A quantidade de coisas que se pode encontrar dentro dos livros! Marcadores, recibos de refeições, bilhetes de transportes, desenhos, cartas de jogar, até penas de pássaro. Ainda recentemente guardei uma nota de 50 pesos mexicanos entre as páginas de um romance, para que não se estragasse, e agora já não a localizo…
Mas a coisa mais estranha calhou-me recentemente, numa obra de que andava à procura há imenso tempo.
Refiro-me a Escritos sobre arte, do pintor suíço Paul Klee (1879-1940), um dos dois livros que me faltavam para completar uma coleção de escritos de artistas publicada pela extinta Cotovia nos anos 2000.
Além de artista de reconhecidos méritos, Klee foi também professor na Bauhaus, a famosa escola de arte de Weimar que encorajava a pesquisa e procurava dotar os seus alunos das ferramentas essenciais tanto a nível teórico como prático.
Este volume, que reúne 12 ensaios curtos, combina as duas dimensões: enquanto uns textos propõem reflexões sobre a arte moderna ou o papel do artista, outros são verdadeiras aulas em que o autor oferece conselhos práticos, mostrando cabalmente a sua vocação para a pedagogia.
Gostaria, no entanto, de transcrever uma passagem em que Klee lança alguma luz sobre a sua própria obra: «Se os meus trabalhos por vezes sugerem uma impressão primitiva, esse ‘primitivismo’ explica-se pela minha disciplina, pela redução do processo a poucas etapas. É apenas economia, e portanto um ponto de vista altamente profissional. O contrário do verdadeiro primitivismo».
Quem conhece a pintura de Klee talvez associe estas palavras ao estilo profundamente pessoal do pintor, que muitos relacionam com os desenhos infantis. Um pouco mais adiante, Klee fala na «improvisação psíquica» e na «noite cega» – alguns dos seus quadros transportam-nos de facto para um mundo de sonhos emergindo de fundos escuros: «Fortalecido pelos meus estudos naturalistas, posso então pisar de novo o meu domínio primordial, o da improvisação psíquica. Ligando-me de forma apenas indirecta a uma impressão da natureza, posso agora arriscar dar forma àquilo que nesse momento me assola a alma. Anotar vivências que se possam transformar em linhas, atravessando uma noite cega. […] Assim, a minha personalidade mais pura encontrará a sua voz e poderá emancipar-se na maior liberdade».
Naturalmente, um tal grau de liberdade não agradava a toda a gente – e decididamente não agradou aos nazis, que incluíram obras de Klee na célebre exposição de ‘arte degenerada’ de 1937, em Munique. Esta pintura era um corpo estranho que nada tinha que ver com os ideais arianos da Alemanha de Hitler.
Bom, mas como devem imaginar não era a nada disso que eu me referia quando falei da coisa mais estranha que encontrei dentro de um livro. Essa, desculpem, mas terá de ficar para a próxima semana.