Tudo está bem…

Não considero que um artista seja um deus e que o seu trabalho é intocável. Quando um escultor doa uma escultura a uma cidade, os seus órgãos representativos têm todo o direito de dizer: “Obrigado mas não queremos”. Mas é radicalmente diferente recusar uma obra a priori ou mandar removê-la depois de implantada.

A minha mulher, que via no telemóvel as últimas notícias, disse-me: “Há uma petição para retirar uma estátua do Camilo no Porto”.            

Empenhado noutro trabalho, respondi displicentemente: “Isso são uns
maduros quaisquer, que querem dar nas vistas…”

– Não. Dizem que é um grupo de pessoas ilustres.

– Mas essas coisas não têm pés para andar. Retirar uma estátua? Quem é que ia agora mandar retirar uma estátua?

Passadas umas horas, a minha mulher dizia-me: “Parece que o Rui Moreira está de acordo que se retire a estátua…”.

– Não pode ser. É engano. Ele é um homem sensato, nunca diria uma coisa dessas – atalhei eu.

Decorreu mais algum tempo. O Mário Ramires ligou-me para tratar de um assunto deste jornal, e eu perguntei-lhe: “O que é que se passa no Porto com uma estátua do Camilo?”

– O Rui Moreira já decidiu – respondeu-me. – A estátua vai mesmo ser retirada.

Caiu-me a alma aos pés. Não conhecia a estátua, não sabia de que escultor era nem por quem fora lá colocada, mas a remoção de uma estátua é uma decisão muito grave.

Traz-nos logo à cabeça os atos de vandalismo dos talibãs, ou os militantes de movimentos como o Black Lives Matter, que decidiu investir contra as estátuas dos colonizadores da América, começando a apeá-las e a destruí-las.

Apear uma estátua encerra um forte simbolismo.

Ainda se percebe que aconteça após atos revolucionários – sobretudo quando o líder deposto espalhava a sua imagem por toda a parte, em fotografias e esculturas. Compreende-se a remoção das estátuas de Estaline ou Kim Il Sung. Mas fora isso…

Não é que eu considere que o artista é um deus e que o seu trabalho é intocável. Nada disso. Quando um escultor doa uma escultura a uma cidade, como foi o caso, os seus órgãos representativos têm todo o direito de dizer: “Obrigado mas não queremos”. Porque a escultura não faz sentido naquele local, ou porque a figura homenageada não o merece, ou simplesmente por não gostarem da obra.

Mas é muito diferente recusar uma estátua a priori ou mandar removê-la depois de implantada. A diferença entre uma coisa e outra é a que vai entre nomear ou não nomear uma pessoa para um determinado lugar, e demiti-la compulsivamente depois de ter sido nomeada. O significado é outro. No primeiro caso, a não nomeação será frustrante para o candidato; no segundo, a demissão será humilhante para o visado.

Rui Moreira justificou a decisão dizendo que a estátua era “feia e de mau gosto”. O ‘mau gosto’ terá que ver com o facto de Camilo estar, segundo a petição, “abraçado a um exemplar mais ou menos pornográfico”. E que ‘exemplar’ era esse? Uma mulher nua. Mas quantas esculturas há que reproduzem mulheres nuas?

Quanto à estátua ser ‘feia’, trata-se de uma apreciação totalmente subjetiva, que não pode justificar, nem de perto nem de longe, uma remoção. Outros considerá-la-ão bonita. E como sair disto?

Sempre achei o presidente da Câmara do Porto um homem sensato, lúcido e incapaz de uma decisão destas, aparentemente tomada a quente e sem consultar os órgãos da Câmara.

Assim, julgo que o que se passou foi o inverso do que veio a público: Rui Moreira não gostava da estátua e pediu a um grupo de amigos que fizessem uma petição, reunissem um conjunto de assinaturas de pessoas mais ou menos ilustres da cidade – e ele teria um pretexto para retirar o ‘mamarracho’. Só assim se percebe a celeridade com que tudo se passou.

Custa a entender, porém, que, antes de decidir, o presidente da Câmara não tenha visto que a estátua fora aprovada para aquele local pelo Executivo municipal – e só poderia ser removida por uma decisão coletiva deste órgão e nunca por uma decisão pessoal.

Mas ainda bem que assim foi – permitindo a Moreira recuar a tempo. Se a medida tivesse ido para a frente, seria um grande berbicacho para ele. E abrir-se-ia uma caixa de Pandora. Imagine-se o que aconteceria se, por todo o país, começassem a brotar petições para remover estátuas. Não ficaria pedra sobre pedra.

A estátua do Marquês de Pombal viria abaixo porque foi um ditador; a estátua de Eça em Lisboa também, porque o escritor aparece, como Camilo, agarrado a uma mulher nua; Gomes da Costa não poderia ficar de pé porque liderou um golpe que abriu o caminho ao ‘fascismo’; Afonso de Albuquerque a mesma coisa, porque foi um colonizador sanguinário; Camões também teria de ser apeado, porque glorificou o Império; e aí por diante, sem esquecer o maléfico Padrão dos Descobrimentos, que, pelas suas dimensões, não poderia ser removido e teria de ser implodido.

Relativamente a cada estátua, há sempre um grupo para quem ela é desagradável, odiosa ou ofensiva.

Remover uma estátua não é uma brincadeira. Custa-me a perceber como é que aquele grupo de pessoas ‘ilustres’ (incluindo Mário Cláudio, Ilda Figueiredo, Lobo Xavier, etc.) avançou com tanta leveza para a petição.

Enfim, tudo está bem quando acaba bem, e a estátua lá ficou no sítio. Os 37 peticionários têm agora bom remédio: não irem por ali ou taparem os olhos se por lá passarem.

E que este episódio sirva de lição para situações semelhantes. Só faltava agora que começássemos a deitar abaixo estátuas pelo país fora.