Quando os estudantes viviam de quarto em quarto

Os estudantes que não tinham uma família remediada, emigravam da província, sobretudo para Lisboa, arranjavam um emprego com um ordenado que permitisse estudar e viver com o essencial.

por Manuel Pereira Ramos
Jornalista

Ultrapassados os tempos de incerteza sobre seriam ou não admitidos no curso que querem estudar, os novos universitários têm agora que fazer frente aos não fáceis desafios que a vida que vão estrear irá exigir, não só a eles como aos agregados familiares a que pertencem e de cujo orçamento sairão os recursos necessários para poderem satisfazer os gastos que se avizinham como a compra dos livros, o pagamento das propinas e, sobretudo, a alimentação e o alojamento. Para as famílias mais carenciadas, estes novos encargos obrigam a cortar aqui e ali fazendo sacrifícios que não têm mais remédio que assumir com resignação, tudo seja a favor de que os filhos estudem bem, não fiquem pelo caminho e cheguem a conseguir o tão desejado canudo que os orgulhosos pais esperam que sirva para que a vida dos filhos seja melhor da que a que eles tiveram.

Nada disto é novo já nos tempos da minha geração, os que não tinham uma família remediada que pudesse pagar, emigravam da província sobretudo para Lisboa, procuravam arranjar um emprego com um ordenado que permitisse estudar e viver com o essencial, sem nada de luxos, mas com a esperança de que estes pudessem chegar, algum dia mais tarde. Nessa época, as residências universitárias não existiam, agora, sim há, mas não chegam para todos, a alternativa de compartilhar uma apartamento com amigos era desconhecida, para os das capital, como os meus amigos e colegas Quim Patrício, Zé Antão, o João Nobre, o Jaime Ramires ou o grande futebolista Alexandre Baptista, a solução era continuar a viver lá em casa até acabarem o curso ou se casarem, enquanto que para os outros, os vindos de fora como eu o Aníbal Cavaco Silva e muitos mais, o único remédio possível era o de alugar um quarto a uma família que desse cama, roupa lavada e alguma coisa para comer, tudo por um preço que estivesse ao alcance de umas posses bastante limitadas.

Viver dessa forma era uma autêntica aventura, podia haver a sorte de ir parar a uma família mais ou menos estável como me parece que foi o caso do Aníbal, mas, em geral, eram pessoas humildes com problemas de toda a espécie que, só para poderem sobreviver, prescindiam da sua intimidade e deixavam entrar um estranho nas suas casas. A primeira onde estive foi na rua de S. Bento, em frente da casa da Amália Rodrigues e a um passo da Assembleia Nacional, havia uma enorme sala onde dormiam sete ou oito homens, eu e um amigo pagávamos melhor e tínhamos direito a um quarto, mal cabíamos os dois, mas lá nos arranjávamos. Mas aquilo era um inferno, o dono da casa passava o dia na taberna e, quando chegava a noite, descarregava os efeitos do álcool na pobre mulher que, depois dum dia de trabalho sem parar, sofria os maus tratos, leia-se tareia, daquele horrível marido.

Aí começou a peregrinação de quarto em quarto sempre à procura de um que fosse melhor que o outro, isso nunca acontecia, ia de pior em pior cada um com a sua estória que contar. Uma casa houve em que o avô, farto da vida, apareceu uma manhã enforcado na casa de banho, noutra a dona tinha um namorado que tocava numa orquestra e que ia lá ensaiar o trombone e aquilo era insuportável, em mais uma, em Campo de Ourique, deixei a renda paga, fui passar agosto fora, a meio do mês tive de voltar a Lisboa e ao abrir a porta do quarto quase morro de susto ao vê-lo ocupado por mais de uma dezena de africanos, entre choros de desculpas os donos prometeram que toda aquela gente iria sair de forma imediata, de hora em hora aí lá e tudo continuava na mesma, como não podia pagar hotel nem queria incomodar os amigos, acabei por passar a noite num banco do Jardim da Parada até que pude entrar, ao cair na cama esta partiu-se e toda a minha roupa tinha desaparecido, um desastre. Todos os que passaram por essa situação, têm nas suas recordações um sem número de episódios como estes para contar, tudo vivido num ambiente muito estranho e dramático onde estudar era impossível, os cafés, as bibliotecas, os jardins e às vezes as casas dos amigos, eram o grande refúgio onde preparar os exames.

Oxalá que tudo isto seja história, que os que agora começam a carreira universitária longe dos seus possam dispor de um sítio onde possam viver e estudar dignamente e não tenham de passar por semelhantes experiências que, vistas depois do tempo que passou até fazem sorrir, mas que, na altura, foram penosas e não tiveram nenhuma graça nem para os hóspedes nem para os donos da casa, tão pouco remediados eram uns como os outros mas nós ao menos sabíamos que estávamos a construir um futuro melhor, isso para eles, pobre gente, não estava ao seu alcance.