Viva o Guterres, viva! Pim. Abaixo os falsos homens bons, abaixo! Pum.

No final, o soba, como se fosse o guardião da bondade do mundo, respondeu-lhe: “É a guerra, são todas iguais”.

Ontem, no decorrer do telejornal das oito da SIC, Clara Ferreira Alves, de Israel, deixou-me a matutar. Dizia a jornalista, com ar pungente, que um colega que visionara as imagens do massacre do Hamas, que o governo de Benjamin Netanyah propagandeia para conquistar a opinião pública internacional, lhe dissera nunca ter visto nada assim. O colega era um veterano. Um veterano! Fiquei incrédula. Por onde tem andado? Será que o experiente jornalista apenas tem assistido à guerra de drones? Aquela que torna a morte mais limpa porque não suja as mãos daqueles que a comandam  à distância?

Nunca estive numa guerra e sou uma pacifista para quem os atos de violência são sempre uma manifestação do poder, mas tenho na memória um arquivo pesado de imagens que outros me passaram. Durante a minha carreira fiz vários trabalhos sobre guerra colonial. Ouvi muitas dezenas de soldados e oficiais de ambos os lados. Alguns passaram-me documentos e fotos da época que publiquei no meu livro “Massacres em Àfrica”. Vi orelhas de alegados terroristas,  que estes homens, como bibelots, ainda guardam em frascos transparentes de vidro. Conservam-nas o clorofórmio. Um deles contou-me que o seu capitão, que era conhecido por ‘pequeno Eichmann’, uma comparação feliz com o grande cérebro do holocausto, Adolf Eichmann, ainda tinha um cinto que usava com os ossos de dedos dos “turras”. Cabeças decapitadas espetadas em paus; uma sequência de imagens de vários prisioneiros de guerra, desde o momento em que foram fuzilados até serem enterrados numa vala.

E porque é que estes soldados, que antes de partirem para “defenderem” a pátria nunca tinham matado uma mosca, tiveram a necessidade de fixar em papel a crueldade? Porque os homens, quando se juntam, uma vez iniciada a matança, perdem a razão e transformam a morte num festim.

E as recordações que dormem com eles? As dos comandos que, em dezembro de 1972, dizimaram três aldeias em Moçambique, epopeia que ficou conhecido pelos massacres de Wiriyamu, foram as mais terríveis que ouvi. O alferes miliciano que comandou os três pelotões que cercaram as aldeias, mal desceu do helicóptero, enfiou famílias inteiras em palhotas. Depois atirou granadas. Os corpos estilhaçados cobriam as paredes de capim. Sebola, africano que integrava as hostes portuguesas, brinca com crianças. Agarra-as por um braço, atira-as ao ar. Quando os corpos descem espera-os o punhal do tropa. Outras são lançadas para as palhotas incendiadas.

Um soldado segura o cabelo de Dukiria — que teve a sorte de outras tantas mulheres mas conseguiu sobreviver — para a manter de joelhos: “Este é o teu último dia, tens uma bela despedida”. Seguiram-se outros. Arrancaram-lhe a capulana, serviram-se. O último não a conseguiu matar.

Numa reportagem para a SIC e para o Expresso, levei este alferes miliciano ao encontro dos sobreviventes. Pediu-lhes desculpa. No final, o soba, como se fosse o guardião da bondade do mundo, respondeu-lhe: “É a guerra, são todas iguais”.

Esta parece não ter fim à vista. De ambos os lados, já não existem moderados.