Margarida Vale de Gato. Uma poesia sôfrega

Na mais recente edição do seu livro em constante reelaboração, Mulher ao Mar / E Corsárias, fica clara a dimensão omnívora desta poesia, em que todos os motivos são puxados para a oficina de Vale do Gato, numa sofreguidão em afirmar-se enquanto poesia e que faz com que nada lhe seja estrangeiro. 

Texto de João Oliveira Duarte

Um olhar de sobrevoo sobre a produção poética contemporânea poderia defender o seguinte: nos últimos decénios assistimos a um lento ocaso da poesia – o que não implica o seu desaparecimento ou mesmo a inexistência de poetas e poéticas interessantes. Poder-se-ia falar em declínio, se esta palavra não trouxesse agarrada a si uma retórica que, à custa de a tentarmos lembrar, acabamos por esquecer – é uma mot d’ordre que chega directamente das primeiras décadas do século passado e, para quem, como nós, ainda vive nessas décadas (é uma forma, entre outras, de sermos já póstumos, por mais paradoxal que isso possa parecer), é particularmente grave o seu uso.  Daí que talvez se possa ou deva falar em ocaso, como se isso, a poesia, sobrevivesse ao desaparecimento das suas condições de possibilidade (Adorno, pensador respeitável alemão, dizia o mesmo relativamente à filosofia), mantendo ainda a memória de um outro tempo e espaço que já não é o nosso. Nada há, neste diagnóstico, de nostálgico – também ele faz parte de uma retórica que, um dia, deveria ser mapeada e objecto de reflexão – e o ocaso é uma condição das coisas mortais: épocas houve sem poesia e não foram nem melhores nem piores que a actual.

Este ocaso não é necessariamente um juízo de valor quanto à poesia que foi sendo produzida nas últimas décadas – deixemos aos funcionários do Espírito essa função julgadora – mas diz respeito a um conjunto de sintomas que facilmente podem ser elencados e que deveriam ser objecto de reflexão. O primeiro é uma certa atomização do campo poético, onde as linhas de demarcação já não são estabelecidas através de poéticas distintas, mas gravitam em redor de factores exteriores ao próprio campo (talvez a Averno ainda mantenha a memória de uma outra forma de organizar o espaço da poesia). Esta atomização, por mais que os seus defensores vejam nela um acréscimo de liberdade, tem como consequência uma reificação – usemos esta palavra também ela cheia de memória – onde o lugar de cada um é determinado por si próprio e nunca em relação com os outros. Acabando com a dimensão colectiva, que servia tantas vezes para conferir movimento a um campo exíguo, relativamente fechado, e tendencialmente parado, a atomização tende a homogeneizar e a tornar igual tudo quanto devia ser objecto de diferença e de afirmação.  Não é o único sintoma, longe disso, e poder-se-ia ver no eclipsar da crítica no espaço público, na desconfiança generalizada relativamente aos prémios literários, na incapacidade da academia em estabelecer linhas de demarcação, na forma como esta deixou de ser o baluarte da tradição, outros tantos momentos que não dizem respeito apenas ao ocaso da poesia, mas que têm nesta consequências profundas.

Seria igualmente interessante ver como é que a permanência de certos rituais (os festivais literários ou as entrevistas, por exemplo) são igualmente exemplos de um certo ocaso, como se toda a economia simbólica que rodeia o campo literário se tivesse tornado, nos últimos decénios, um exemplo de uma famosa frase de um pensador que há quem queira à força relegar para o campo das relíquias históricas: a história repete-se, primeiro enquanto tragédia, depois como farsa. Hoje, tendo a tragédia dado lugar a uma catástrofe tornada permanente – longe, portanto, da intimação à grandeza que aquela continha, quando o homem olhava o deus nos olhos –, já só resta uma economia simbólica que funciona num vazio para o qual ninguém quer olhar.

Um momento importante neste ocaso é a relação à tradição poética. Há os momentos anedóticos, que mostram o desaparecimento desta última: numa entrevista, uma poeta dizia que tinha aprendido com Adília Lopes que poderia escrever sobre tudo, mostrando a mais completa ignorância da poesia portuguesa da segunda metade do século XX, e um outro perguntava, de forma inocente, quem tinha sido Joaquim Manuel Magalhães, matando sem pudor um dos melhores – e mais tortuosos – poetas dos últimos cinquenta anos – e ainda vivo.

No entanto, o ocaso não se declina apenas em esquecimento e é aqui que Margarida Vale do Gato se torna um caso interessante. É, sem margem para grandes dúvidas, um dos projectos poéticos de maior fôlego dentro do contexto português (retiremos da equação, por razões diferentes cada um deles, Daniel Jonas, Andreia C. Faria ou Elisabete Marques) e Mulher ao Mar e Corsárias mostra bem todas as capacidades e potencialidades desta poesia em constante reescrita. São dois livros onde o intenso diálogo com a tradição poética (não necessariamente portuguesa) é afirmado em quase todos os seus momentos, raramente caindo num culturalismo demasiado óbvio, em cópia – o estratagema, fácil, do poema à moda de… – ou no enclausuramento dentro de condições sociológicas determinadas. Há momentos menos conseguidos, se se quiser ser simpático, que fazem lembrar um famoso dito de André Gide (não é com boas intenções ou bons sentimentos que se faz literatura. Mas o contrário, anotemos, também não é verdade), mas que, em última análise, podem e devem ser assacados à falta de edição que se transformou num dos maiores flagelos da poesia portuguesa – a comparação é injusta, mas quem olhe para o primeiro livro de, por exemplo, João Miguel Fernandes Jorge, vê um cuidado arquitectónico e rapsódico que, na edição contemporânea, raramente encontramos.

“Tanto ligada ao ar como à terra, chegas

Agora aos onze – capicua que não dá

Para reflectir ao contrário, fica errada.

 

Mas é um triunfo a altura dos mais velhos

Como já sabes embora te não lembres

De ti bebé em casa, pequena e infinita,

 

Do pai a deslizar-te em choro pelos joelhos

Quase abaixo do queixo (…)

É um dos múltiplos exemplos de uma poesia que, por vezes, cai no bom sentimento e na boa intenção, arruinando a possibilidade do poema.

No entanto, talvez a característica em que o ocaso mais se faz sentir em Margarida Vale do Gato é no extremo artificialismo de uma poesia que em momento algum deixa de estar consciente de si enquanto poesia – esquecendo que a literatura só é retorno sobre si na medida em que pretende sair, atingir um exterior que a faz ter sentido. E trata-se, efectivamente, de artificialismo: em todos os poemas encontramos uma prosódia que não deixa de se mostrar enquanto prosódia, enquanto ritmo que é aposto – ou imposto – ao resto:

“(…) Fazer poesia é árido cilício

Mesmo que ateie o sangue, apenas pus

Se extrai, nem nunca pela escrita

 

Um sólido balança, ou se levita.

Então sobre o poema, o artifício

A borra baça, a mim a extrema luz”

Nada nesta poesia parece escapar a uma espécie de ar dos tempos (“à língua deito lume” poderia ser um verso de uma infinitude de poetas contemporâneos) que lhe confere ao mesmo tempo o seu interesse, mas, igualmente, o seu limite, como se Margarida Vale do Gato se limitasse a refazer, de forma bastante mais competente e consciente, sem dúvida, um conjunto de imagens que chegam de outro lugar (andam por aí, poder-se-ia dizer) e que estão, de forma mais ou menos confusa, noutros poetas seus contemporâneos e bem menos preparados que ela – com muito menos artifícios e ferramentas. É a dimensão omnívora desta poesia, que também ela decorre do seu artificialismo: todos os motivos que vamos encontrando aqui e ali são puxados para a oficina de Margarida Vale do Gato, a sofreguidão com que parece apostar em afirmar-se enquanto poesia faz com que nada lhe seja estrangeiro e, da condição feminina ao quotidiano, dos motivos líricos ou elegíacos ao banal e ao corpo, nada escapa à sua forma particular de tradução poética (num dos poemas reclama-se, efectivamente, da condição de tradutora). Mesmo a nível formal vamos encontrando de tudo um pouco (incluindo sonetos), bastando olhar para a mancha gráfica para verificarmos a abundância de recursos que Margarida Vale do Gato utiliza.

Uma poesia demasiado consciente de si mesma enquanto poesia – que está constantemente a mostrar as suas possibilidades e as suas potencialidades, a sua capacidade de organização prosódica e imagética dentro do poema – acaba por ter uma consequência bastante interessante: a ausência de erro, da “mais aguda fífia do trombone”, como lhe chamava António Franco Alexandre, onde “o corpo sabe a gente” (aqui, pelo contrário, o corpo nunca sabe a gente e o poema nunca sabe a nada, a não ser a palavras).

Quando uma poesia mostra demasiado as suas capacidades, quando parece apostada em demonstrar as suas potencialidades técnicas, quando o artifício se torna artificialismo, é sinal de que há, nela, algo de errado (nem que seja a sua excessiva consciência), de que se torna, no limite, vazia – feita exclusivamente para não falhar, com vista apenas à perfeição formal.

É, digamos assim, uma outra forma de declinar o ocaso. Neste, já não se trata de esquecer o passado, a tradição, mas de estar de tal forma consciente dele e da condição de herdeiro que a poesia se transforma num jogo, fechado sobre si mesmo, de ritmos e imagens. E será essa, talvez, o horizonte de esperança para esta poesia: levar o artificialismo a um ponto tal que ele se torne profundamente improdutivo.

É o problema do excesso de consciência relativamente às capacidades e potencialidades técnicas. Um pouco como um outro nome da poesia contemporânea (Sebastião Belfort Cerqueira), mas com uma dimensão cultural que este não tem, a poesia de Margarida Vale do Gato encontra um limite naquilo mesmo que lhe confere o seu interesse, no excessivo saber-fazer que, em todos os poemas destes dois livros, demonstra, como se, a dada altura, a única coisa que interessasse fosse, de facto, a demonstração de que se sabe construir um poema sem qualquer falha. E, com tanta prosódia, e tanta prosódia consciente de si mesma, o resultado torna-se bastante interessante: o cavalo do verso, para usarmos uma imagem de Giorgio Agamben, está estranhamente imóvel, constantemente a contemplar o seu próprio movimento parado. Poeta cheia de artifícios, Margarida Vale do Gato daria – e é – uma excelente teórica e crítica.