Cristianismo: humanismo e dignidade num mundo dilacerado

Cuidado, pois, com os ‘telhados de vidro’ que, lamentavelmente, também existem no Cristianismo, numa oposição radical ao que ele está chamado a ser.

Costumo andar nos transportes públicos. Fica-se a conhecer o Mundo; o ‘nosso’ extraordinário Mundo; um ‘Mundo’ pequeno geograficamente, mas imenso em pessoas ricas de vida; um ‘Mundo’ em plena transição epocal.

Numa das viagens da semana transata (escrevo este texto na segunda semana de outubro de 2023) estudantes Universitários conversavam entre si sobre os malefícios do Cristianismo para a sociedade. Não foi difícil diagnosticar de onde vinham as palavras que eram pronunciadas pelo mais loquaz e agregador de opiniões deles. Uma pessoa tristemente enganada por outras pessoas enganadas.

Não vale a pena, creio eu, estar a insistir na mesma tecla: ao longo de séculos, quase dois milénios mesmo, os contraexemplos de cristãos a serem tudo menos cristãos são abundantes. Nada justifica, de perto ou de longe, qualquer intuito em esconder essa realidade, do mesmo modo que não há qualquer motivo para se o fazer.

O não se ser fiel aos princípios professados é uma realidade em qualquer grupo social e, dentro destes, os religiosos. Somos feitos da mesma ‘massa’, amassada e reamassada por muitas realidades endógenas e exógenas. Ao mesmo tempo, continuamos marcados pela nefasta infecção originante no ‘trigo original’ que ainda nos faz ser brutos, mentirosos, invejosos, arrogantes, etc. Numa palavra: egoístas.

Cuidado, pois, com os ‘telhados de vidro’ que, lamentavelmente, também existem no Cristianismo, numa oposição radical ao que ele está chamado a ser. Mas, felizmente, dele foram e vão eclodindo, em muitos ‘aquis e alis’ que envergonham a minha mediocridade, rebentos de autenticidade reverdecente. E esta felicidade, mesmo que à custa de muito sofrimento face às pressões centrípetas deste trágico ‘mundo novo’, eivado do neomarxismo cultural mais ou menos escondido atrás de diversas máscaras

Os ‘telhados de vidro’ do Cristianismo impedem que se reconheça que o mesmo é a religião do humanismo e da dignidade humana. Se Jesus é o âmago do Cristianismo, toda a Sua mensagem aponta, em derradeira análise, para o ser humano: preocupar-se com este, cuidar dele, servi-lo, promovê-lo, amá-lo (realizando o bem verdadeiro que o seu ‘eu’ genuíno necessita e quer), etc. O próprio abraço escatológico aponta para o que se tiver feito, ou não, ao ser humano, e ao ser humano mais necessitado.

Mas quem é o ser humano? Esse ’Ā·ḏām que a Bíblia diz ser ‘zā·ḵār’ e ‘nə·qê·ḇāh’ em igual valor, honra e poder? É esse ser que pressente que há em si algo mais do que ele mesmo; que o infinito no amor forma as suas fibras essenciais e que, assim, é quando ele esquece o seu ‘ego’ que se poderá encontrar, mormente em momentos humanizantes de emaravilhamento, afoiteza, alegria, prazer, etc.

É esse ser que, no “De Benevolentia” (outrora atribuído a Tomás de Aquino), é dito como sendo como que o deus do Deus-Amor que só o Cristianismo conhece. Mais: aquele Deus-Amor que tão mais se deveria viver e dar a conhecer, na linha da Encíclica “Deus Caritas est” de Bento XVI a citar uma passagem Bíblica que equaciona a natureza de Deus com o Amor («Deus é Amor»), embora sem admitir um vice-versa.

Humanismos há muitos, mas o cristão é singular, especial, peculiar. E é-o, não por qualquer mérito do ser humano ou dos cristãos, mas por o Deus que é professado por estes ser, justamente, Amor e nada mais do que Amor. Esse humanismo que decorre de, na Cruz de morte e ressurreição, Deus ter dito “amo-te mais do que a Mim”, ou, como afirmou Pascal pondo as suas palavras em Jesus, «Eu pensava a ti na minha agonia de amor; Eu verti todas as gotas de sangue por ti». Com os anteriores pronomes pessoais ‘-te” e ‘ti’ a referirem-se a qualquer um de nós. Qualquer.

Se assim é, conforme o Papa Francisco tem dito e mostrado de uma miríade de formas episodicamente tão criticadas – como ‘recentemente’ em França, por quem lhe disse que a Europa não pode carregar, sobre os seus ombros e dentro dos seus bolsos, com toda a miséria do Mundo, tendo o ‘direito” humano’ (Emmanuel Macron dixit) a regular os fluxos migratórios –, a Cruz é a grande fiança da liberdade e da dignidade humana. Se Deus foi até ela, é porque a nossa vida tem um valor infinito, supremo. Um valor irrefragável pela doença, a idade, a crença, o sexo, etc.

Não há outra exegese, outra hermenêutica, outra interpretação daquela Cruz, símbolo da máxima generosidade gratuita, que não seja o ‘lava-pés’ levado a cabo por Jesus. Esse evento em que Ele – realizando ‘à plena luz dia’ o que o nosso egoísmo impede de reconhecer que é o que na ‘intimidade da eternidade’ o Mesmo nos realiza sempre –  se ajoelhou diante dos seres humanos, mostrando que o coração de cada um de nós é o Seu ‘Paraíso’, o Seu ‘Jardim das Delícias’.

Eis um Deus que não é violento; que, nas palavras míticas do grande Rouxinol Faduncho, não «explode com o barracão» do nosso coração; que não coage; que não Se impõe; que não nos humilha exigindo submissão. Ele, pelo contrário, implora de modo desarmado, «regressa a Mim», como se pode ler no “Livro do Profeta Miqueias”, mostrando ser mais humilde do que qualquer pessoa que viva uma tal humildade, a qual que é o lado tão mais caloroso quanto mais recatado do amor.

Nós, assim, somos admiravelmente a esperança desse Deus que, por amor, quer depender de nós, recusando, na linha da Pessoa de Jesus e do dito no III Constantinopolitano, qualquer monoenergismo ou monotelismo dos defensores do irrefletido “TULIP”. Sim. Nós. Todos nós que, apesar do que se diz e se endoutrina cada vez mais, não somos um mero ‘animal’ derivado de uma ‘bolha de lama’ que rebentou, antes uma sede sensatamente saciável da Presença Infinito que borbulha em todo o nosso ser. Uma Presença sem a qual

Se dissermos “não” a Deus, nuns quaisquer mal resolvidos complexos de Édipo ou de Electra (pois o Deus-Amor, apesar de Se apresentar geralmente como Pai, no “Livro do Profeta Oseias”, diz que, sendo Deus, não age como um varão – dando a subentender que o faz como uma mulher –), Deus reduz-se à impossibilidade de intervir. Com efeito, sendo Amor, não pode deixar de amar nem de interferir no que nos permite amar: o nosso livre-arbítrio.

Eis, de novo, a Cruz, onde o Deus ‘des armées’ se revelou como sendo o Deus ‘désarmé’, caindo do Seu rosto, finalmente, todo o estuque que fora colocado n’Ele durante milhares de anos. O Deus dos cristãos é o Deus cuja única força é a do amor que não é a força de poder tudo, mas a de poder com tudo, como, aliás, a comovente palavra grega ‘Pantokrátor’ patenteia. O único Deus que não só promove a, como é a fonte da (nossa) liberdade, do genuíno humanismo e da plena dignidade humana no ‘érōs manikós’ exaltado.

Toda a vida de Jesus foi vivida ao redor do eixo da restauração de uma dignidade sem a qual o ser humano não poderia co(m)-realizar-se com Deus, os demais e o restante da Criação: desde o busão de Higgs (ou algo ainda mais elementar, como o amor), até à fronteira ilimitada do Universo. A dignidade humana é respeito de Deus no homem e, assim e parafraseando-se um epitáfio composto para Inácio de Loyola, é também divina, pois «não sendo confinada pelo maior, é abarcada pelo menor».

Divina, sim; mas sem deixar de ser humana. Deus e o ser humano não são rivais, como cria infantilmente Sartre (perdoem-me a adjetivação desnecessária face a quem foi este rebelde subjugado pela sua mãe substituta, Simone de Beauvoir), a ponto de termos que fazer tudo contra ele e, no fim da vida e como cantou Frank Sinatra (entre outros), dizer, sem glória nem humanidade, «I did it my way».

Se procurarmos verdadeiramente esta dignidade unida pela liberdade ao humanismo cristão de que tenho falado, então não há como não nos querermos empenhar em nos transformarmos continuamente, e na senda do amor melhor, até que um novo modo de viver possa surgir. Essa dignidade pode ser procurada tanto em nós (algo instintivo e que brota do próprio élan da nossa vibrante existência que nos atrai, teilhardianamente, para ‘a frente’ e para ‘cima’), como nos demais; se pressentimos que cada vez que a ‘calcamos’ estamos a ferir ao Deus que padece incessantemente connosco. 

Uma nova existência em que o sotaque do carinho é tão importante como a palavra do léxico e que faz-nos reconhecer que jamais poderemos ser humilhados, degradados ou rebaixados pelo, e dado, o sobredito ‘lava-pés’, no qual Deus, qual mendigo de amor, nos realiza incessantemente num mútuo despojamento. Despojamentos estes que que são função do que desse ‘lava-pés’ aceitamos numa nossa intimidade que reconhece que Jesus e a Sua mensagem não nos são exteriormente impostos, mas, se o desejarmos, acolhidos desde o nosso mais íntimo. Um desejar que, se for levado a sério, nos leva a uma simplicidade de olhar onde vemos todas as coisas, não para as possuir, mas para as oferecermos.

Felizmente que no Cristianismo, e acerca do apontado nos parágrafos anteriores, o ideal e o real vão coincidindo. Essa coincidência não ocorre noutras religiões, mas deveria ocorrer, e nós precisaríamos de protestar, sem nos cansarmos e de diversos meios (inclusive a nível da célebre ‘portiana’ ‘diplomacia económica’), até que isso fosse uma realidade.

Mas isso, como nos dizem pelas suas ações os nossos políticos, do Norte ao Sul e do Este ao Oeste, não os preocupa minimamente. Eis algo que, como disse Ivan Tourgueniev, só acabará na desvalorização de todos os valores e na desumanização de todo o ser humano, impedindo, drasticamente, o reconhecimento da nossa dignidade e das suas exigências.

Face a isto, deixo no ar apenas uma pergunta: o que importa se nos for dada, inclusive numa travessa dourada, o prestígio, o poder, a riqueza, etc., se, em contrapartida, nos for negada, a nós e aos demais, a dignidade? Essa dignidade inflamada e indelével que, deixando agora Albert Camus ser o porta-voz das aspirações dos nossos corações, não pode ser esmagada (sob pena de tudo ser um absurdo, do qual o suicídio talvez fosse a única saída honesta) por um Universo materialista, uma sociedade primo-darwinista e religiões ferinas indiferentes a essa mesma dignidade.

Teólogo católico, docente da FT da UCP, investigador do CEHR-UCP