perder tempo e iriam esvaziar completamente os direitos das mulheres. Digo com toda a clareza e com uma enorme mágoa que é muito dececionante, desaponta-me e dececiona-me que o Afeganistão tenha retrocedido 300 anos.
Estive em Moçambique várias vezes e vi que entre os muçulmanos havia uns tantos que podiam vender álcool e penso que também consumir. Em Portugal temos imensos muçulmanos a vender álcool e suponho que também a consumir…
Em bom rigor a religião impõe que não se consuma e não se comercialize, que não se consuma para evitar os excessos e o estado de embriaguez. O Islão é contra tudo aquilo que me tira a minha capacidade de discernimento e isto não é exclusivo do álcool. Pode ser o álcool, pode ser aquilo que chamamos de estupefacientes ou psicotrópicos, mas vamos a outros exemplos. O ego pode-me turvar a visão. Posso achar que ‘je suis maximum’ e que não está nada acima de mim. Contudo, acima de Deus não está nada e no nosso exercício de fé defendemos, de acordo com aquilo que são as normas de Deus para os muçulmanos e para todos os seres na Terra, que devemos estar sempre com a nossa capacidade de discernimento e de clarividência no seu máximo. Tudo aquilo que nos esvazie e que seja prejudicial ou nocivo para o organismo é tendencialmente proibido. No caso das bebidas alcoólicas é tão proibido consumir como comercializar e acredito que os muçulmanos que o façam devem ter faltado à aula que impõe essa regra.
Na Igreja Católica temos a Opus Dei, temos franciscanos, etc., no Islão também temos estas frações?
No Islão temos duas orientações: a sunita e a xiita. Cerca de 85% do mundo islâmico é sunita e 15% é xiita. Normalmente os xiitas estão mais situados em países como Irão, Iraque e são conotados, erradamente, porque, não é necessariamente assim, com uma visão mais tradicionalista do Islão em relação a determinados aspetos, designadamente ao aspeto hierárquico, porque admitem a existência de uma hierarquia tradicional, coisa que no Islão sunita não existe. Ou seja, os sunitas são uma espécie de protestantes no universo do Islão. Não existe um Papa muçulmano porque os sunitas não admitem esse tipo de autoridade. Por outro lado, os xiitas, por exemplo, admitem os rituais de mortificação quando se celebra, por exemplo, em Karbala, no Iraque, ou quando se celebra o martírio do Imam Hussein, os xiitas têm por hábito auto chicotear-se, coisa que os sunitas não admitem. Na nossa visão sunita, o Islão é absolutamente contra e condena qualquer tipo de ritual de mortificação porque tira-nos a tranquilidade, o bem-estar e o conforto. Deus não quer que nos autoflagelemos.
O facto de cada país islâmico interpretar à sua maneira a lei da Sharia poderá levar a um maior ou menor radicalismo?
Diria que o grande perigo não é a Sharia em si. A Sharia em si é uma lei que deriva do Alcorão, mas além do princípio e do espírito da lei pode ter normas. O problema, o grande drama e o perigo que corremos enquanto sociedade, é que as pessoas interpretem de forma enviesada aquilo que é a lei corânica ou a lei de Deus. Da Bíblia consta a lei de Talião, como sabemos, é traduzida por olho por olho, dente por dente. Será que nos dias de hoje, no século XXI, e à luz daquilo que foram os exemplos, primeiro de Jesus e depois de Maomé, faz sentido interpretar essa lei do ponto de vista literal? Então alguém que me faz mal devo ripostar, retaliar e pedir a punição severa dessa pessoa? Ou devo, na condição de crente que sou, estimular o exercício do bem e do perdão? Tivemos agora o Papa Francisco em Lisboa que nos deu mensagens poderosíssimas, e ele é um líder incontestável, extremamente admirado e apreciado a nível mundial e também por mim que sou muçulmano e que não o vejo como um santo na terra, mas vejo-o como uma figura importante, conciliadora, harmonizadora e promotora da paz. E, nesse aspeto, tenho uma profunda admiração. Ele deixa mensagens muito importantes focadas no perdão. A uma dada altura diz que não devemos ser administradores de medos e devemos ser empreendedores de sonhos. Quero acreditar que os crentes têm essas dádivas e uma das dádivas dos crentes é termos esperança de vermos luz ao fundo do túnel. E termos esperança, não é só em Deus, mas também na humanidade e no melhor que essa humanidade nos pode proporcionar.
Esteve presente num dos encontros com o Papa na Universidade Católica. O que sentiu nessa altura?
Senti que estava ali uma pessoa com uma dimensão espiritual especial e essa é a grande diferença, sem desprimor, naturalmente, para os chefes de Estado, entre uma mensagem de um chefe de Estado e uma mensagem de um crente. Enquanto os chefes de Estado tendencialmente são mais racionais e têm uma mensagem naturalmente com conteúdo, mas que toca menos, o Papa não falou para a cabeça, mas para o coração. E essa mensagem que emana do seu coração, com essa espiritualidade muito própria, tem um impacto extraordinário. É uma mensagem com uma linguagem muito simples, sem grandes artifícios, mas que nos toca a todos exatamente por essa simplicidade, por essa riqueza e essa densidade de valores e da compaixão que a mensagem transmite.
Este fim de semana foi notícia o casamento de um católico com uma muçulmana em Fátima. Como encara este tipo de notícias e acha que a tendência poderá ser essa?
Sempre houve relações inter-religiosas. Acho que são possíveis, mas não sei se desejáveis e digo isso com toda a franqueza.
Porquê?
Porque existe um conjunto de desafios. Hoje em dia há uma certa tendência para romantizar os casamentos inter-religiosos. Claro que é mais aquilo que nos une do que aquilo que nos diverge e esse é o meu espírito também. Agora, não podemos isentar ou esvaziar os desafios que um casamento inter-religioso traz, designadamente se o objetivo for a procriação, como existe mais até no cristianismo do que no Islão. No Islão, a figura jurídica ou religiosa do matrimónio não tem em vista única e exclusivamente a procriação, também tem a procriação, mas não só. Não se resume e não se extingue à procriação. E isso vê-se, por exemplo, na questão do sexo, enquanto, por exemplo, o cristianismo e a Igreja sempre tiveram uma posição um bocadinho condenatória em relação ao sexo, o Islão não vê deste modo. Ou seja, o Islão acha que o sexo é uma coisa natural.
Mas não é essa imagem que as pessoas têm…
Pois não, as pessoas têm a visão de uma religião condenatória, que não é progressista. Mas o Islão é uma religião progressista. Não nos esqueçamos que o Profeta Muhammad, quando se auto declarou portador da mensagem de Deus e, portanto, mensageiro de Deus na Terra, foi ele que instituiu na Arábia que se derrogasse o hábito e o costume de enterrar as recém-nascidas do sexo feminino vivas. Foi o Profeta Muhammad que libertou o seu escravo, de nome Zayd, e que o tornou o primeiro chamador de oração, assegurando-lhe um catálogo de direitos iguais aos cidadãos de elite de Meca à data.
Então o mundo está enganado?
O mundo tem tendência para deturpar o Islão. É verdade que com mea culpa por parte dos muçulmanos.
Quando vemos o Afeganistão, o Irão, a Arábia Saudita, em que os direitos das mulheres …
Nesse aspeto, o sheik Munir tem razão. Embora não goste de ter esse retrato, a verdade é que o exemplo que muitas vezes os muçulmanos dão não é um retrato real daquilo que é o verdadeiro Islão.
Mas depois o comum dos mortais tem a imagem dos muçulmanos que invadem o Martim Moniz, fecham as ruas, as mulheres não têm direitos e que são radicais…
A pergunta que faço é: será que isso é tudo assim? Ou será que não existe também alguma especulação nesse contexto, por aversão natural àquilo que é diferente do que é nosso?
É mais moderado do que Sheik Munir nesta matéria…
Sou porque acredito que estas disputas podem beliscar a boa imagem que os muçulmanos têm em Portugal e não é isso que se pretende. Temos, naturalmente, de tomar medidas, no sentido de sanar essas disputas que são indesejáveis e pouco saudáveis. Mas não acredito que sejam sanguinárias. Não acredito que sejam de tal modo fraturantes que possam perturbar o normal funcionamento das coisas.
Como é que conseguem moderar isso?
Como é que se modera quando existem disputas?
É que aqui também há muitos interesses económicos…
É verdade. E não são só interesses dos muçulmanos.
Quem tem a direção das mesquitas tem acesso ao dízimo, chamemos-lhe assim…
Em bom rigor não existe. No Islão não existe uma obrigatoriedade de doar.
Mas as pessoas dão?
As pessoas dão por livre e por espontânea vontade. Ninguém lhes pode impor uma contribuição determinada a não ser a contribuição de 2,5%, que é o zakat. Mas não é para a comunidade, é dado em prol de um fim maior.
Qual é esse fim maior?
É a caridade pura. Agora, não nos podemos esquecer que essa caridade é administrada por alguém. Quando se envolvem interesses mercantilistas ou interesses económico-financeiros no meio, as pessoas têm tendência a disputar. Essa disputa só se resolve de uma forma que é exercendo uma autoridade e uma liderança carismática e firme. E liderança essa que, de acordo com Sheik Munir, deve ser a Comunidade Islâmica de Lisboa, que é a comunidade mais antiga no país, que já deu provas claras e inequívocas de uma feliz integração no seio da sociedade.
Disse que essas mesquitas são irregulares. Quem é que as pode regularizar?
Só as entidades oficiais, neste caso, as entidades camarárias, o Estado português.
Vocês não podem?
Podemos promover essa iniciativa e é isso que temos feito. Temos apelado sistematicamente a que estas comunidades que informalmente se constituem façam tudo by the book, ou seja, que criem estatutos, que tenham a constituição de uma associação com personalidade jurídica, que, por sua vez, tenham um livre exercício do poder legitimado por aquilo que são os votos dos seus associados. Ou seja, a comunidade islâmica apela sempre a que se constitua um local de culto ou que este local de culto se constitua como uma filial da casa mãe, que é a comunidade cúpula que legitimamente representa os interesses dos professantes da religião islâmica a nível nacional ou que se essas comunidades queiram ter a sua independência e seu livre exercício de procissão de fé que o possam fazer.
Mas faz sentido haver essa independência?
Do meu ponto de vista não.
Disse na entrevista de há dois anos que os crentes vão ter de encontrar novas formas de praticar a sua fé porque a prática religiosa vista está completamente ultrapassada e já no passado assistimos a uma certa diminuição da frequência da ida aos templos, especialmente na vivência urbana. Na zona de Lisboa estamos a viver tudo ao contrário?
Há dois fenómenos que me merecem reflexão e que deixo em tom de reflexão, porque também não tenho respostas para estas nossas inquietações. A primeira é se o Islão está atrasado em termos temporais ou cronológicos? Temos 1.500 anos de história, não temos dois mil e aquilo que para nós, portugueses, país de maioria cristã e maduro já vivenciou, o Islão ainda se encontra paulatinamente a vivenciar. Aquilo que para nós é desejável que é a César o que é de César, que haja uma separação entre Estado e religião e que a religião passe não para um segundo plano, mas para um plano distinto, para uma dimensão distinta da vivência política, para que a religião e a política não se contaminem mutuamente. Aquilo que para nós é tido como um valor essencial da nossa democracia não é assim no Islão, não é assim nos países de maioria islâmica. E o segundo ponto que observo que pode ter despertado um maior interesse ou uma maior corrida, ao contrário daquilo que profetizava há dois anos, é aquilo que chamo a progressiva desumanização da sociedade. Uma sociedade mais desumana é uma sociedade mais injusta, uma sociedade mais distante e uma sociedade mais exposta a este tipo de guerra a que estamos a assistir na Ucrânia. E as pessoas têm uma sede de voltar a humanizar-se e essa humanização faz-se nas mesquitas. Quando vou à mesquita e dou um abraço ao meu irmão de fé ou quando lhe pergunto pela família, pelos filhos depois da oração, acima de tudo, não estou a praticar só um ato de fé, estou a cumprir com a minha obrigação para com Deus, mas a seguir tenho um espaço para socialização. As mesquitas não são só locais de procissão de fé, são locais onde se socializa, onde se come junto, onde se estuda a religião, etc. Por exemplo, na Mesquita Central de Lisboa pratica-se desporto, temos um pavilhão multidesportivo. E queremos que as comunidades islâmicas não se circunscrevam ao foro religioso, queremos que extravasem o foro religioso e que derivem num âmbito também social.
O Islão tem 1.500 anos, mas olhamos para a Península Ibérica, olhamos para todo o lado e o mundo árabe estava muito à frente do mundo católico…
Mas a história tem altos e baixos.
Olhamos hoje para o Afeganistão que está na Idade da Pedra, mas por outro lado, os árabes trouxeram a luz, os banhos…
Em 711, quando os árabes entraram na Península, trouxeram com eles um conjunto de avanços e eram um baluarte do progresso científico, matemático, e outros, até na área da saúde. Assistimos a um conjunto de progressos assinaláveis quando os árabes entraram na Península, contudo, como todos os impérios e todas as civilizações têm o seu apogeu, depois normalmente mergulham num declínio. E, se calhar, pode-se dizer com alguma justiça, embora talvez não devesse dizer isso, porque não é muito simpático ser eu a dizê-lo, é que alguns destes países de civilização islâmica acabaram por mergulhar num retrocesso civilizacional que é o responsável pelo retrato e pelo rótulo que as pessoas fazem da sociedade islâmica no seu geral.
Recentemente tivemos a Jornada Mundial da Juventude e uns dias antes falou-se dos problemas que existiam em termos de segurança. Vou-lhe ler o que disse o sheik Munir: ‘Temos, infelizmente, vários grupos, vários ‘lobos solitários’ à solta e, quando um grupo é detido, desfeito, cada um faz aquilo que puder, na medida do possível, para manter a política, a filosofia, a ideia, a ideologia do grupo, e muitas vezes vai tentando influenciar o outro’…
Honestamente não tenho nenhum comentário. Aliás, nem percebo bem o verdadeiro alcance e a dimensão das palavras do sheik Munir.
Não se identifica com essas palavras?
Não, de modo algum. É uma visão excessivamente pessimista daquilo que é a nossa realidade, que é uma realidade pacífica e plenamente integrada e integradora.
E como vê, por exemplo, notícias de alegados raptos, tentativas de violação por parte dos condutores da TVDE?
Isso sim, preocupa-me. Nunca fiz nenhuma estatística para perceber se estas pessoas são muçulmanas ou não. Mas posso garantir uma coisa: se praticassem a sua fé verdadeiramente não faziam este tipo de atos.
Isso poderá potenciar alguns movimentos populistas?
Esse é outro dos fatores que me preocupa, porque se houver muitos muçulmanos – não sei se são, admito que sejam – a ter este tipo de más práticas e é uma má prática dupla, porque é uma má prática com um muçulmano que está a agredir alguém verbalmente, eventualmente fisicamente e uma tentativa de rapto nem qualifico, é uma coisa completamente surreal e é um crime que deve ser punido severamente, independentemente da pessoa ser muçulmana, ter religião, ser de qualquer raça. E, por outro lado, além de ser uma prática censurável no âmbito da religião, acho que é ainda pior, porque estão a ser maus profissionais e se lhes é dada uma oportunidade de integração e de, por exemplo, trabalharem como motoristas do Uber, integrando-se numa sociedade que lhes dá essa oportunidade, é um péssimo exemplo que estão a dar à sua origem, à sua expressão ética e à sua fé.
E como português não acha estranho haver condutores de TVDE que não falam português?
Muito estranho, e sou completamente contra isso. Acho que é condição sine qua non para que uma pessoa que se queira verdadeiramente integrar na nossa sociedade, na cultura, na qual me incluo, fale português.
Não acha estranho que consigam ter carta de condução?
Acho bastante estranho.
O Estado não está a falhar aí?
Claramente. Devíamos pôr o acento na fiscalização. Claro que qualquer sistema, como sabemos, não é à prova de falhas, não há sistemas blindados e perfeitos. Isso é só na Alice no País das Maravilhas, não vivemos num paraíso e claro que pode haver falhas, mas acho que se deve olhar para o sistema como um todo e perceber como é que há tantas falhas no que toca, por exemplo, a estes condutores que não falam português.
No outro dia entrei num Uber e estavam a ouvir as rezas, não falavam português, não respeitavam nada…
É estranho e depende muito do sentimento que temos quando entramos. Quando entro num táxi e se está uma pessoa a ouvir uma oração posso considerar isso invasivo da minha privacidade. Se não praticar aquela religião também não me parece adequado, por exemplo, alguém ter uma estátua de Nossa Senhora no tablier ou ter um terço. Há pessoas que podem considerar isso ofensivo da sua neutralidade religiosa. Temos de estabelecer o equilíbrio, mas lá está, a linha de separação é muito ténue. Até onde é que vai a minha liberdade religiosa e até que ponto é que acaba por ultrapassar a fronteira e começa a ferir a liberdade não religiosa do próximo?
Nunca foram abordados, por exemplo, por alguém que vem para cá nessa situação de ilegalidade a pedir-vos para arranjarem dinheiro para voltarem para o país?
Já tivemos algumas situações de pessoas que vieram para Portugal com um projeto de vida e que mediante esse falhanço nos pediram para custear as despesas para o repatriamento. E aí a posição da Comunidade Islâmica de Lisboa foi imediata ao custear o repatriamento, porque não queremos que as pessoas estejam aqui contrariadas, porque esses são aqueles que podem ter a tendência de se radicalizar e de fazer coisas menos próprias.
Como é eleito um imã da comunidade?
O imã da comunidade islâmica de Lisboa é escolhido entre os membros da direção. No nosso caso, só escolhemos um único imã que foi o sheik Munir. Antes dele houve um outro imã que está em Moçambique.
Não tem data de validade?
Não, não é bem assim. Não é um cargo vitalício, mas continuamos a depositar confiança nele. Continua a representar-nos bem e é uma pessoa integradora e concessora dos valores da comunidade.
Mesmo com as divergências existentes não se vai candidatar a imã?
Não tenho essa pretensão.
Disse em tempos que a vida é uma dádiva. Como viu a publicação da Lei da eutanásia? Até foi recebido por Marcelo Rebelo de Sousa para se pronunciar…
Vejo igualmente como um retrocesso civilizacional. Por mais que queiramos e por mais que a tendência nos dias de hoje seja olhar para a lei da eutanásia como um avanço, como a possibilidade de dispor da minha própria vida, não vejo desse modo. Vejo que é um retrocesso civilizacional. Não me parece bem, acho que temos de ter limites para a liberdade humana e um dos limites está claramente na questão da vida. E devíamos apontar sempre no sentido de cuidar, de curar e de aceitar quem tem uma doença e não, mais uma vez, escamotear ou branquear pessoas que possam ter um problema e que possam pôr termo à sua vida de uma forma de ânimo leve.
Disse há pouco que muitos muçulmanos que vêm para cá acabam por ter filhos e que depois frequentam as escolas. Acha que o sistema de ensino está preparado para perceber algumas questões, nomeadamente a alimentação e as orações?
Não está inteiramente preparado, mas quero sublinhar que já existem algumas autarquias, designadamente a de Odivelas, e penso que será a de Palmela, que já começam a ter uma dieta religiosa, ou seja, começam a adequar algumas das suas ementas às realidades religiosas de comunidades minoritárias. Mas nestes concelhos já há uma determinada expressão religiosa ou uma expressão maior.
Mas não defende a obrigatoriedade?
Não defendo a obrigatoriedade. Cursei Direito e uma das manifestações do princípio da igualdade é tratar de forma diferente o que é diferente. Se somos um país evoluído e civilizado acho que é simpático sermos integradores dessa diferença. É um sinal, esse sim, de um claro avanço civilizacional se conseguirmos acautelar as diferenças que cada um tem em função da fé que pratica.
Um muçulmano, por exemplo, que queira renegar o islamismo, o que lhe acontece?
Não acontece nada, deixa de ser muçulmano. É quase uma preferência clubística. Depois da vida terrena diz-se que terá um lugar muito próprio. É preciso não fugir à ideia do céu e do inferno, hoje as religiões tradicionais e estamos a falar de três: judaísmo, cristianismo e islamismo, em que o judaísmo e o islamismo dizem sem pejo que existe o céu e o inferno. O cristianismo tem uma tendência moderna e não vejam isto como uma crítica, mas como uma constatação, de romantizar o inferno como se não existisse. Porque é que as religiões não são clubes de futebol? Porque os clubes de futebol, ganhando ou perdendo, no final do jogo estamos todos iguais, podemos estar um bocadinho mais tristes porque o nosso clube perdeu. Mas nós, crentes, acreditamos que depois desta vida terrena, uns vão para o céu e outros vão para o inferno. E por isso é que convém praticar a religião que se escolheu como forma de ter esse perdão e essa virtude.
Não tem nenhum amigo muçulmano que não cumpra?
Curiosamente não. Tenho amigos muçulmanos que são mais desleixados e mais descontraídos nas regras religiosas, mas que não cumpram com aquilo que chamo os mínimos olímpicos, não.
Estou a falar em termos de hábitos, como beber álcool?
Há uns que cometem alguns excessos e prefiro não comentar. Mas como disse são mais desleixados e mais liberais.
Não deixa de ser amigo de alguém por ele beber?
Não, de modo algum. Acho que são escolhas individuais de cada um. Aconselho e dou-lhe nas orelhas como amigo que sou. Socialmente nos países de maioria islâmica, quando uma pessoa não segue o rebanho, é julgada por tal. Nasci no Ocidente e não tenho essa cultura.
Seguramente que no Afeganistão…
Aí não é só julgado. Tem um fim mais triste do que aquele que temos aqui.
Qual é a religião mais perseguida neste momento? É a católica. Como é que encara, por exemplo, a Arábia Saudita, que está a fazer uma lavagem de imagem à conta do futebol, mas não permite uma igreja?
Vimos agora, por exemplo, que o Neymar, quando voou para a Arábia Saudita, trazia um crucifixo.
Não sei se chegou lá com ele…
Acho que aterrou em solo saudita com um crucifixo e assistimos cada vez mais a uma maior tolerância por parte das autoridades para que as pessoas sejam livres de exercer a sua fé.
Acha que ainda está longe a instalação de uma igreja Católica?
Penso que não, penso que está mais próximo do que aquilo que imaginamos.
O que acha desta lavagem do futebol? Não sei se viu o vídeo do jogador do Porto, Otávio…
Não chamaria lavagem, diria que o futebol é uma ótima forma de deixarmos questões como as diferenças religiosas para segundo plano, ou seja, o mundo do futebol acaba por ser até mais importante do que o mundo das religiões.
Vimos a mulher de Cristiano Ronaldo destapada, mas se uma mulher da Arábia Saudita andasse destapada levaria no mínimo umas chicotadas em público…
O problema ali não são só as regras religiosas. O que se passa é o choque cultural. Acredito que quando existem regras que, de alguma forma, previnam essas manifestações exteriores mais faustosas, o propósito é essencialmente não chocar uma sociedade que não está preparada.
No Alcorão supostamente não há nada que condene as mulheres andarem mais destapadas?
Consta do Alcorão que tanto o homem como a mulher devem andar de forma não ostensiva. O princípio é um princípio genérico, formulado na positiva e apela a que tanto o homem como a mulher não chamem a atenção para determinados atributos. É preciso usar de alguma parcimónia quando estamos a falar da indumentária, especialmente a feminina.
Estamos a falar, obviamente, desses países, não em Portugal…
A regra aplica-se a todos. Ou seja, em Portugal se calhar achamos chocante que alguém ande completamente tapada de burka. Mas também não se apela a que uma mulher islâmica que viva num meio ocidental ande com um decote extremamente pronunciado ou que ande de minissaia.
Como assim?
O Islão apela a uma certa discrição. Se a mulher ou homem pugnar por não ter essa descrição isso é censurável do ponto de vista religioso.
As suas amigas andam então todas cobertas do pescoço até os pés?
Depende das amigas.
Estou a falar de amigas muçulmanas…
Tenho várias amigas e algumas andam, outras não. Isso faz parte da liberdade de cada um.
*Agradecimentos ao restaurante Terraço de Belém