Novas ULS. Um passo maior do que a perna

Pairam as dúvidas sobre a eficácia das novas ULS. Faltam evidências que garantam o seu sucesso, definições sobre o seu financiamento e existem desconfianças sobre a integração dos cuidados primários.

“Um passo gigante com pés de galinha”, é assim que Miguel Soares de Oliveira, médico e ex-presidente do INEM qualifica a criação das 31 novas Unidades Locais de Saúde (ULS). Somadas às oito já existentes, as ULS estão em fase de implementação com vista a estarem em funcionamento no início de 2024 – daqui a dois meses – e cobrirem a totalidade do país. As ULS que existem atualmente servem cerca de um milhão de pessoas. Em 2024 teremos uma estrutura organizacional a servir 10 milhões.

As ULS são um modelo de organização que integra os centros hospitalares, os hospitais e os agrupamentos de centros de saúde de uma área geográfica de uma determinada zona do território nacional. A primeira data de 1999 e nasceu em Matosinhos. Seguiram-se mais sete: Norte Alentejano (em 2007), Guarda, Baixo Alentejo e Alto Minho (em 2008), Castelo Branco (em 2010), Nordeste (em 2011) e Litoral Alentejano (em 2012). Em conjunto, estas servem cerca de um milhão de pessoas. 

Mas vão existir grandes diferenças. E uma delas é a forma de financiamento que vai alterar procedimentos e é baseada em outros referenciais. Atualmente, as ULS que existem são financiadas por capitação simples, que leva em conta poucas variáveis, como seja a idade e o género e pouco mais; a partir de agora vai contar para as contas itens como a necessidade de cuidados de saúde dos vários grupos da população ou as despesas com medicamentos. 

Com as novas ULS passa a existir um valor pago por pessoa em contrapartida pelo serviço prestado, a definição do montante tem em conta o risco da população, à carga de doença. “Mas esses modelos, ajustados ao risco, são muito complexos”, explicou numa entrevista dada ao Observador há duas semanas Eduardo Costa, economista e presidente da Associação Portuguesa de Economia da Saúde. O economista afirmou ter dúvidas que “exista uma noção muito clara de qual é o nível de detalhe que esses modelos vão ter. E o grande problema é que, por um lado, isso dá um incentivo para tentar tratar o doente da forma mais barata e mais eficiente possível, mas é preciso que os incentivos estejam bem definidos”.

Segundo o novo modelo, as ULS que têm grupos maiores de pessoas com mais comorbidades – os principais consumidores de recursos, que mais vezes recorrem às urgências e têm mais internamentos – vão receber mais. Ora, quanto mais população e quanto maior forem as necessidades dessa população da ULS, mais esta recebe. Sendo da competência de cada uma definir como distribui esse financiamento pelo hospital, cuidados de saúde primários e cuidados continuados.

A motivação por detrás da criação destas ULS é melhorar o acesso dos utentes aos cuidados de saúde e diminuir a burocracia, facilitando o percurso dos utentes e dos doentes dentro do SNS, melhorar a eficiência e potenciar economias de escala. Cada ULS “concentra a organização dos recursos humanos, financeiros e materiais, facilitando o acesso das pessoas e a sua circulação, em função das necessidades, entre os centros de saúde e os hospitais.

As ULS vão reforçar a aposta na promoção da saúde e na prevenção da doença”, lê-se no site do Governo. Um dos exemplos dado pelo diretor executivo do SNS, Fernando Araújo, na altura da apresentação desta nova organização da Saúde, é a criação de um circuito para doentes crónicos, como seja o de um doente diabético. Será estabelecido uma espécie dentro da unidade de Saúde otimizando desta forma o acesso, o processo e o encaminhamento do utente às consultas, aos exames clínicos e à medicação. Evitando ao mesmo tempo as redundâncias e as repetições de procedimentos. Cada conselho de administração será composto pelo presidente da ULS, dois diretores clínicos, um enfermeiro-diretor, um vogal proposto pelo Ministério das Finanças e um vogal proposto pela comunidade pela área metropolitana.

Um modelo duvidoso 

No entanto, este modelo é encarado com desconfiança por vários setores. A primeira crítica prende-se com um estudo feito pela Entidade Reguladora da Saúde (ERS) em 2015, o qual conclui que não se prova o aumento da eficiência das oito ULS que já existem. Não se registou qualquer redução das hospitalizações desnecessárias e que os tempos máximos de resposta garantida não foram cumpridos. Também “o número de cirurgias em ambulatório em percentagem do total de cirurgias foi mais baixo nos hospitais pertencentes às ULS versus hospitais não ULS; em quase todos os hospitais das ULS não existiram ganhos ao nível da coordenação entre Cuidados de Saúde Primários e Hospital, nomeadamente com redução de hospitalizações desnecessárias; os hospitais das ULS têm menos recursos do que os hospitais não integrados; os atrasos para atendimentos agendados são maiores nas ULS”. Ou seja, a garantia de melhorias não se baseia em evidências. 

O bastonário da Ordem dos Médicos (OM) afirmou mesmo à Lusa, em abril deste ano, que “a criação das novas ULS não é, necessariamente, uma boa notícia”, uma vez que não tem dado provas da sua eficiência. O bastonário referiu na altura que verifica-se “fraca integração dos cuidados de saúde primários” e o papel da Medicina Geral e Familiar é desvalorizado. Carlos Cortes propôs que os conselhos de administração das ULS passassem a integrar um médico da Medicina Geral e Familiar, bem como um médico de Saúde Pública. O que não se veio a verificar.

Também André Biscaia, presidente da Associação Nacional das Unidades de Saúde Familiar (USF-AN )criticou o facto de as ULS terem um único conselho de administração e uma única direção clínica, que gerem tanto os hospitais como os centros de saúde. Ao Observador, André Biscaia, aponta como fragilidade “os hospitais não conhecerem a cultura dos cuidados de saúde primários” e, por isso, “deveriam existir várias direções clínicas, conhecedoras da cultura de cada instituição”. Há ainda o risco de a capacidade financeira dos centros de saúde ser desviada para os hospitais, para internamentos e serviços de urgência e aumentar desta forma o centralismo dos hospitais. O presidente da USF-NA acusou mesmo esta generalização das ULS ser uma decisão meramente política e não baseada em critérios técnicos. 

O problema está mais uma vez na implementação prática deste modelo e não no plano teórico das mesmas. Os estudos não são consensuais e são pouco otimistas e nenhum aponta garantias de sucesso seja ao nível do acesso das populações do sistema seja no acesso aos recursos.

Os “pés de galinha” desta importante reforma mencionada por Miguel Soares de Oliveira baseia-se em evidências concretas: “Temos ULS que ainda não têm orçamentos aprovados. Se no modelo antigo demora-se quase um ano a aprovar orçamento, num modelo novo, com novas formas de financiamento e de cálculo, não se adivinha grande sucesso”, conclui o médico. 

Além de tudo, a dimensão, complexidade e densidade de cada uma das ULS aconselham a que todas sejam consideradas de forma diferente. Se há ULS que apenas abrangem um município e uma grande densidade populacional, outras há que chegam a agregar mais de uma dezena de municípios e realidades territoriais significativamente distintas.