A teologia da sociedade em J.R.R Tolkien aos 50 anos da sua morte

Escurado numa mitologia protológica complexa, fascinante e numa sólida mentalidade filo-medieval, toda a produção de J.R.R. Tolkien – que fui lendo desde os tempos da saudosa Livraria Britânica na rua José Falcão, bem perto da Faculdade de Engenharia do Porto – está prenhe da mundividência cristã. Apesar de, na minha opinião, ser um erro identificar…

Escurado numa mitologia protológica complexa, fascinante e numa sólida mentalidade filo-medieval, toda a produção de J.R.R. Tolkien – que fui lendo desde os tempos da saudosa Livraria Britânica na rua José Falcão, bem perto da Faculdade de Engenharia do Porto – está prenhe da mundividência cristã. Apesar de, na minha opinião, ser um erro identificar ‘tout court’ Frodo com Cristo, não há dúvida nenhuma que todas as personagens benevolentes e benfazejas dos “Senhor dos Anéis” têm traços crísticos inegáveis. Aliás, três delas, são a personificação dos ’tria munera’ (ou dos ‘três múnus’) de Cristo enquanto ‘sacerdote’ (Frodo), ‘profeta’ (Gandalf) e ‘rei’ (Aragorn).

Mas não é para essa grande trilogia que eu gostaria de chamar a atenção de quem possa vir a ler este artigo. Não. Desejo, isso sim, e como comemoração do cinquentenário do ‘dia natalis’ de Tolkien (2/Setembro/1973), pegar na sua mais vasta obra e dizer algo sobre a sociedade desde o prisma religioso de tal Autor. Na verdade creio que estamos a atravessar tempos que, para ser eufemístico, são profundamente indistintos, devido ao progressivo distanciamento entre o nosso quotidiano e o ordenado mundo medieval em que se movia Tolkien – e isto, por mais que a União Europeia, na sua “Carta Identitária”, tenha ignorado olimpicamente a suposta ‘Idade das Trevas’ (Luminosas [acrescento eu necessariamente]).

Mundo medieval esse, que parece tão congénito a quem lê as suas obras, quiçá por elas apontarem para uma metafísica e uma religião endogenamente humana e humanizante, mas que foram remetidas para algum lugar ainda mais sombrio do que aquele para onde elas próprias se autossubmeteram. Acontece que as obras de Tolkien convidam a sair de nós e a sermos ‘peregrinos’ (e toda a peregrinação termina com o regresso a ‘casa’ transfigurados pelo que se viveu) até nos encontrarmos. Desse modo deixamos de ser servos do que possuímos (mas que, num processo de ‘gollumização’, acaba por nos possuir) à medida que o damos e oferecemos numa liberalidade que liberta e nos faz sensíveis a quem nos rodeia, bem como a toda uma Criação que é o nosso estimado útero espiritual.

Tolkien não tem dúvidas: todas as criaturas cientes, das mais radiantes às mais obscuras, possuem em si um sentido de moralidade baseado no serem um espelho, mais ou menos diáfano, de Eru – a Divindade, continuamente suscitadora e sustentadora de toda a realidade. Devido a espelharem-No, é propósito de todas essas criaturas conhecerem-No melhor com a ajuda dos demais, para O admirarem e, num respeito total do segredo da intimidade do outro, com Ele colaborarem criativamente. ‘Colaborar’, no mundo de Tolkien, consiste no inserir, pelo amor que torna tudo desvelador da verdade, porções originais na grande música usada por Eru para aquela Sua mencionada ação, porquanto, a música é aquilo que mais totalmente resiste a qualquer intento de tradução.

Entre esses ‘demais’, Tolkien dá lugar privilegiado à família, a qual é tudo menos um (sub-)produto resultante de uma qualquer fabricação social, antes, e como se vê em “A Leaf by Niggle”, um ícone da convivência entre o ‘Juiz’, o ‘Médico’ e o ‘Fogo secreto’, que são um só mistério de amor aberto ao universo. Dito isto, a ligação entre os membros de uma família vai mais longe, muito mais longe do que a biologia, apontando para elos comuns com Eru e, assim, refletindo-se necessariamente na sociedade. Não na linha de uma projeção que cada um emite para a rede interpessoal, mas como um organismo espiritual que funda a vida das pessoas enquanto as nutre enquanto vigários do “Médico”.

A coesão social não requer uma conformidade unívoca, mas pede uma dada visão comum da realidade circundante por um, não só (mas também), um sentimento religioso que, estando solidamente ancorado em cada ser racional, aflora, não tanto em religiões instituídas – algo que creio ser inexistente no(s) universo(s) de Tolkien –, mas em atos religiosos. Atos que não precisam de ser regulados, pois, brotando do mais íntimo de cada um, congregam a diferença numa unidade, sobretudo em ‘instantes cintilantes de eternidade’ em que nos desapegamos de nós. Onde há amor, morremos ao ‘ego’ e somos vitrais do ‘Fogo eterno’; onde não há, já estamos mortos. Fora do desígnio amoroso de ‘Eru’, só surgem problemas; com ‘Ele’, soluções.

Entre estes atos, os mais cristiformes, são, necessariamente, os mais valorizados, num hino sobretudo ao homem (varão e mulher) comum e simples: a bondade, o serviço, a generosidade, a interajuda, a humildade, o amor e sobretudo o perdão. Mas tal sentimento religioso não é uma perceção subjetiva: ele aponta para uma metafísica substancial, que nenhuma sociologia pode observar ou analisar. E isto, especialmente por tal ciência tender a reduzir o homem a um conjunto de mecanismos auto- e exo-regulados, a maior parte das vezes inconscientemente, numa extrapolação darwiniana linear que esvazia o humano do homem.

Para Tolkien, o dito no parágrafo anterior é essencial, pois a felicidade – a verdadeira (não a que ilusoriamente se pensa poder encontrar ao fim do túnel de vinte cervejas) – decorre da irmandade, não dos Anéis, mas em e com Eru, que faz manifestar a verdade, a beleza e a alegria em todas as culturas. A ideia de que uma cultura, e sobretudo que aqueles que nela vivem, pode ser radicalmente malévola é totalmente errônea e ofensiva para Eru (Deus). Mesmo os que menos parecem ser suscetíveis de serem resgatados, dos abismos que construíram para si mesmos, podem encontrar um remédio na interajuda social. Ou seja: a reforma social pode sempre ser esperada.

Quando Sam Gamgee – um dos tais seres humanos mais ordinários, cheio de senso comum, de olhos abertos, de ‘pés no chão’ e nutrido pelo que dimana do aduzido sentimento religioso – vê alguém que antes o quis matar, não vê um ser por quem sinta inimizade. Pelo contrário: compadece-se dele e pergunta-se quem teria sido ele, de onde teria vindo, o que teria sido a sua vida até se manifestar como alguém que lhe quisera o mal. Um mal particularmente poderoso – mas não tão pérfido como o da pseudo-divindade do terceiro livro das “Instituições Cristãs” do teocrata de Genebra, diante de quem Morgoth parece um ‘anjinho fofinho’ – quando decorrente de ideologias populistas e/ou totalitárias que corrompem os sobreditos atos religiosos.

Não pensemos que isto é algo que só acontece na(s) Alemanha(s), na URSS e na China de Tolkien, ou, então, no Irão, na Rússia, na Arábia Saudita, no Afeganistão, na ‘nova’ China e, entre outros, na Coreia do Norte com que nos cabe conviver. Não: ele ocorre, pelo nosso fascínio pela cegueira sem labirintos auto-promotores, metamorfoseado de modo muito mais subtil, e assim quase que invisível, nos nossos ‘Shires’ e ‘Rivendells’. Há anos falava-se, nos sítios onde tantos de nós laboramos, em ‘pessoas’; hoje em ‘recursos humanos’; amanhã talvez se fale em ‘bens humanos’ e até, quiçá, em ‘produtos humanos’ – já para não falar de ‘desperdícios humanos’, como já ouvi alguém (forjador sarumaniano?) falar dos doentes mentais profundos.

Quando delineava estes traços da sociedade, Tolkien tinha em mente, sem dúvida alguma, a destruição da natureza (e já não mais da Criação); o ceticismo-racionalista de David Hume; o racionalismo-formalista de Kant; o cientismo-utilitatista de Beltham e Comte; o reducionismo-determinista de Marx; o prometeísmo-nihilista de Nietzsche e o estatismo-burocrático de Weber; etc. Hoje, nós defrontamos outros ‘-ísmos’ e os seus respetivos cultos, ritos, dogmas e até técnicas religiosas que, negando aqueles ‘múnus’ crísticos, nos ‘enfiam barretes’ e fazem-nos esquecer «a compaixão, que é o presente de um coração gentil» – conforme diz Aragorn a Éowyn em “O Regresso do Rei”.

Mas quer, uns, quer os outros ‘-ismos’, impedem-nos de nascer para o amor e descobrir que nos demais – em qualquer um dos demais – só os podemos amá-los se amarmos o Infinito que os cria. Eis o que nos faz romper a armadilha hábil de aceitarmos ingenuamente o nosso ‘ego’ e só estimarmos, nos demais, o que é análogo aos traços desse ‘ego’ (mas não a este em si). Face a isto, dificilmente pode existir uma sociedade que se aguente, e, como teólogo, interrogo-me, como fez Tolkien a seu tempo, se não é isto que se está a querer realizar.

Interrogo-me, sim, mas talvez numa mera atitude retórica, pois creio que a sombra negra e fétida que se espalha desde Mordor – com o seu alimentar capilar, quer da corrupção e da incompetência pacóvias, quer da ‘húbris’ na indiferença face ao que é visível a todos – inspira a subserviência face ao poder insinuadoramente despótico e, assim, à afasia do medo.

Afasia sobretudo face: a representações antropológicas canceladoras; à inércia policial e jurídica; à transformação da família numa cola forense de mónadas oscilantes; ao consumismo degenerador e usado como escape; à degradação ambiental; à alienação decorrente da globalização da ausência de relações devido ao uso de tecnologias viciantes; ao secularismo radical que se move pelos interesses do poder privado; à terrível dissonância no acesso à saúde, ensino e justiça; etc.

Aqui é que a supramencionada reforma social se torna mais complicada, pois o deslize para, de um lado, o orgulho e, do outro lado, a escravidão, é muitas vezes desejado em nome do ‘prestígio’ e de uma ‘malga se sopa’, respetivamente. Só vendo e denunciando, com o bem, essas situações e, a par, inoculando-as com um ‘despertador’ – mas nunca um ‘rolo compressor’ – dos princípios éticos (a serem, portanto, motivados internamente) é que se quebrará a força sem rosto de se querer dominar e de se aceitar ser dominado.

Mas é como diz Gandalf em “As Duas Torres”: mesmo que «nunca tenha havido muita esperança, apenas uma esperança de tolos», ela existe. E existe com garantias, mesmo que somente através daqueles que, entre nós, são halflinks, desajeitados e imaturos face a Eru. Aqueles que, simultaneamente e por uma sobriedade que é sinónima de realizar tudo como um ato de amor, são uma presença que é um sorriso para a existência dos demais. Assim já se estará a viver, antecipadamente, a existência na ‘Arda Healed’ enquanto uma eucatrástofe que é um fim, mas não o fim, pois no amor é possível crescer indefinidamente.

Termino, e faço-o pedindo emprestadas palavras a um dos maiores Maiar of Valinor – Rui Reininho –: leiam «o “Senhor dos Anéis” / Só de uma vez». Mas deixando-se guiar pelo som da harpa eólica do amor, não ignorando que, como é dito em “O Silmarillion”, «se a alegria é a fonte que se ergue no Sol, as suas nascentes estão nos poços de lágrimas incomensuráveis que se encontram no centro da Terra».

Alexandre Freire Duarte

Teólogo católico, docente da FT da UCP, investigador do CEHR-UCP