O que é que ‘a banalidade do mal’ tem a ver com o modo como António Costa governa e lidera?

A questão que foi alvo de muito debate, parecia ser simples: qual a responsabilidade individual daqueles que eram ‘somente’ funcionários da burocracia estatal nazi?

Muitos portugueses não saberão que a frase ‘banalidade do mal’ se tornou célebre em todo o mundo entre 1961 e 1963, desde que foi criada por Hannah Arendt, a propósito do julgamento de Adolf Eichmann em Israel, acusado de ter organizado e dirigido durante a II Grande Guerra o extermínio sistemático de milhões de judeus inocentes, a mando do líder máximo nazi, Adolf Hitler.

Arendt, nascida na Alemanha, fugira a tempo do seu país de origem quando pressentiu o intolerável horror que seria viver num país sob o domínio dos nazis hitlerianos, e acabara por se refugiar nos EUA e naturalizar americana.

Sendo filósofa e teórica política, sabia muito bem que quando terminou a guerra em 1945, Hitler se suicidou e os restantes ministros e dirigentes nazis foram presos e julgados em Nuremberga por um tribunal internacional, mas Eichmann, pelo contrário, conseguira esconder-se e andou foragido durante cerca de 15 anos, tendo sido finalmente encontrado por agentes israelitas e detido, e como é óbvio, o sistema judicial de Israel decidiu julgá-lo sob a acusação de genocídio e crimes contra a humanidade, e ser membro duma organização criminosa.

Daí que jornalistas e repórteres de numerosos países tenham sido enviados para lá, a fim de darem a conhecer ao mundo o que se iria passar e ser dito, pela acusação e pela defesa, nesse importantíssimo e histórico julgamento – e Hannah Arendt foi uma dessas repórteres, como correspondente da famosa revista americana ‘The New Yorker’. 

Para além do seu trabalho incluir, obviamente, a cobertura do que acontecia nas sessões do julgamento e respectivo relato escrito enviado para publicação na revista, Arendt ia fazendo ao mesmo tempo um estudo do ‘indivíduo Adolf Eichmann’ e das suas características e variações fisionómicas e psíquicas, a fim de tentar compreender as verdadeiras razões que poderiam explicar o papel horrendo que ele, durante anos, havia desempenhado.

A defesa de Eichmann baseou-se sempre num argumento: ele jamais tomara a iniciativa de matar ou mandar matar um só judeu por decisão sua, pois nada tinha contra essas pessoas. Limitou-se a cumprir ordens superiores, e a executá-las o melhor que podia e sabia, se possível sem sofrimento dessas pessoas. Ele era um mero executante de ordens superiores, e não lhe cabia julgar se as ordens que lhe davam eram boas ou más no plano ético, ou seja, ele via-se simplesmente como um mero funcionário cumpridor e zeloso.

A questão que foi alvo de muito debate, parecia ser simples: qual a responsabilidade individual daqueles que eram ‘somente’ funcionários da burocracia estatal nazi?

O mal torna-se banal quando o membro de uma organização, seja ela política, empresarial, ou doutra natureza, separa os seus valores éticos individuais do comportamento, porventura duvidoso, assumido sistematicamente pela organização da qual faz parte.

O mal torna-se igualmente banal quando julgamos um indivíduo de forma diferente, consoante esteja em causa o seu comportamento a título individual, ou enquanto membro duma organização.

É sabido há muito que as pessoas se comportam de maneira diferente em duas situações distintas: caso estejam em grupo, ou quando ascendem ao poder. Qualquer uma destas situações foi estudada há muito tempo. Lord Acton ficou famoso por afirmar que “o poder corrompe, e o poder absoluto tende a corromper de forma absoluta”. Temos por isso a intuição de que o poder gera algo nas pessoas que as leva a alterarem o seu comportamento, nomeadamente a desviarem-se daquilo que são os valores e dimensões da ética considerados básicos. Tal facto foi corroborado pelo que ficou conhecido como a ‘Stanford Prison Experiment’, de 1971. Isto é: o que se verifica é que a esmagadora maioria daqueles que ocupam lugares de poder, tendem a ser mais coniventes e tolerantes para com fenómenos, práticas e situações que são, no mínimo, dúbias em termos morais. Mas esta tolerância ao que é e está mal, tornou-se, digamos, num fenómeno de grupo.

O referido julgamento, intensamente mediatizado, foi envolvido por polémicas e controvérsias (imagine-se o que aconteceria se, nessa época, houvesse já os meios técnicos de comunicação que hoje existem!).

Além de crimes contra o povo judeu, Adolf Eichmann foi acusado de crimes contra a humanidade e de pertencer a uma organização com fins criminosos. O réu declarou-se “inocente no sentido das acusações”. No entanto, e uma vez que as provas contra ele não davam nenhuma margem a dúvidas de interpretação sobre a sua culpa, foi condenado por todas as quinze acusações que pesavam contra ele, e enforcado em 1962, nas proximidades de Telavive.

Em 1963, com base nos seus relatos escritos para a revista The New Yorker sobre o julgamento, Arendt publicou um livro — Eichmann em Jerusalém, cujo subtítulo é “Um relato sobre a banalidade do mal”. Nele, ela descreve não só o desenrolar das sessões, mas faz também uma análise do “indivíduo Eichmann”. Segundo ela, Adolf Eichmann não possuía um historial ou traços antissemitas, e não apresentava traços de um carácter distorcido ou doentio. Ele terá agido segundo o que acreditava ser o seu dever, cumprindo ordens superiores, e movido pelo desejo de ascender na sua carreira profissional, na mais perfeita lógica burocrática. Cumpria ordens sem as questionar, com o maior zelo e eficiência, sem reflectir sobre o Bem ou o Mal que pudessem significar ou causar a outrem. 

Nesse livro, Arendt retoma a questão do mal radical kantiano, politizando-o. Analisa o mal quando este atinge grupos sociais, ou o próprio Estado. Segundo a filósofa, o mal não é uma categoria ontológica, não é natureza nem metafísica. É político e histórico: é produzido por pessoas, e manifesta-se apenas onde encontra espaço institucional para isso — em razão de uma escolha política.

António Costa está convencido que é a ‘varinha mágica’ deste pobre país, e os milagres vêm aí seguramente…

Este meu artigo de opinião começou a ser imaginado na noite em que o actual primeiro-ministro deu uma entrevista longa a dois jornalistas da CNN-Portugal e a uma plateia de pessoas, a maioria das quais não eram figuras públicas.

Fizeram-lhe perguntas sobre os mais graves problemas que os portugueses têm vindo a sofrer nos últimos anos e meses, e o PM respondeu ou fingiu que respondia, mas em todo o caso fartou-se de falar, a ponto de fazer lembrar António Guterres quando ele era também PM e falava, falava, falava tanto, que o saudoso Vasco Pulido Valente o baptizou com o certeiro cognome de “picareta falante”.

No caso de Guterres, todos nos lembramos como veio a ter fim a sua carreira de político português: desistiu e fugiu do cargo, pois, segundo ele, Portugal “tornara-se um pântano”…

Agora é Costa, que também fala ininterruptamente sobre os nossos males, e também nada faz que possa contribuir para a sua resolução (muito pelo contrário), mas em lugar de optar pela desistência, agarra-se compulsivamente ao poder pelo (im)puro gozo do poder, sem sequer se dar conta de que é, e sempre foi, incompetente para altos cargos executivos e de genuína visão e liderança, como este.

Acresce que, e de resto sem também parecer ter disso consciência, o actual PM desenvolveu no PS e no governo um ambiente político que, a meu ver, se caracteriza intensamente por criar — nos comportamentos, nas escolhas, nas legislações, na não resolução dos problemas, na obsessão pelo PRR (como se o mero atirar de dinheiro sobre os problemas fosse suficiente para os resolver), nas próprias palavras e promessas vãs da permanente propaganda enganosa que sugere sucessivos milagres, graças a uma varinha mágica que ele, Costa, é o único a saber manejar –, um contexto e uma imagem de funcionamento das instituições que, não obstante referirem-se a assuntos muito diferentes, também se ajustam como uma luva à noção de “banalidade do mal” usada por Arendt.

Poderia, facilmente, relembrar aqui os intermináveis “casos e casinhos” que António Costa e a sua gente têm gerado há anos, mas essa repetição já só causa náusea, cansaço e desespero a todos os residentes em Portugal que não são fanáticos ou reféns do PS. Limito-me portanto a constatar que, para desgraça de milhões de portugueses, há cerca de 8 anos que o nosso país é formalmente “governado e liderado” por indivíduos que estão dispostos a utilizar qualquer tipo de meio ou truque para manter e aumentar o poder de que hoje dispõem, mas estão-se nas tintas para tentar genuinamente melhorar, um pouco que seja, a vida dos jovens, dos pobres e dos remediados “anónimos”.

Ora, na minha acepção, fazer política deste modo tornou-se, em termos morais, um caso singularmente português e “progressista” de ‘banalidade do mal’ – que, de resto, não creio que possa ser solucionado juridicamente.