Marco Oliveira Borges. ‘A presença de mulheres e de sodomitas estava associada a maus presságios’

A vida a bordo das naus dos Descobrimentos estava cheia de riscos e de incómodos. Por causa da dureza das condições, boa parte dos marinheiros ‘desertava e ficava a servir os inimigos de Portugal’, revela o historiador.

Um calor tórrido nos trópicos; um frio glacial ao largo da costa africana, a ponto de nevar. Dias de tédio contrastando com períodos de esforço hercúleo. Febres, fome, enjoos e um desconforto constante. De tudo isto se fazia a vida a bordo dos navios da carreira da Índia, como descreve Marco Oliveira Borges, especialista em História Marítima e membro efetivo da Academia de Marinha, em Entre o Céu e o Inferno – Vida e Morte nos Navios da Expansão Portuguesa (1497-1655) (ed. Crítica). Ao Nascer do SOL, o autor explica quem eram os marinheiros dos Descobrimentos, como viviam e como enfrentavam a adversidade.

Qual era o tipo de homens que embarcava nestas viagens de longo curso? De que meio social procediam maioritariamente? Eram, de uma forma geral, pessoas que tinham pouco a perder?

Como se pode imaginar, entre fidalgos, funcionários régios, missionários, comerciantes, escravos, soldados, marinheiros, etc., embarcavam homens de todos os estratos sociais. É claro que, entre cerca de 500 pessoas embarcadas em cada navio ou até mais, se destacava a gente de baixa condição social, muitas vezes sendo igualmente composta por criminosos de delito comum saídos das prisões, mobilizados para servirem como soldados na Ásia. Devido à miséria que passavam em Lisboa e em outras partes do reino, muitos destes homens de baixa condição social pouco tinham a perder e arriscavam a viagem para a Índia em busca de uma vida melhor e até de riqueza, grande parte das vezes iludidos com promessas ou informações e boatos que se espalhavam em Lisboa. Em outras situações, porém, eram embarcados de forma forçada, especialmente para servirem como soldados e marinheiros. De um modo geral, muitos não faziam ideia da dura realidade que iriam encontrar nos navios e já na Ásia. À chegada à Índia, encontrando-se na miséria, boa parte deles desertava e ficava a servir os inimigos de Portugal, chegando a converter-se ao islamismo.

Existia igualmente um universo feminino a bordo dos navios, mas formado por um reduzido número de mulheres: órfãs vindas do recolhimento do castelo de Lisboa, fidalgas, aventureiras, vivandeiras, degredadas, escravas, prostitutas. 

As embarcações evoluíram muito neste período entre c. 1500 e 1655? Houve progressos em termos de segurança e de conforto, por exemplo?

Os navios foram progressivamente aumentando de tonelagem para terem maior capacidade de transporte de mercadorias, mantimentos e pessoas. Mas isso trouxe vários desafios e perigos à navegação, levando a uma discussão baseada em prós e contras que se foi prolongando no tempo. As queixas sobre a falta de segurança e a incomodidade vivida a bordo foram constantes ao longo do período estudado no livro, pelo que não se pode dizer que houve progressos em termos de segurança e de conforto. No entanto, os privilegiados viajavam sempre mais bem acomodados, tinham uma alimentação mais rica e melhores condições durante a viagem do que a gente de baixa condição social, muita dela tendo que dormir no convés, estando mais exposta ao frio e ao calor. 

A probabilidade de não regressar vivo de uma viagem à Índia era alta?

Sim, sem dúvida. E, nos casos mais críticos, chegou a morrer quase metade das pessoas da armada que era enviada anualmente à Índia. De acordo com o cronista Diogo do Couto, 1571 foi dos anos mais mortíferos. Dos 4.000 homens enviados, só 2.000 é que lá chegaram. Na nau em que ia embarcado, entre 900 homens, morreram mais de 450. Era uma altura em que Lisboa ainda não se havia livrado totalmente do surto de peste que tinha tido grande impacto no ano anterior, pelo que isso terá ajudado a uma mortandade tão elevada entre os homens que embarcaram no Tejo. Mas, em caso de naufrágio, ainda poderiam ocorrer muitas mais mortes, por vezes todos ou quase todos os que vinham a bordo.

O espaço no interior do navio era muito acanhado?

Era uma das queixas mais frequentes. O espaço era demasiado exíguo para centenas de pessoas embarcadas, daí também surgirem conflitos com grande frequência. Se as mercadorias já ocupavam grande parte da área útil dos navios, tudo piorava com tanta gente e, sobretudo, quando eram embarcados escravos, especialmente em Moçambique e Angola. São frequentes as referências ao carregamento de 200 ou 300 escravos. O espaço que ocupavam era de tal modo apertado que os escravos, vindo algemados, não conseguiam esticar as pernas. A sua presença a bordo acabava também por dificultar a circulação das pessoas pelos navios.

Que equipamento científico levavam a bordo?

Mapas, cartas náuticas, astrolábios, quadrantes. 

A alimentação é um aspeto fundamental da vida (a bordo e não só). De que ia abastecido o navio quando partia? O que comiam os marinheiros dos Descobrimentos?

Os navios partiam do Tejo abastecidos com biscoito, diferentes tipos de carne e de peixe, ameixas passadas, amêndoas, açúcar, alhos, cebolas, farinha, grão, lentilhas, mel, mostarda, azeite, vinagre, água e vinho. Além disso, iam embarcados animais para serem abatidos ao longo da viagem. Porém, entre todos estes alimentos, apenas a água e o vinho eram dados diariamente, enquanto os restantes se distribuíam mensalmente e em cru. 

De um modo geral, as pessoas de baixa condição queixavam-se bastante do estado da comida: a carne vinha demasiado salgada, o biscoito podre ou assim se tornava e o vinho era vinagre que fazia arder o estômago. Além disso, as horas de espera no fogão sucediam-se, havendo um horário a cumprir, e muitas não conseguiam cozer individualmente, entre centenas de pessoas, os alimentos que lhes eram dados todos os meses. Acrescia que, por questões de segurança, durante as tempestades os fogões não eram acesos, pelo que uma tormenta que durasse vários dias iria ter graves repercussões na alimentação das pessoas, que teriam de ingerir os alimentos em cru. Como se pode calcular, isso tinha rápidos reflexos negativos no seu estado de saúde.

A isto acrescia a corrupção que existia em todo o circuito da carreira da Índia e que, começando desde logo em Lisboa, fazia com que dos armazéns da Guiné e Índia não fossem providas as quantidades de comida e de água suficientes para toda a viagem. Alguns capitães e mestres acabavam por conseguir comprar espaços nos navios que eram destinados a esses alimentos, mas para transportarem produtos seus (mel, vinho e azeite) destinados a ser vendidos em Moçambique ou na Índia.

Há relatos de fome, mas fica a dúvida: não podiam pescar?

De modo complementar, os marinheiros e outras pessoas podiam capturar aves e peixe ao longo das viagens, visando tentar contornar uma alimentação bastante precária. A pesca era uma atividade frequente, mas os navios passavam largo tempo em alto mar e era mais perto de terra que se podiam obter bons resultados, junto das plataformas marítimas, onde havia mais peixe. Além disso, em momentos de tempestade não se pescava, pelo que durante vários dias consecutivos as cordas e os anzóis poderiam não ser largados ao mar. Mas existiam casos em que peixes-voadores entravam nos navios e eram capturados, fazendo-se grandes banquetes. 

E o álcool? Corria livremente?

Não. À partida, o vinho era a única bebida alcoólica a bordo, embora também tenha chegado a ser transportada água-ardente. Quanto ao vinho, era distribuído diariamente, mas de modo controlado. O de melhor qualidade tendia a ser para a minoria privilegiada, englobando capitães, mestres, outros oficiais, fidalgos e certas pessoas importantes que fossem a bordo. Contrariamente, o resto das pessoas, que era a esmagadora maioria, tinha de se contentar com vinho muito ácido e sujo com o qual se molhava o biscoito, muitas vezes podre.

Em momentos de festa, como era o caso da celebração da festa do Imperador do Espírito Santo, poderia haver um maior consumo de álcool, facto que tendia a levar a problemas. Por um lado, rapidamente poderia espoletar conflitos entre os homens, além de lhes retirar a sobriedade indispensável para as tarefas da navegação. Por outro, o excessivo consumo de vinho poderia fazer com que no resto da viagem as doses diárias fossem bastante curtas ou até insuficientes para o resto do percurso até à Índia.

Com os homens, viajavam também animais (além dos ratos)?

Sim. Galinhas, perus, coelhos, vitelas, cabras e carneiros para serem consumidos durante a viagem. Também há registo de terem embarcado cães e gatos e, perante a fome que se passava, de terem servido de refeição. No regresso a Portugal, chegaram a vir embarcados animais de grande porte, como cavalos, rinocerontes e elefantes. A isso juntavam-se os habituais ratos, insetos como baratas, percevejos, pulgas e até piolhos, alastrando-se a bordo devido à falta de higiene. 

Os enjoos já eram motivo de queixa na época. Hoje temos comprimidos contra o enjoo. Na altura já havia algum truque para o evitar?

Dizia-se que a melhor coisa a fazer para evitar os enjoos era estar ocupado em alguma atividade. Quando alguém já estava enjoado, normalmente tentava-se curar este problema com o descanso, mas existem testemunhos que indicam que as pessoas ainda ficavam pior indo deitadas. Na época tornou-se recorrente a ideia de que se podia curar mais facilmente os doentes enjoados com caldos de galinha. O problema é que as galinhas chegavam a ser vendidas a preços exorbitantes, não estando ao alcance de todos.

Havia zonas, partes do trajeto especialmente temidas?

Sim. O cabo da Boa Esperança e a costa do Natal, locais onde ocorriam as maiores tempestades e surgiam ondas enormes, algumas com mais de 20 metros. Daí que se chegasse a dizer que, quando as naus subiam à crista da onda, parecia que alcançavam o céu, para, logo depois, descerem ao inferno. Hoje em dia, vemos surfistas que, de livre vontade, enfrentam ondas de mais de 20 metros na Nazaré. Naquela altura, as naus enfrentavam ondas igualmente grandes, mas porque, quando estas surgiam, não havia forma de escapar. Consequentemente, muitos navios portugueses naufragaram nas imediações do cabo da Boa Esperança e da costa do Natal.

Temos conhecimento de muitas superstições associadas ao mar?

Várias. Por exemplo, acreditava-se que todas as pessoas a bordo tinham de ir confessadas, inclusivamente os escravos, caso contrário surgiriam obstáculos à navegação, nomeadamente tempestades. A presença de mulheres (sobretudo solteiras) e de sodomitas masculinos também estava associada a maus presságios, crendo-se que poderia ser a causa de naufrágios, de incêndios e de outros acidentes.

E a fé? Havia padre e missas no navio?

Havia sempre um capelão a bordo. Mas ao longo da história da carreira da Índia foram embarcando missionários de diferentes ordens religiosas para servirem na Ásia, destacando-se os jesuítas, tendo tido um papel essencial no desempenho das práticas religiosas dos embarcados. Essas práticas consistiam em missas, orações, sermões, comemorações de santos, confissões e procissões. É claro que nem todos os embarcados eram crentes, e até ocorreram queixas sobre o largo tempo que as atividades chegavam a demorar, mas muitos, perante o medo do desconhecido e as imprevisibilidades da imensidão oceânica, abraçavam as práticas cristãs em plena travessia. Ficou célebre o antigo adágio: ‘Se queres saber a Deus orar, entra no mar’.

As escalas eram uma parte importante da viagem?

Sim, sem dúvida. De um modo geral, serviam para abastecimento, descanso e reparo dos navios. Na viagem de ida, a escala mais importante era a ilha de Moçambique. No entanto, desde sempre revelou problemas de abastecimento, faltando alimentos e água doce em quantidade. E se fossem vários navios a fazer escala ali, então iriam surgir muitos problemas, pois não haveria comida e água para todos. Além disso, muitas pessoas adoeciam em Moçambique, sobretudo com febres associadas à malária, não esquecendo que esta era uma área muito perigosa para a navegação, com as restingas locais a serem um autêntico risco para os navios.

No regresso a Portugal, fazia-se novamente escala em Moçambique, mas também na ilha de Santa Helena e na ilha Terceira. Santa Helena era um autêntico paraíso no meio do oceano, com frutas e animais de todos os tipos introduzidos ali pelos portugueses, e água fresca em grandes quantidades. Os vários dias que se costumavam passar em Santa Helena ajudavam a descansar e a recuperar a saúde de muitos dos doentes. 

Na ilha Terceira existia a provedoria das armadas, estrutura fundamental de apoio aos navios vindos das partes ultramarinas que existia, pelo menos, desde 1527. Contudo, nem sempre os abastecimentos fornecidos eram de qualidade e em quantidade suficiente.

O autor respondeu às perguntas do Nascer do SOL por escrito