O burka de neve

O beijo dado pelo Príncipe sem consentimento da Branca de Neve é muito mais grave do que o aumento do assédio, das violações e da mutilação genital nas cidades europeias.

Desde que Judas se serviu de um beijo para trair Jesus e condená-lo à morte, este contacto labial só tem trazido problemas à humanidade. Michael Corleone beija o seu irmão Fredo antes de o matar, Brejnev e Honecker beijam-se em público como forma de confirmar a opressão comunista sobre a RDA, Madonna e Britney Spears beijaram-se durante uma entrega de prémios para aumentarem as vendas das suas canções, e, recentemente, Rubiales beijou sem consentimento Jenni Hermoso. De todos os tipos de beijo, este, o sem consentimento ou forçado, é o grande problema da atualidade.

Que sorte têm as mulheres do Afeganistão e outras islâmicas forçadas a usar burka ou a tapar a cara. Essas, ninguém as beija sem consentimento. Na verdade, a única forma das mulheres ocidentais evitaram semelhante abusos é começarem a usar burkas também, vestirem os antigos fatos de mergulho ou deixarem de lavar os dentes até conseguirem uma halitose que afugente mosquitos.

No entanto, como estamos no século XXI, mais importante do que discutir os abusos contra as mulheres na realidade é discuti-los na ficção. Mais importante do que discutir o livro da somali Ayaan Hirsi Ali, Prey: Immigration, Islam, and the Erosion of Women’s Rights, no qual pergunta por que motivo ninguém quer falar sobre o aumento da violência sexual contra mulheres nas cidades europeias, é discutir o livro da Branca de Neve e dos Sete Anões. O beijo dado pelo Príncipe sem consentimento da Branca de Neve é muito mais grave do que o aumento do assédio, das violações e da mutilação genital nas cidades europeias. Afinal, a Branca de Neve não pode comentar o sucedido, enquanto as mulheres europeias abusadas dizem coisas muito desagradáveis para ouvidos politicamente correctos.

Todavia, o beijo na Branca de Neve levanta questões colaterais à violência sexual contra mulheres. Ora como durante mais de um século nenhuma mulher considerou que esse beijo era abusivo, só podemos concluir que durante o século XX não existiu uma única mente feminina com inteligência suficiente para distinguir uma violência sexual de uma brincadeira infantil. Porque se calaram Simone Beauvoir, Angela Davis, Simone Veil, Joan Didion, Naomi Klein, entre outras? Como foram capazes de ler às suas filhas ou sobrinhas esta história tenebrosa sem reparar que estavam a legitimar a violência sobre as mulheres?

Coitadinhas, eram tão burrinhas. Graças à sua conivência é provável que inúmeras mulheres tenham sofrido abusos e até violações pensando que se tratava de uma brincadeira. Logo, talvez seja melhor cancelar também as suas obras.

Felizmente agora há mulheres muito mais inteligentes do que elas que conseguem vislumbrar abusos patriarcais em todo o lado. Madames Poirot do abuso encoberto. E o método para encontrar tais abusos é muito simples: qualquer obra escrita por um homem branco ocidental tem, forçosamente, alguma intenção pérfida contra as mulheres. Uma boa prova deste método sou eu próprio. Na maioria dos meus romances a personagem principal é uma mulher, sendo isto um truque para eu descarregar as minhas taras patriarcais.

Seja como for, a Branca de Neve tem outros problemas de abuso que devem ser denunciados. A sua relação com os sete anões pode configurar um caso de desrespeito por pessoas com deficiência física, assim como o facto dos anões lhe oferecerem guarida com a condição de ela trabalhar para eles pode reforçar o estereótipo machista da mulher dona de casa obediente – tal como o cartaz do Estado Novo em que o lavrador chega a casa e encontra a mulher a trabalhar. E quanto a beijar uma morta, isso é um apelo à necrofilia. Enfim, a Branca de Neve é problemática do princípio ao fim e seria melhor proibi-la de uma vez.

Outras obras infantis que também devem ser proibidas são A Bela Adormecida – outro caso de beijo abusivo –, a Heidi –há quem veja no seu avô um potencial pedófilo –, O Capuchinho Vermelho – o lobo mau é outro pedófilo disfarçado – e O Flautista de Hamelin – porque ensina as criancinhas a seguir estranhos e, pior, revela preconceitos contra os animais.

Entretanto, em Espanha, graças à Ley de Garantía Integral de Libertad Sexual, vários violadores viram as suas penas reduzidas, entre os quais um homem que abusou de uma enteada de 14 anos. e alguns até foram libertados. Mas, o que isso importa comparado com o abuso da Branca de Neve?