Um novelo emaranhado onde não se consegue descobrir a ponta. A crise na Saúde é a maior de sempre, avisam todos os protagonistas do setor. O ambiente é tenso e nebuloso: entre negociações infindáveis e complexas, legislação que vai saindo a conta gotas, indefinições e sobreposição de competências, dúvidas sobre as formas de financiamento, alterações profundas de toda a organização do SNS e recados trocados e informação conhecida através da comunicação social. O caos é visível e sentido por todos. Quer no tom e nos discursos de todos os intervenientes, quer no dia-a-dia dos utentes. A angústia já não se prende apenas com os atrasos das cirurgias ou das consultas, com o encerramento das urgências ou a falta de médicos de família, mas com a dúvida cada vez maior sobre se algum dia o SNS terá capacidade de dar resposta a tudo isto. Se a universalidade do acesso e a garantia aos cuidados de saúde não estão desta vez definitivamente comprometidas ou, pelo menos, por um período indeterminado.
É este o “grito de alerta” agora dado pelos médicos e que tanta tinta tem feito correr. É com eles e sobre eles que todo o sistema está alicerçado. Sem médicos, com falta deles e sem o seu compromisso torna-se impossível garantir os cuidados de saúde em todas as suas dimensões. Desde os cuidados de saúde primários, passando pela proximidade dos cuidados de saúde através de médicos de família até aos serviços de urgência.
Reivindicações remuneratórias, condições de trabalho físicas e de horários, progressão na carreira, condições de formação, revisão da carreira. Ao mesmo tempo, a reestruturação de todo um intrincado sistema.
No entanto, tudo está comprometido e dependente das negociações entre o Governo e os médicos. E, apesar das reuniões terem durado todo o fim de semana até domingo de madrugada, não houve fumo branco. Os sindicatos voltam hoje a sentar-se com o Governo e a viabilidade de um acordo é vista como impossível. “Todos vão ter de ceder e encontrar um entendimento comum ou será a ruína do SNS. Sendo que o Governo parece não ter percebido aquilo que está em causa”, comentou ao i uma fonte ligada ao processo negocial.
Enquanto este pingue-pongue prossegue, o Governo segue com a reestruturação da organização do SNS. Desde a organização das unidades de saúde, às competências das várias entidades. Mas quem financia o quê? Quais os graus de autonomia? Como passaram a funcionar os cuidados de saúde primários? Como desviar os utentes das urgências que não o são e como estruturá-las? Qual a exequibilidade de funcionamento das novas estruturas? Qual o planeamento de implementação?
O pior mês de sempre Todas as semanas há notícia de mais um serviço de urgência que encerra num dos cantos da país e o responsável pela nova reforma, Fernando Araújo, avisa da proximidade do pior mês de sempre em quase 50 anos de SNS. Um mês em que a saúde, o imbatível SNS, pode bater no fundo. Advinha-se, por isso, e para fazer fase ao que aí vem, novas medidas de contingência e mais sacrifícios aos profissionais de saúde para que nada colapse. Um cenário que há quem avise que «Pode ser idêntico ao vivido durante a pandemia», garante uma fonte hospitalar. «Nessa altura, medidas urgentes e casuístas foram aplicadas; desta vez, poderá acontecer o mesmo só que a par com uma reforma administrativa».
Entre 2011 e 2023, o orçamento da Saúde aumentou 83 por cento. Desde 2015, ano em que António Costa foi eleito primeiro-ministro, a dotação para Saúde cresceu cerca de 6 mil milhões de euros e para 2024 estão inscritos mais 13 mil milhões. O número de profissionais do SNS, sejam médicos, enfermeiros, técnicos auxiliares de saúde, é o mais alto de sempre, e nunca tanto dinheiro foi gasto ou investido neste setor do Estado. Do outro lado, o do utente, as melhorias sentidas não refletem este crescimento exponencial de verbas. A falta e o atraso das respostas, o crescimento das listas de espera, a saturação e encerramento das urgências, que servem cada vez mais como porta de entrada para o SNS, são as causas para a insegurança num sistema que todos, em várias gerações, se habituaram a dar como adquirido e garantido. São mais de 1,6 milhões de portugueses que estão sem médico de família e o site dos Tempos de Espera do SNS revela friamente que se podem esperar anos por uma consulta de especialidade ou por uma cirurgia.
Aponta-se como a origem das fragilidades cada vez mais visíveis e para este desfasamento vários fatores: modelos de gestão caducos e burocráticos, envelhecimento da população e aumento das comorbidades, saturação e insatisfação dos profissionais de saúde, subfinanciamento em algumas áreas, etc.. Todas estas causas atingiram o seu exponente máximo. E todas elas envolveram-se num novelo emaranhado e atingiram um pico que ameaça a rutura.
Entretanto, o setor privado tem vindo a crescer em número de unidades, volume de negócios, capacidade de resposta e capacidade de inovação, vindo a ultrapassar os setor público em algumas áreas nefrálgicas. Em 2020 existiam 116 hospitais privados e 107 hospitais de acesso universal. Hoje, cada vez mais médicos escolhem a exclusividade das unidades de saúde privada, assim como há cada vez um maior número de utentes a recorrerem aos seguros de saúde e aos privados em alternativa ou em complemento ao SNS.
Será que se assiste ao cumprimento da profecia que tem vindo a ser anunciada desde há décadas, de que o SNS poderia estar fatalmente comprometido caso não se planeassem e concretizassem as devidas reformas, ou Fernando Araújo conseguirá salvar o sistema e concretizar a tão esperada reforma – sendo tudo isto o início de uma nova fase?
A reestruturação prometida está em curso: generalização das Unidades de Saúde Familiar modelo B (USF) e dos Centros de Responsabilidade Integrados (CRI), alargamento das Unidades Locais de Saúde (ULS) para todo o país, reorganização dos serviços de urgência. O objetivo é descentralizar o planeamento e a prestação dos cuidados de saúde, conceder autonomia às unidades de saúde e satisfazer profissionais e utentes. Mas não. Nem os profissionais nem os utentes acreditam que “desta vez é que é”. As críticas e o ceticismo chegam de todos os quadrantes e a desconfiança sobre a aplicação prática, no terreno, de toda esta reorganização é latente.
No olho do furacão estão as condições salariais dos médicos, a revisão da carreira, a melhoria das condições de trabalho. Como fazer tudo isto sem que o funcionamento do SNS fique dependente de horas extraordinárias e de planos de contingência que foram cozendo uma manta de retalhos já cheia de remendos e de buracos? Como atrair e garantir que o SNS possa contar com os profissionais de que precisa para existir e para protagonizarem esta reorganização? Só o futuro dirá.