Louise Glück. Uma harpa com cordas arrancadas ao desastre

A poeta norte-americana, galardoada com o Nobel em 2020, morreu de cancro aos 80 anos, deixando uma obra que podia ser desapiedada e cruel, mas capaz também de transformar o pensamento em prece, e de louvar a existência sem a reduzir às mais banais aspirações de conforto e optimismo

É um tema banal entre os artistas, o da imortalidade. Mas este anseio, como tantos outros, nasce de um equívoco essencial, essa ideia de algo que persiste depois de terem cessado as funções vitais. Louise Glück tinha uma percepção mais apurada, mais dolorosa também, da existência. A sua poesia vivia sob o apelo da ideia de que é possível originar uma nova espécie de juízo sobre as coisas. “E parece que contam que tenhamos de nos desculpar/ por sermos artistas,/ como se não fosse inteiramente humano reparar em alguns aspectos decisivos.” Especialista nas gradações do silêncio, esta poeta norte-americana sabia como mesmo a verdadeira música só se alcança através de uma espécie de luto. O sofrimento transforma a alma, dota-a de uma capacidade de gerir a beleza, e, no entanto, esta não chega, pois não é consolo suficiente. E para ela, a própria natureza do poeta se liga a essa incapacidade de se satisfazer com as suas realizações. No intuito dos verdadeiros amantes, está um desejo de sobreviver, e não apenas o de durar na memória dos outros. A posteridade é uma compensação que apenas agrada a espíritos mesquinhos, que estão disponíveis para abdicar do essencial. Mais do que uma poeta notável, Louise Glück obriga-nos a encarar a diferença na relação que extraía das coisas. A sua obra estabeleceu as condições de um pacto, um entendimento difícil diante de um mundo prestes a ficar extinto. Tantas vezes, aproximamo-nos dos seus versos como de uma imagem reflectida num espelho, uma distância subtil e que produz uma inversão das coisas. Aos poucos, sobrepõe-se a respiração, mas não é certo de quem seja. “É um grande erro desejar/ a claridade acima de todas as coisas”, diz-nos ela. O seu amigo e colega Dan Chiasson, vincou que os seus poemas são um anátema para o conforto fácil, parecendo banir ou proibir-se a costumeira lógica emocional. “E, no entanto, as pessoas lêem-nos para descobrirem os contornos das suas próprias vidas interiores.” A poeta parece ter-se recolhido ainda mais depois de ter sido galardoada com o Nobel em 2020, uma distinção que não celebrava uma obra poética norte-americana desde que o prémio foi atribuído a T.S Eliot, em 1948. Na altura, reagindo à notícia, Glück assumiu que este lhe pudesse trazer problemas, uma vez que a maioria dos seus amigos eram escritores. Por outro lado, também admitiu que tinha já o que fazer com o dinheiro: iria comprar finalmente uma casa em Vermont, onde podia resguardar-se e receber um a um os amigos, esses mesmos que há alguns dias receberam a notícia de que lhe fora diagnosticado um cancro e que não lhe restava muito tempo. Mais uma vez, como se sentisse vergonha, a poeta não quis ser dominada por esse tema. Havia já feito as pazes com a ideia muito antes de se tornar uma condição irrefutável. “Consigo ver o fim; é o nome o que se perde./ Quando já não temos o que lhe fazer, acabou, torna-se uma língua morta. É assim que a linguagem morre, porque já não se encontra razão para pronunciá-la.” Quando parecia que os dias nos sobravam, alguns pensavam obsessivamente sobre a morte, com exclusão de outros temas candentes, e Glück diz-nos que é uma forma de tornar as coisas mais fáceis, de abdicar da vida, quando chegar a altura, uma vez que esta já não contém outra coisa. Mas outros vão mais longe, como ela, seguindo a imaginação para lá dessa linha insuportável, onde a terra deixa de actuar como uma droga, uma voz chamando, despertando-nos. Louise Glück dedicava-se a este tipo de exercícios em nome daqueles que raramente ou nunca o fazem: contemplar as migrações nocturnas. “Este é o momento em que vês de novo/as bagas vermelhas da sorveira/ e no céu escuro/ as migrações nocturnas dos pássaros.// Entristece-me pensar/ que os mortos já não as vêem –/ desaparecem todas,/ essas coisas de que dependemos.// Que fará então a alma para se consolar?/ Digo-me que talvez não precise/ desses prazeres;/ talvez lhe baste não existir,/ por mais difícil que seja imaginá-lo.”

A ilusão mais comum é pensar que depois da morte a noite não acaba, que persiste nas suas divisões infindáveis. “Se é tão difícil começar, imaginem como será acabar –/ Na minha cama, lençóis estampados com veleiros coloridos/ comunicando, simultaneamente, visões de aventura (na forma de exploração)/ e sensações de suave balanço, como de um berço.// Primavera, e as cortinas esvoaçam./ Entram brisas no quarto, trazem os primeiros insectos./ Um som de zumbido como o som de preces.”

A poesia de Louise Glück estava carregada desses elementos drásticos através dos quais a consciência se dá conta do fim. Tornou-se habitual reconhecer na sua obra uma tendência para abordar a sua vida íntima estabelecendo paralelos com a mitologia clássica, como se esta lhe servisse como um filtro, tal como os elementos do mundo natural, que tantas vezes comparecem nos seus poemas. Contudo, nada do que entra nessa forma de exploração deixa de estar submetido a um efeito de violência ou desolação, e a sua canção escura não tem nada de natural. “Sempre me moveu a fraqueza, o desastre, sempre ansiosa por me opor à vitalidade”, diz-nos um dos seus versos. E noutro lugar confirma: “quando uma coisa viva é magoada dessa forma/ nas suas mais íntimas funções,/ todo o seu mecanismo fica alterado”. Como salienta Chiasson, Glück é uma poeta que eleva o relato na primeira pessoa a um nível forense: “a sua autobiografia é dissecada mais do que expressa, quase como se os factos da sua vida pertencessem a outra pessoa”. Assim, a sua escrita impõe-se como uma refracção da imagem que temos do mundo, que ali escurece de forma a abafar o excesso de uma vitalidade distractiva, e, por essa razão, emerge nos seus poemas uma experiência impiedosa e soberana que vai corroendo todas essas tentativas de reduzir o desconhecido às nossas aspirações, a um certo êxtase vulgar. “Vivemos numa cultura quase fascista na forma como impõe o optimismo”, registava ela num dos seus ensaios, onde a sagacidade dos juízos que se detectavam na poesia se tornou ainda mais óbvia, e a mesma relação desapiedada com a cultura, sendo capaz de transmitir noções íntimas que se ligavam ao ambiente social mais vasto, passar do particular ao universal e assinalar como, hoje, se vive entre dois extremos no que toca à relação que temos com as nossas provações, impondo-se, de um lado, “o culto da perfeita saúde (tanto física, quanto psicológica) e, por outro lado, o que poderia chamar-se uma pornografia das cicatrizes, o fluxo aparentemente interminável de memórias, poemas e romances enraizados na assunção de que a exibição do sofrimento tem de criar uma arte autêntica e potente”.

“Toda a Poesia essencial é acompanhada de uma certa crueldade”, lembrava Ernesto Sampaio, e isto “no sentido, orgânico, de criação e de vida”. A razão, adianta, é que, depois de “tantos séculos de misticismo, os interditos fizeram-se carne, com todo o servilismo que daí adveio para o pensamento que, na lúcida situação especial em que se encontra tem de ser rigorosamente obsceno se quer transcender o arbitrário da tradição mística”. Para este poeta do ensaio, “o pensamento criador é um estado de suspensão sobre a vida”. Isto define na perfeição a obra poética de Glück, que cedo nos convoca para um balanço em que parte de meditações sobre a sua vida pessoal ou acontecimentos que marcaram a sua vida familiar, sinalizando um efeito de circularidade em que o registo confessional cede, para dar lugar a reflexões que nos dizem respeito a todos.  “Na minha própria mente, sou invisível: é o que me torna perigosa./ As pessoas como eu, que vivem para si mesmas,/ nós somos os aleijados, os mentirosos;/ somos aqueles que devem ser descontados/ no interesse da verdade.// É quando estou calada que a verdade emerge.”

Louise Elizabeth Glück nasceu a 22 de abril de 1943, na cidade de Nova Iorque, e cresceu em Cedarhurst, na costa sul de Long Island. O pai, Daniel, era um homem de negócios que, entre outras coisas, ajudou a inventar o x-acto. Em tempos também cometera uns versos, mas vira-se obrigado a enterrar as suas aspirações literárias. Já a mãe, Beatrice (Grosby) Glück, era doméstica. Antes de Louise nascer, o casal perdera uma outra filha, e em muitos versos esta irmã paira como um fantasma. “A sua morte deixou-me nascer”, escreveria num ensaio, deixando claro que se não chegou a sentir a sua perda, a sua ausência fez-se sentir ao longo de toda a sua infância. “Alguma coisa acabou por mudar: quando a minha irmã morreu,/ o coração da minha mãe tornou-se/ bastante frio, bastante rígido,/ como um ínfimo pendente de ferro.// Depois parecia-me que o corpo da minha irmã/ era um íman. Conseguia sentir como puxava/ o coração da minha mãe para a terra,/ para que ali crescesse.” Há uma severidade característica na escrita de Glück, que se, num primeiro momento, reduzir a vida a uma relação de causa e efeito brutais, permite assim impor uma frieza que faz com que as cedências afectivas se tornem realmente tocantes.

Desde muito cedo, Glück virou-se para os livros, e não demorou muito a interessar-se por poesia, mas aquilo que teve um peso absurdo na sua formação foi a anorexia nervosa que desenvolveu e que a levou ao ponto de quase morrer à fome. A partir dos 16 anos a sua escolaridade tornou-se bastante irregular, e passou sete anos em sessões de psicanálise de forma a livrar-se da doença. Demasiado frágil para frequentar a faculdade, Glück assistiu a aulas no Sarah Lawrence College e na Universidade de Columbia, e dois poetas que ali davam aulas vieram a tornar-se mentores fundamentais, Léonie Adams e Stanley Kunitz. No entender de Chiasson, “a anorexia parece ter sido uma forma inicial e desajeitada de escrever poesia, centrada exclusivamente, e por isso tragicamente, na forma”. Os avanços que foi fazendo na psicanálise terão permitido substituir a anorexia através desse exame implacável das suas circunstâncias pessoais, ensinando-a a lidar com a sua necessidade de controlar o efeito que o mundo tinha sobre ela. Isto fica claro no poema “Dedicação à Fome”, do livro “Descending Figure”, de 1980: “Começa calmamente/ em certas crianças do sexo feminino:/ o medo da morte, tomando a forma/ de uma dedicação à fome,/ porque o corpo da mulher/ é um túmulo; aceita/ qualquer coisa. Lembro-me de/ deitada na cama à noite/ tocando os seios macios, cada um para seu lado,/ tocando, aos quinze anos,/ a carne que se intrometia/ e que eu sacrificaria/ até que os membros ficassem livres/ da floração e do subterfúgio: sentir/ o que sinto agora, alinhando estas palavras –/ é a mesma necessidade de aperfeiçoar,/ da qual a morte é o mero subproduto.

A crueldade extraordinária que permite a Glück encarar o corpo da mulher como um túmulo, sacrificando-se a cada nova etapa e aceitando o que se segue, por mais que a imposição se mostre insuportável, faz com que estabeleça esse corte em que entre o fim da infância e o início da idade adulta, aquilo a que chamamos florescer, não passe afinal de um “subterfúgio”: a beleza torna-se um elemento deceptivo, uma forma de mascarar o luto. Assim, a poesia surge como uma forma de suprir esse vazio. “A linguagem enchia-me a cabeça, euforia selvagem/ alternando com profundo desespero”, escreve a poeta. E numa palestra que deu em 1989 no Museu Guggenheim, ela reconheceu a influência que a psicanálise teve na sua escrita. “Ensinou-me a pensar, ensinou-me a usar a minha tendência para construir objecções sobre as minhas próprias ideias, ensinou-me a fazer uso das dúvidas que me corroíam, a examinar o meu próprio discurso e ter em conta as evasivas e excisões. Quanto adiava chegar a uma conclusão, mais coisas vinham à superfície. Julgo que estava assim a aprender também a escrever.” Em breve, estava a publicar poemas em revistas de grande circulação, entre elas a The New Yorker, a The Atlantic e a The Nation. Ainda andava pelos 20 e poucos anos, trabalhava como secretária durante o dia e escrevia poesia no tempo que lhe sobvrava. O primeiro dos 14 livros de poesia que veio a publicar, “Firstborn”, saiu em 1968 e deixou-a esgotada, precedendo anos de bloqueio criativo. Em 1975, publicou o segundo, “The House on Marshland”, que alcançou um sucesso literário estrondoso e fez de Glück uma referência entre as novas vozes da poesia norte-americana.

Mesmo sem ter concluído os estudos, e ainda que numa das suas primeiras entrevistas tenha afirmado que não se via a assumir uma dessas posições nas universidades como poeta que ensina o ofício, acabou por aceitar um convite da Universidade de Goddard, em Vermont, e não demorou muito a dar-se conta de que o contacto com os alunos e a possibilidade de desenvolver na sala de aula uma forma de leitura acompanhada acabou por ser uma fonte de inspiração na sua obra. Passou o resto dos seus dias a fazê-lo, e viria depois a dar aulas no Williams College, em Yale e, por fim, Stanford. Casou duas vezes, do segundo casamento teve um filho, Noah. Os divórcios deixaram cicatrizes que alastram pela obra, mas Glück conseguira transcender o registo confessional dos primeiros, em que não andava longe do registo directo e desabusado de Anne Sexton. “Mas a nudez nas mulheres é sempre uma pose”, diz num dos seus poemas, sinalizando como o que parece ser uma exposição da sua intimidade, é na verdade um reflexo que foi dirigido pela imaginação, um olhar que se libertou da superfície para revolver o que sempre lhe escapa. “Ouves esta voz? É a voz da minha mente;/ já não podes tocar no meu corpo./ Mudou uma vez, endureceu,/ não lhe peças que responda de novo (…) a violência mudou-me./ O meu corpo arrefeceu como os campos despidos;/ agora só existe a minha mente, desconfiada e atenta,/ com a impressão de ser testada.” O que resta é uma obra de ficção desavergonhada, que se alimentou de uma vida, e sobretudo dessa capacidade de exercer a dúvida, de suspender o pensamento, de balançar entre as estações, os ritmos naturais, mas para alcançar “um estilo ascético, bem adaptado tanto à evisceração como ao encantamento” (Katy Waldman). Um espelho capaz de fazer perdurar a luz como um eco que não se limitasse a definhar mas que fosse capaz de interpelar quem o ouve, de mudar o seu sentido para acomodar as suas experiências e percepções. “Os poetas a que regressei à medida que fui crescendo foram os poetas em cujo trabalho desempenhei, como ouvinte eleita, um papel crucial”, disse no seu discurso de aceitação do Prémio Nobel. “Íntimos, sedutores, muitas vezes furtivos ou clandestinos. Não são poetas de estádio. Não são poetas que se limitam a falar para si próprios”. Essa dilatação do sentido de um texto, produz uma ficção aberta, um verdadeiro regime de suspensão sobre a vida. Algo como nos é descrito num texto em prosa do livro “Noite Virtuosa e Fiel”: “Quando voltei a última página, depois de muitas noites, uma onda de desgosto tomou conta de mim. Para onde teriam ido aquelas pessoas todas, essas que me haviam parecido tão reais? Para me distrair, saí para passear pela noite; instintivamente, acendi um cigarro. No escuro, o cigarro incandescia, como um fogo ateado por um sobrevivente. Mas quem veria esta luz, este pequeno ponto brilhante entre as estrelas? Fiquei por um bocado no escuro, com o cigarro a incandescer e a ficar mais pequeno, a cada inalação destruindo-me pacientemente. E que pequeno era, que breve. Breve, tão breve, mas agora estava dentro de mim, algo que seria impossível às estrelas.”