O morto que respirava

Num dos livros de um dos mais misteriosos e dos mais famosos personagens do velho faroeste americano escreveu-se uma frase que deveria ter ficado para a História da Literatura: «Entre os mortos havia um que respirava – Texas Jack!» Respirou e muito…

É uma das frases mais fantásticas da história das revistas de cowboys que fizeram parte da nossa infância: «Entre os mortos havia um que respirava – Texas Jack!». Se formos a ver bem é uma das frases mais fantásticas de toda a literatura de aventuras. Oh, diacho! Que digo eu?! Estou para aqui com cerimónias. É mas é uma das frases mais extraordinárias de toda a literatura de todos os tempos, metam o Balzac, o Eça, o Fitzgerald e quem mais quiserem, desde o Homero aos dias de hoje! «Entre os mortos havia um que respirava!». A gente nem precisava do suspense a seguir porque o único morto verdadeiramente capaz de respirar só podia ser Texas Jack, ora essa. Texas Jack era imortal e capaz de todos os impossíveis.

A história do velho Oeste americano, tão pobre em cenários que qualquer um fazia um filme na cave de um apartamento com uma foto de areia e catos na parede, ou em Itália, quando o grande Sergio Leone começou a empacotar os seus «westerns spaghetti» depois da queda de popularidade dos canastrões de Hollywood como Jonh Wayne, Gary Cooper, Clint Eastwood, Lee Van Cliff, James Stewart, Yull Brynner e por aí fora, acabou por ter tanta importância no cinema como nas revistas aos quadradinhos e até sem eles. E já vai longa a história. Dos «westerns» aos quadradinhos, digo eu. Basicamente teve o seu início há quase cem anos, vejam bem, no ano de 1928, no momento em que uma série de revistas de banda desenhada chamada Young Buffalo Bill apareceu no Estados Unidos. Claro que trazia uma grande vantagem acoplada: qualquer um podia ficar imerso nas cavalgadas vertiginosas das pradarias na mesa de um café ou lá em casa, sentado no sofá. A malta gostou. E começou a comprar. O faroeste vendia-se barato, em qualquer esquina de Nova Iorque ou de Chicago, e sempre distraía o povo dos crimes diários praticados por grupos de mafiosos que, esses, tendo sucesso em Hollywood foram desprezados nos «comics».

Allan Moir Dean: eis um nome que implacável e injustamente o tempo foi apagando ao ponto de, aposto eu, aqui mesmo, singelo contra dobrado, de não haver nenhum de entre vós, leitores, que me consiga dizer de imediato de quem se trata. Claro que se o João Paiva Boléo se metesse ao barulho, estilo Tom Mix (que em Águeda era apenas o lobo de Alsácia do tenente-coronel Lobão – mas por que é que ninguém fez uma banda desenhada com as fantásticas personagens de Águeda???), eu tirava da mesa os meus níqueis – há tipos imbatíveis! Foi este Allan, nascido no Colorado, em Greeley, no seio de uma família de dez irmãos, que começou a publicar, a partir de 1935, tiras de banda desenhada de cowboys e índios num jornal chamado The Greeley Tribune: o nome era King of the Royal Mounted e saía aos domingos, num suplemento que atingiu os píncaros da popularidade. Mas ninguém se atreva a falar de polícias montados com algum canadiano a ouvir. O canadiano que ouviu foi Zane Grey. Polícia Montada, os Mounties, são propriedade dos canadianos – que lhes faça muito bom proveito – e Grey não tardou a responder aos tiros de Allan com a ajuda de outro compatriota, Charles Flanders, pondo na rua uma série de livrinhos baratos com as aventuras da Polícia Montada Canadiana. Uma atitude muito patriótica, sim senhores, mas se estivéssemos à espera dos canadianos para nos oferecerem pérolas como as de Texas Jack podíamos adiar o fim do mundo para lá do ano 2030 (como não acabou em 2020, calculo que tenha havido uma prorrogação de contrato por dez anos…).

seis balas à cintura

Antes de estar a respirar junto dos outros mortos que o rodeavam, Texas Jack foi vivendo e respirando alegremente em romances de papel ordinário, escritos à máquina, isto ainda no final do século XIX. Não havia cá desenhos. Só patacoada e da boa. Texas Jack combatendo dezenas de sioux só com o seu seis balas na cintura. Texas Jack perseguindo assassinos sem escrúpulos por desfiladeiros apavorantes.Texas Jack… Texas Jack… Texas Jack… Texas Jack or The White King of the Pawnees, escrito por Ned Buntline, foi o primeiro. Impressionante! E tão delirante como a criatividade de Buntline, de nome completo Edward Zane Carroll Judson Senior, vindo ao mundo a 20 de Março de 1821, em Harpersfield, Nova Iorque, cumpridor do serviço militar durante a Guerra Civil Americana mas devida e consideradamente dispensado a tempo por motivos de quotidiana embriaguez.

Não me cabe aqui adivinhar a importância queTexas Jack veio a ter na bebedeira que viria a tornar-se crónica de Ned. Não ponho as mãos no fogo por ninguém. Muito menos nas de um borracholas. Mas Texas Jack não precisou de Buntline para continuar a disparar com uma pontaria tal que, a 50 metros, tirava a rolha e respetivo gargalo de qualquer garrafa de whisky que lhe pedissem para abrir à bala. Custava entre 5 e 10 centavos quando era uma personagem somente descrita e não custou muito mais quando passou a ser uma personagem desenhada. Tornou-se um assalariado dos Serviços Secretos da Confederação e as editoras americanas da época traçavam armas para garantirem as suas aventuras, sendo publicado por todas as mais conhecidas, da New York Dime Library à Nickle Library, da Log Cabin Libraryà DeWitt’s, passando pela Ten Cent, Street e Smith etc. e tal. Foi Texas Jack que pôs fim a uma terrível trama que tinha como ponto alto o rapto do Presidente Lincoln, publicada espaçadamente no Saturday Evening Post – a realidade sempre muito mais cruel do que a ficção mandou matar o homem da inconfundível barbicha no camarote de um teatro com um tiro nos miolos. Em 1906, quase a entrarmos no ambiente insuportável que levaria à IGrande Guerra, Texas Jack apareceu na Alemanha – a Verlagshaus für Volkslitteratur und Kunst, de Berlim, publicou uma série de romances tuta e meia, em alemão claro está!, intitulada Texas Jack Der Grosse Kundschafter, Texas Jack o Grande Batedor numa tradução tão barata como a produção. Histórias de um fictício Jack Hawkins (conhecido por Texas Jack), um órfão desvalido mas imperativamente corajoso, que se torna num batedor do oeste americano, sempre metido em sarilhos e resolvendo questões com tribos de índios e contrabandistas de ópio, chineses vindo do Oriente para trabalharem nos caminhos-de-ferro mas caídos no poço sem fundo do crime.

No meio de tudo isto, Jack Omohundro, que tinha a alcunha de Texas Jack, trabalhava com Bill Cody, que tinha a alcunha de Buffalo Bill, numa série de espetáculos durante os quais cavalgavam com habilidade e dominavam bovinos selvagens e humanos domesticados disfarçados de índios. Num desses espetáculos contracenou com uma atriz italiana chamada Giuseppina Antonia Morlacchi, vinda expressamente de Itália. Apaixonou-se. O que não quer dizer que tenha morrido de amor…