Um quase exato contemporâneo do nascimento do cinema, Jean Renoir (1894-1979) tinha um ano de idade quando os irmãos Lumière fizeram a sua primeira projeção pública numa sala do Boulevard des Capucines, em Paris. O seu pai, o pintor Pierre-Auguste Renoir, retratou-o nesse ano de 1895, ao colo da sua adorada ama Gabrielle, acentuando-lhe os cabelos ruivos longos como os de uma menina.
Renoir filho acabaria por tornar-se cineasta, deixando uma obra composta por perto de uma quarentena de filmes, alguns dos quais obras-primas, como A Grande Ilusão e A Regra do Jogo. Sobre este último, disse Alain Resnais, outro grande realizador francês: «Continua a ser a experiência mais arrebatadora que tive com cinema».
A Grande Ilusão, por sua vez, era um alerta contra o belicismo em que estava a cair a Europa, e inspirava-se na experiência do autor durante a Primeira Guerra Mundial. Foi justamente a participação no conflito que permitiu a Renoir escrever um tocante livro de memórias, Pierre-Auguste Renoir, Meu Pai (ed. Bizâncio), que começa com estas palavras: «Em abril de 1915, um bom atirador bávaro presenteou-me com uma bala numa perna. Fiquei-lhe agradecido. O ferimento permitiu-me finalmente ser hospitalizado em Paris, para onde o meu pai se fez transportar para estar mais perto de mim». A mãe, Aligne, tinha acabado de falecer, e Jean achou a casa silenciosa e triste. O pai estava preso a uma cadeira de rodas. Aquela temporada acabaria, porém, por revelar-se uma dádiva. «Ao fim de alguns dias, a nossa vida tinha-se organizado. Eu passava os dias a ver Renoir pintar. Quando ele fazia interrupções, falávamos da estupidez de uma guerra que ele odiava. […] A troco das minhas histórias da guerra, Renoir contava-me episódios da sua juventude».
Se fosse um filme, Pierre-Auguste Renoir, Meu Pai, seria uma longa-metragem algo confusa, com muitos flashbacks e episódios desgarrados, contados ao sabor da memória. Mas fascinante, ainda assim. Escrito 40 anos depois da morte do pintor, o livro conserva a frescura da observação direta, em primeira mão, da vida, do trabalho e da intimidade do mestre impressionista.
Com as suas cores vivas e alegres, os quadros de Renoir de meninas com bochechas rosadas e fitas de cetim no cabelo podem parecer-nos hoje demasiado decorativos e delicodoces. Mas este testemunho desmente a ideia de um homem superficial. E o seu final de vida foi altamente dramático.
Pierre-Auguste Renoir, Meu Pai tem tudo isso: tem arte, drama, alegria, um pouco de voyeurismo. E as tiradas inconfundíveis do impressionista. «Comparava uma mulher a despir-se com aqueles números de palhaços que despem solenemente meia dúzia de coletes. ‘Cobrem o rabo como se estivessem no Polo Norte e para cima usam decotes até ao umbigo’». Ou esta outra registada pelo filho: «A franqueza feminina que mais irritava Renoir era o penteado. ‘Em vez de deixarem os cabelos em paz, torcem-nos, martirizam-nos, queimam-nos, frisam-nos como ovelhas ou mascaram-se de salgueiros chorões’!». Mesmo preso a uma cadeira de rodas, Pierre-Auguste Renoir contiuava atrevido. Travava uma guerra diária contra o reumatismo e pintava com os pincéis presos por ligaduras às mãos deformadas, mas não perdia o sentido de humor.