Os humoristas apresentam-se como muito irreverentes, como desafiando o sistema, mas fazem parte integrante do sistema. Alguém já os ouviu parodiar os movimentos feministas ou as organizações LGBT? Pelo contrário: atacam é quem desafia o politicamente correto. Veja-se a violenta rábula de Ricardo Araújo Pereira sobre Marcelo Rebelo de Sousa.
A propósito da recente polémica que envolveu uma observação de Marcelo Rebelo de Sousa sobre o decote de uma jovem, numa viagem ao estrangeiro, uma leitora – Alda Vasco – enviou-me o seguinte comentário: «Vi logo que daria polémica, mas juro-lhe que pensei que se limitasse aos comentários das inefáveis redes sociais. Mas não! Esta manhã, ouvi na Rádio Renascença um ‘reputado’ comentador atacar Marcelo Rebelo de Sousa, apelidando-o de «machista» e «marialva». Foi ao ponto de recuar ao tempo em que ele era um jovem professor da Faculdade de Direito, faculdade essa que acusou também de ser um antro machista! Vai tudo a eito – pessoas e instituições! E ainda levantou outras lebres acerca de comentários que Marcelo fez no passado.
Curiosamente, o mesmo comentador (de nome Henrique Raposo) defendia não há muito tempo, com unhas e dentes, o direito dos humoristas a dizerem coisas ofensivas, porque – dizia – é humor, e se reprimirmos o humor atentamos contra a liberdade de expressão.
O que também diz muito sobre este tempo de loucos é o facto de uma rádio nacional gastar tempo de antena com uma insignificância destas… Não podemos gracejar nem ser espontâneos?. Perdeu-se a capacidade de achar graça e de nos rirmos, sem nos sentirmos ofendidos por tudo e por nada. Principalmente por nada…? A sociedade está eriçada e decretou morte à espontaneidade. E isto num momento em que os (ditos) humoristas se multiplicam como cogumelos… Marcelo já devia saber que não se pode abrir a boca neste país; não é a primeira vez que se vê metido em alhadas…».
Vivem-se, de facto, tempos muito perigosos. Em que temos de pensar, não duas mas mil vezes, antes de falar.
Há uma polícia de vigilância que vê tudo, que espiolha tudo à luz de um index, como a velha Inquisição, e aponta o dedo acusador à menor suspeita de transgressão.
Veja-se o caso Rubiales. Um beijo anódino, espontâneo, dado num momento de festa, num acesso de entusiasmo, transformou-se numa importantíssima questão mundial. Que até meteu a ONU!
Quando, há uns anos, soube que um partido queria criminalizar o piropo, e percebi que havia abertura por parte da maioria política, tomei consciência de que algo de muito profundo se estava a passar.
Que mal fazia o piropo? Não era um elogio? No liceu eu tinha um colega que, ao passar por uma rapariga bonita, dizia baixinho mas em voz audível: «Que me importa morrer, se no cemitério há flores?». Uma jovem que ouvisse isto ficaria zangada? Ou mal disposta? Sentir-se-ia ofendida? Ou, pelo contrário, sentir-se-ia apreciada e até feliz?
Claro que havia os piropos menos elegantes, os assobios à distância, até alguns ditos ordinários. Mas isso tinha alguma importância? As mulheres ficavam diminuídas por isso? Comiam-lhes algum bocado? As mais discretas torciam o nariz e passavam à frente, as mais ousadas às vezes respondiam, e a coisa ficava por ali. Não vinha nenhum mal ao mundo.
Estou perfeitamente à vontade neste assunto, pois nunca tive o hábito de dizer piropos às raparigas. Mas considero a proibição do piropo uma aberração.
Como diz Alda Vasco, a espontaneidade está a perder-se. As pessoas têm de ter cada vez mais cuidados para não serem apanhadas e julgadas – em público – pelo tribunal da nova Inquisição. Antes de abrirem a boca têm de pensar: será que posso dizer isto? Poderei fazer um elogio àquela pessoa ou será mal interpretado? A desconfiança instalou-se na sociedade.
E isso, sim, é que constitui uma grave limitação à liberdade. O meu pai gostava muito da palavra ‘genuíno’, e dizer de alguém que era «genuíno» constituía na sua boca um considerável elogio. Nos dias de hoje, uma pessoa genuína tem muitos problemas…
Mas, pegando noutra observação da leitora, pergunto: por que razão as pessoas ‘comuns’ não podem dizer nada e os humoristas podem dizer tudo?
E a resposta é simples: porque os humoristas respeitam, em geral, o politicamente correto. Estão integrados no sistema. Apresentam-se como muito irreverentes, como desafiando o sistema, mas fazem parte dele.
Alguém já os ouviu parodiar os movimentos feministas ou as organizações LGBT? Ninguém. Pelo contrário: atacam é quem desafia o politicamente correto. Veja-se a violenta rábula de Ricardo Araújo Pereira sobre o comentário brincalhão de Marcelo Rebelo de Sousa ao tal decote. O normal seria ele parodiar os tontos que se indignaram com a brincadeira presidencial. Mas não. Chegou a chamar a Marcelo «o mais alto magistarado da nação». ‘Magistarado’, imagine-se!
Mas este é apenas um exemplo da atuação dos esbirros do pensamento – que vigiam a linguagem e denunciam publicamente os ‘blasfemos’, para que sejam devidamente punidos.
Em Portugal, só aparentemente os humoristas são irreverentes. De facto, são reverentes, cautelosos e timoratos. Nunca se metem com um transexual, ou com uma lésbica, ou com um gay, mesmo quando exista abundante matéria para fazer humor.
Eles sabem com quem se podem meter.