Em nenhum outro período da história se criou dinheiro e dívida tão rapidamente como nos últimos 50 anos, explica este perito financeiro e autor do mais popular podcast de investimentos do Reino Unido. Como vai acabar esta espiral? A única certeza, diz-nos Rob Dix, é que os políticos se recusam a encarar o problema de frente e preferem continuar a empurrar com a barriga. O último que apague a luz.
Como é criado o dinheiro? Quem lucra com a inflação? Qual a melhor forma de protegermos as nossas poupanças? Rob Dix, colunista do The Sunday Times e autor do podcast na área de investimento mais popular do Reino Unido, responde a estas e outras perguntas no seu livro O Preço do Dinheiro (ed. Ideias de Ler). Em conversa por Zoom com a LUZ, o autor explica como funcionam as engrenagens do sistema financeiro e quem puxa os cordelinhos.
No seu livro explica que o dinheiro é criado quando alguém se dirige a um banco comercial, pede um crédito e esse crédito é concedido. Se eu percebi bem, não existe uma relação direta entre a criação de riqueza e a criação do dinheiro.
Em teoria, se um negócio está a crescer e vai ao encontro de uma necessidade do público, os donos vão ao banco pedir um empréstimo para poderem investir e expandir. Nesse caso, a dinâmica da economia tem uma relação direta com o aumento do dinheiro existente. E num mundo ideal teríamos a quantidade certa de dinheiro disponível para responder às necessidades da economia. Só que na prática não funciona bem assim, porque os bancos centrais também criam dinheiro para se livrarem de problemas. Além disso, no Reino Unido o tipo de empréstimo mais comum é a hipoteca da casa, que não produz nada para a economia.
Em Portugal os empréstimos para comprar casa também são muito comuns.
Se os preços das casas subirem e toda a gente pedir dinheiro emprestado, o dinheiro em circulação aumenta, o que é ótimo para os bancos, porque lucram mais, mas na verdade não contribui para a economia.
Quando se diz que alguém tem dez milhões de euros no banco, ou que uma empresa comprou outra por 300 milhões de dólares, esse dinheiro existe mesmo ou são apenas números no ecrã de um computador?
O dinheiro existe. Se essa pessoa quiser ir ao banco e pôr as mãos nesses dez milhões, não há problema nenhum. Mas se toda a gente fosse ao banco no mesmo dia levantar as suas poupanças, iríamos descobrir que esse dinheiro não é tão real como poderíamos pensar. O sistema só funciona se as pessoas não tirarem o dinheiro do banco todas ao mesmo tempo. Agora imaginemos que alguém vai pedir dinheiro emprestado e dá como garantia a casa ou a sua carteira de investimentos da bolsa. Poderia pegar nesse dinheiro e depositá-lo na conta. Mas, se a bolsa ou o preço das casas caírem de repente, tudo passa a valer menos. Mesmo que a casa seja a mesma e as ações também. É uma situação estranha.
Há alguma coisa que nos garanta que não há um empregado do banco ou um hacker que entra na sua própria conta e acrescenta lá uns zeros? Isso seria possível?
Os bancos têm de ser cuidadosos, porque se fizerem muitos empréstimos e esses empréstimos não forem saldados, vão ter problemas a sério. Não é um salve-se quem puder, se bem que quando começamos a aprofundar este tema, percebemos que se passam muitas coisas que não se deviam passar. Há controlos para impedir um funcionário desonesto de criar uma montanha de dinheiro, mas o que é engraçado é que um banco central já o pode fazer. Desde que as pessoas não façam muitas perguntas e não percam a confiança na moeda, os bancos centrais podem fazer tudo o que lhes apetecer.
O subtítulo do seu livro diz: ‘Como prosperar num mundo financeiro que é manipulado contra si’. Há uma espécie de conspiração para ficarem com o nosso dinheiro?
Não quero dar a ideia de que existe uma conspiração global, mas o facto é que as instituições financeiras fazem dinheiro com a atividade financeira, ou seja, quanto mais empréstimos houver, quanto mais complexas forem as coisas, maior a sua margem de lucro. Temos de ter presente que a principal preocupação dos governos e dos bancos centrais é sobreviver. Tivemos uma série de acontecimentos, como a crise financeira de 2008 ou a pandemia em 2020, em que tentaram uma série de manobras para manter as coisas a andar. Se há coisa que os políticos não querem é que o sistema colapse enquanto estão eles ao comando. Se as coisas forem ao fundo, eles farão tudo o que puderem para que isso seja um problema de quem vier a seguir. Portanto, querem que continue tudo como antes, mesmo que isso nos prejudique. Não estou a dizer que os políticos nos queiram enganar, mas quando olhamos para as medidas tomadas em 2008 e 2020 percebemos que quem acaba por perder são sempre as pessoas comuns. Vejamos a inflação. Como explico no livro, se estiver alta, ninguém [governantes] se preocupa por aí além: desde que as pessoas não comecem a ficar demasiado zangadas, a inflação beneficia os governos, porque reduz o valor da dívida em termos reais. É um exemplo de como os bancos centrais, os governos e todas as entidades agem em seu próprio interesse. Mas nós é que arcamos com as consequências.
As altas taxas de inflação a que estamos a assistir não podem estar relacionadas com a bazuca? A UE injetou cerca de 700 mil milhões de euros na economia.
Aconteceu o mesmo no Reino Unido e nos EUA. Os bancos centrais imprimiram dinheiro a rodos. Todas as teorias clássicas de economia dizem que se criarmos uma montanha de dinheiro e o despejarmos na economia, e não houver mais bens e serviços onde gastar esse dinheiro, os preços vão aumentar num prazo entre 12 e 18 meses. É o mais próximo que existe de uma lei infalível na economia. Mas como não ia parecer bem ser esse o motivo da inflação, atiram as culpas para todo o tipo de coisas. A guerra na Ucrânia veio muito a calhar. Não digo que não seja um fator – claro que se os preços da energia subirem, essa subida vai afetar tudo o resto – mas nenhum político ou governador do banco central vai assumir: ‘Sabem este aumento dos preços? É por causa daquilo que fizemos há dois anos’. [risos] Mas também é fácil criticar a posteriori. Quando veio a covid, alguma coisa tinha de ser feita, era necessário algum tipo de intervenção. E a inflação que temos agora em grande parte resulta daí. Acho que é um falhanço de todos os bancos centrais, porque andaram todos nas mesmas universidades, beberam as mesmas influências, aprenderam as mesmas receitas. A quantidade de dinheiro em circulação deixou de ser tida em conta, ninguém se preocupa ou sequer fala disso.
Aqui em Portugal, e possivelmente no Reino Unido também, quando os bancos obtêm bons resultados, os administradores recebem bónus chorudos. Mas quando têm problemas, quem paga são os contribuintes. Isso parece-lhe justo?
De modo algum. Começo o meu livro com uma versão o mais simples possível da economia, e, à medida que avançamos, tudo se torna mais complexo. Até certo ponto, isso é bom, porque significa que podemos fazer transações com dinheiro, não temos de fazer trocas diretas. Não temos de andar sempre com ouro, porque existem as notas e os cartões de crédito. Mesmo a possibilidade de aumentar o dinheiro em circulação é positiva, porque permite olear as engrenagens da economia quando as coisas estão a correr bem. Mas à medida que o sistema fica mais complexo, tanto o risco sistémico como o risco oculto aumentam. E de repente chegámos a 2008, e percebemos que os bancos não podiam cair. E tinha de ser o contribuinte a sustentá-los. O que normalmente acontece é que uma ou duas pessoas perdem o emprego, continuam a ter uma bela pensão – isso é garantido – mas os outros responsáveis continuam todas nos mesmos lugares. Estamos encalhados no sistema que temos, até que aconteça algo de dramático que force a mudança.
Se me permite, vou ler uma passagem de O imenso adeus, um policial de Raymond Chandler. «O dinheiro tem uma particularidade: em grandes quantidades, tende a ter uma vida, e até uma consciência própria. O poder do dinheiro torna-se muito difícil de controlar». Também acha que o dinheiro tem vida própria?
O dinheiro é, efetivamente, uma ficção. Não é algo real, é o que quisermos que seja. Em si, o dinheiro é neutro, mas traz poder a quem o detém. Quando temos um sistema muito opaco e as pessoas que o controlam servem os seus próprios interesses, e conseguem safar-se, aí sim, as coisas ganham uma vida própria. Mas não culparia o dinheiro. O dinheiro em si é neutro. O que importa é o que fazemos com ele.
Apesar da redução recente, Portugal tem uma dívida pública gigantesca, de cerca de 100% do PIB, qualquer coisa como 280 mil milhões de euros. Uma dívida tão grande não é um peso para as próximas gerações?
A grande questão em relação à dívida de um país é que não existe uma determinada fasquia a partir da qual ela se torna problemática. Em teoria, poderíamos ter uma dívida muito mais alta do que alguma vez tínhamos imaginado sem que isso provocasse efeitos nocivos. Mas há um ponto em que de facto se torna um problema. E aí entra a inflação. Se tivermos inflação, o volume da dívida pública representa um valor cada vez menor. Mas se tivermos deflação, a dívida vale mais, torna-se mais pesada. E não podemos deixar que isso aconteça. Ou seja, mesmo que consigamos pagar os juros com facilidade, continua a ser um problema estarmos presos à inflação. Porque, caso contrário, todo o sistema entra em colapso. Outro aspeto negativo é que, à medida que a dívida cresce, os pagamentos de juros também aumentam. Se os gastos com juros subirem, teremos de aumentar impostos ou assumir que não vamos poder gastar esse dinheiro noutras coisas. E isso está a piorar porque as taxas de juro subiram muito. Quando essa dívida precisar ser refinanciada, será com juros mais altos. Alguns países já sentem o efeito do aumento das taxas de juro, mas o pior está para vir. Há pessoas que andam há anos a olhar para a dívida pública em percentagem do PIB e passam-se dos carretos: ‘Isto é insustentável’. Sim, em última análise, é insustentável. A parte difícil é saber quanto tempo ainda a conseguiremos aguentar.
Estamos a atingir o limite?
Não houve nenhum momento da história em que a quantidade de dinheiro e a quantidade de dívida, que são a mesma coisa, aumentassem tão rapidamente como nos últimos 50 anos. É algo nunca visto e vai ter de acabar, porque não pode continuar a crescer para sempre. Quando vai acabar? E como? Isso é o que toda a gente gostaria de saber…
E vai acabar mal, é isso que está a dizer?
Podemos usar a imagem de um emprestador que espera reaver o seu dinheiro. E grande parte dele vai desaparecer. Como é que isso vai acontecer? Pode haver governos em default a não conseguir pagar os seus compromissos, uma queda no mercado bolsista, uma crise no imobiliário, depositantes a perder as suas poupanças… Ou pode ser algo completamente diferente. Às vezes acontecem coisas estranhas. Não quero parecer alarmista, nem estou a ser pessimista só porque sim. É difícil perceber como podemos mudar para outra coisa de forma pacífica. Mesmo que fosse possível tomar decisões difíceis agora e manter esse rumo durante dez ou vinte anos, qual seria o político a assumir esse compromisso? A tendência é ir sempre empurrando com a barriga e o próximo que resolva o problema.
Uma última questão. De ouro e prata, o dinheiro evoluiu para as notas de papel, para cartões de crédito de plástico e agora temos as criptomoedas, que são apenas dados num servidor. O dinheiro está a tornar-se cada vez mais imaterial. Como vê o futuro? Acha que ainda vamos ter moedas e notas nas carteiras ou será tudo feito com um smartphone?
As coisas parecem caminhar para aí, o dinheiro está a tornar-se cada vez mais intangível, e isso tem benefícios. Mas quanto mais abstrato se torna, mais difícil é de controlar. Há dados que mostram que quando se usa Apple Pay ou métodos de pagamento desse tipo, acaba-se por gastar mais, porque nem parece que estamos a gastar dinheiro. Podemos tentar contrariar essa tendência nas nossas vidas, e pessoalmente espero que haja sempre a possibilidade de usar dinheiro vivo. Mas as pessoas, de uma forma geral, estão a escolher estas outras formas porque lhes dá mais jeito. Para o bem e para o mal, a tendência é essa. E no nível macro isso também está a acontecer. Os bancos centrais costumavam mandar carregamentos de ouro uns para os outros para fazerem pagamentos entre si e hoje são apenas números num ecrã.