Multas passadas por radares ‘irregulares’ são ilegais

Os radares que detetaram camiões ‘voadores’ continuam ilegais, já que o Instituto Português da Qualidade não os vistoriou depois de ‘reparados’ pela construtora. Advogado diz que aplicação de coimas pode ser ilegal.

Imagine um alcoolímetro da PSP ou da GNR, daqueles que estão fixos no carro, e fazem prova em tribunal. E fazem prova em tribunal por que razão? Porque foram verificados pelo InstitutoPortuguês da Qualidade (IPQ) e essa certificação tem validade de um ano. Agora, imagine que esse alcoolímetro, por alguma razão, se avaria e a PSP ou a GNR  decidem repará-lo recorrendo ao fabricante ou à empresa que o instalou nos carros patrulhas. Para a Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR) essa reparação não necessita de ser averiguada pelo IPQ, pois o fabricante e a empresa instaladora substituem perfeitamente o IPQ. 

Agora, deixemos o imaginário e passemos a casos concretos, também na área da ANSR e do IPQ. Como foi profusamente divulgado, dois radares instalados nas estradas nacionais 109 e 234 revelaram falhas de funcionamento, tendo detetado camiões em excesso de velocidade que os mesmos jamais poderão atingir, a não ser que sejam modificados para provas especiais, e mesmo assim será quase impossível que possam atingir 190 quilómetros por hora. Acresce que os camiões têm um tacógrafo que regista todas as velocidades alcançadas pelo veículo e que essa evidência faz prova em tribunal.

Fabricante e empresa instaladora substituem IPQ

Tanto assim é que a ANSR admite que anulou as multas passadas a esses camiões, embora não aceite que outros condutores possam ter sido autuados injustamente. De 1 de setembro a 1 de outubro, o referido radar da estrada nacional 234 esteve a funcionar nessas condições, mas a ANSR diz que não irá anular as multas passadas, pois quem se sentir lesado terá hipótese de reclamar. Em resposta ao jornal i, a ANSR “confirma ter havido problemas pontuais com origem numa falha técnica e que já se encontra resolvida, pelo que os autos de contraordenação resultantes desses problemas estão em processo de arquivamento”. A ANSR aconselha quem se senta injustiçado a seguir as regras. “O sistema contraordenacional em Portugal protege o cidadão e dá todas as garantias a quem são imputadas as práticas de infrações, permitindo no prazo de 15 dias úteis, a contar da notificação da infração, apresentar defesa, podendo indicar testemunhas, até ao limite de três, e outros meios de prova”. 

Acontece que o radar em questão – e já não falamos do da estrada nacional 109, nem do radar da A25 que também apanhou veículos a uma velocidade que os mesmos não alcançam – foi reparado pelo próprio fabricante e pela empresa instaladora, achando a ANRS que o Instituto Português de Qualidade não precisa de certificar que esse ‘arranjo’ foi feito de forma a que o mesmo possa estar em funcionamento. Vejamos então o que disse ao jornal i a ANSR, sobre a desnecessidade de recorrer ao IPQ. “Adicionalmente, e para garantir a máxima segurança e estabilidade do sistema foi efetuada pelo fabricante e pela empresa instaladora uma revisão a todos os radares instalados em condições semelhantes, não existindo qualquer problema no seu funcionamento”. Extraordinário, o Estado português tem um organismo que certifica aparelhos, mas que pode ser substituído pelos fabricantes do mesmos. Registe-se que a ANSR e o IPQ não responderam às perguntas colocadas pelo Nascer do SOL.

Reparações da empresa não são válidas em tribunal  

O Nascer do SOL ouviu Tiago da Costa Andrade, advogado da Morais Leitão, Galvão Teles, Soares da Silva e Associados que integra o departamento de criminal, contraordenacional e compliance, dizendo não conhecer os casos em concreto, explica o que está em causa: “É o IPQ a entidade competente para as aprovações de modelos, primeiras verificações, verificações periódicas e verificações extraordinárias dos radares. O que significa que mesmo que o fabricante e a empresa instaladora tenham procedido a uma revisão de todos os radares instalados em condições semelhantes, assegurando não existir qualquer problema no seu funcionamento, isso não dispensa a exigência legal e regulamentar de verificação por parte do IPQ, mais a mais depois de ter havido uma reparação dos instrumentos. Assim sendo, se determinado radar não estiver devidamente verificado pelo IPQ, a medição efetuada não é prova valorável em processo de contraordenação rodoviária por infração decorrente de excesso de velocidade”. Mais claro é impossível. 

Condutores não devem pagar coimas  

O causídico ouvido pelo nosso jornal, esclarece ainda que, já que a ANSR confirma ter havido problemas pontuais com origem numa falha técnica, “a solução de arquivar os processos instruídos com a medição de radares irregulares é a solução mais sensata, do ponto de vista da economia processual, e a mais leal, na perspetiva da relação da Administração com os cidadãos. Não obstante, e numa perspetiva mais genérica, diria que, em nenhum caso, deverão os cidadãos proceder ao pagamento das coimas (prestando apenas depósito quando a notificação for efetuada no ato da verificação da alegada contraordenação) sem antes verificar a regularidade da notificação e dos elementos do processo em que são arguidos. Não só para melhor defesa dos seus direitos e interesses, mas também para a promoção generalizada do cumprimento do Estado de Direito”.

Tiago da Costa Andrade consegue ser ainda mais elucidativo:  “Se a única prova existente da condução em excesso de velocidade era a proveniente da medição produzida pelo radar, e se essa prova é inválida por violação dos pressupostos legais e regulamentares a que a utilização do radar está vinculada, então a autoridade administrativa, que é quem tem de fazer a prova da infração, queda sem prova sobre o facto essencial da condução em excesso de velocidade, impondo-se, assim, o arquivamento do processo – na fase administrativa – ou a absolvição do arguido – na fase judicial”.

Já fonte policial ouvida pelo Nascer do SOL dá a sua visão: “O que se passa é que os radares só são verificados nas instalações do IPQ, onde o piso é plano. Quando esses aparelhos são colocados nas estradas, o IPQ não vai lá certificar se tudo está devidamente correto.Depois de instalados, basta haver um deslize no local, ou o desgaste do terreno onde assentam os aparelhos, devido à passagem de camiões pesados, para os radares darem erro”.

185 mil contraordenações só em seis meses 

Para se ter uma ideia da ‘ação’ dos radares controlados pela ANSR, de fora ficam os das câmaras municipais, da PSP e da GNR, diga-se que os  os aparelhos fixos nas estradas nacionais, só em seis meses, apanharam mais de 185 mil condutores em excesso de velocidade, alguns dos quais nas estradas nacionais 109 e 234.