Mário Henrique Leiria sempre foi um autor de personagens deliciosas e não precisava, para que o fossem, de as encher de personalidades dostóievskianas. Às vezes bastava que passassem lá pelo fundo do palco da trama (como uma nêspera em cima da cama) e dissessem uma palavra ou não dissessem nada e estivessem só lá chamando envergonhadamente a atenção de toda a gente para a sua inevitável insignificância. Uma delas era o Avô Gasosa. Servia para pôr ponto final a textos tal como: «Vejam lá, não se ponham aí a armar em Avô Gasosa se não levam um pontapé no cu que vão até ao céu!». E o aviso ficava feito. Era como se alertasse: «Ponham-se a pau!». Ora, e que pode a selecção nacional de Roberto Martinez fazer nestes quatro jogos que lhe faltam até ao fim da classificação se não pôr-se a pau, evitar escorregadelas maliciosas e apurar-se com um total de vitórias em todos os jogos feitos, algo que pode ser inédito mas que, convenhamos, não é mais do que a sua obrigação. Francamente! Nunca nenhuma equipa de Portugal apanhou um grupo tão, tão débil como este. De tal forma débil que não é apenas a classificação directa que se exige – e os dois primeiros do grupo têm direito a ela – mas sobretudo uma clareza de resultados impoluta.
Hoje mesmo, recebendo a Eslováquia (19h45) no velho e relho bairro das Antas (poupem-me a essa parolice do dragão!, há algum Bairro do Dragão?), cabe-lhe receber aquela que seria, no papel, a equipa que poderia trazer-lhe alguns problemas, se a competência viesse a sofrer uma escorregadela – a Eslováquia. Com 18 pontos em seis jogos, 24 golos marcados e zero sofridos, vai agora a rapaziada de Martinez armar em Avô Gasosa quando tem tudo para garantir desde já a presença na cinzenta Alemanha no Verão que vem? Sinceramente não acredito como, provavelmente, não acreditarão nenhuns daqueles que têm a pachorra de ler estas linhas. Verdade se diga que os eslovacos só têm uma derrota no bornal, sofrida precisamente quando receberam os portugueses no Tehelné Pole, isto é, o Estádio Nacional de Bratislava. 0-1, golo de Bruno Fernandes, uma exibição lusitana muito para o fraquinho, há que reconhecê-lo, sobretudo no segundo tempo durante o qual, como diz o povo de Verim a São Brás de Alportel, o nosso capitão Ronaldo não lhe deu nem de bico falhando golos de bradar aos céus.
Apagado da memória
Ora, entretanto, Portugal recebeu o Luxemburgo (sem Ronaldo, por acaso), registou a maior goleada de toda a sua história – 9-0!!! – atuou com a suavidade e um aplomb digno de um antigo campeão da Europa, mostrou muitas coisas bonitas, como dizia o meu querido amigo Artur Jorge, e varreu na memória, conveniente e conscientemente, o que se passara em Bratislava. Os adeptos voltaram a ser felizes, voltaram a acreditar que têm uma equipa capaz de chegar longe, de lutar pela Taça Henry Delaunay entretanto perdida, e que agora é que é, vamos partir para um ror de exibições de encher o olho, requintadas e enfeitadas com toques de ourivesaria própria de gente que parece ter os pés afinados como cinzéis. Será? Não sou de apostas. Opino apenas dentro dos limites da minha função de analista. E confesso que, ao contrário daquela que será provavelmente a maioria da opinião pública e publicada, não me parece que tenhamos uma seleção tão boa e tão forte como a pintam. Para já (João Neves foi chamado na flor dos seus 19 anos) há muito que deixou de formar um conjunto de jovenzinhos. João Félix, tido como a promessa das promessas, acaba de fazer 23 anos e continua a prometer sem cumprir. Bernardo Silva e Bruno Fernandes, que assumem a autenticidade daquilo a que se chama o talento competitivo, não parece mas já chegaram aos 29 anos e no próximo Europeu já andarão nos trinta e nos trinta e dois no Mundial que se segue. Quem surge agora na retaguarda desta que foi uma espécie de Ala dos Namorados – junte-se-lhes Gonçalo Guedes (26), Diojo Jota (26) e, agora, Gonçalo Ramos (22), após todas as tentativas falhadas de jovens pontas-de-lança com bons perfis mas sem golos? Claro que se não seguirmos os maus exemplos do Avô Gasosa do grande Mário Henrique Leiria, chega e sobra para fazer 30 pontos em dez jogos. A partir daí veremos… Roberto Martinez tem a vantagem de, com esta qualificação de perna às costas, já ter tempo de sobra para começar a planificar antecipadamente o Campeonato da Europa. Mas tem de ir mais longe do que isso. Tem de reinventar uma equipa esperançosa, de futebol agradável, que obtenha resultados e fuja da apagada e vil tristeza que sofremos nas mais recentes fazes finais. Agora é com ele! l
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