No meio das negociações com os médicos, dos encerramentos das urgências, da divulgação das novas Unidades Locais de Saúde (ULS), dos estatutos da direção executiva do Serviço Nacional de Saúde (SNS), negociações do Orçamento do Estado, o Governo multiplica anúncios, legislação e intenções para concretizar a reforma prometida que pretende iniciar para o ano e algumas a começar já nos próximos meses.
Duas delas são a generalização das Unidades de Saúde Familiar modelo B (USF-B) e o alargamento dos Centros de Responsabilidade Integrados (CRI). Os CRI são estruturas orgânicas de gestão intermédia, dependentes dos conselhos de administração dos hospitais, que têm autonomia funcional. Em que o modelo de prestação de cuidados estará assente na dedicação plena dos profissionais das equipas multiprofissionais. Na prática, são uma espécie de hospitais dentro de hospitais que integram médicos, enfermeiros, assistentes operacionais e técnicos só dedicados a um determinado serviço. Existem CRI dedicados ao tratamento da obesidade, de dermatologia, traumatologia ortopédica, cirurgia cardiotorácica, entre outros. Os profissionais que integram os CRI têm vários incentivos, incluindo remuneratórios, relacionados com o desempenho alcançado. É um conceito com cerca de 30 anos agora repescado pelos responsáveis da saúde, lançado por Leonor Beleza, reestruturado por Maria de Belém e que sofreu um revés em 2011, quando se decretou o fim dos prémios de desempenho de acordo com a quantidade e qualidade da produção individual. No entanto, continua a ser vantajoso para os profissionais que aderem a estas equipas em termos remuneratórios.
O Governo anunciou na passada semana que até ao final do ano irão ser implementados no terreno os CRI dedicados às urgências, pelo menos nos cinco maiores hospitais do país: no Lisboa Central (Hospital São José), no Santa Maria e em Coimbra. No Porto, será no Santo António e no São João. E garante que no próximo ano muitos mais virão a caminho. “Acho que esse modelo também é essencial para podermos depender menos da urgência e da sobrecarga que impomos aos médicos no serviço de urgência”, referiu.
No entanto, são várias as indefinições e dúvidas. Uma delas é a sua forma de financiamento, além das desigualdades e mal-estar que pode provocar esta estrutura intermédia dentro das unidades hospitalares. Uma vez que os mesmos profissionais, que prestam o mesmo serviço, têm tratamento diferente consoante escolherem integrar os CRI ou não. Criando-se assim o risco da existência de médicos de segunda e de primeira, pois, uns terão prémios de desempenho e os outros não. Outra dúvida é a de saber qual será o impacto nas unidades de saúde de onde vêm os profissionais. Como sejam os médicos das especialidades de medicina interna e saúde mental – dois dos CRI que Manuel Pizarro anunciou criar brevemente. Quanto ao financiamento: “A atividade do CRI enquadra-se no plano de ação trienal que levou à sua criação e é definida anualmente, no contrato-programa do CRI, que é negociado pelo seu conselho de gestão no âmbito do processo de contratualização interna com o conselho de administração da instituição”. Como e em que moldes serão definidos são questões ainda não definidas.
Quanto às USF-B, foi também anunciada a sua generalização, em que a remuneração está associada ao desempenho dos profissionais. Este tipo de ULS são equipas multiprofissionais, de médicos, enfermeiros e secretários clínicos, que contratualizam com os respetivos Agrupamentos de Centros de Saúde a assistência a uma determinada população, garantindo cobertura total de médico e enfermeiro de família aos seus utentes. Segundo o ministro, este é “um modelo eficaz de prestação de cuidados que alarga o acesso à população, que aumenta a satisfação da população e que também aumenta a satisfação dos profissionais”. Ainda na mesma entrevista, o ministro refere que “em termos diretos, a generalização das USF de modelo B permitirá que mais cerca de 250.000 portugueses tenham acesso a uma equipa de saúde familiar”.
Este modelo, que tem quase 20 anos, é considerado eficiente e eficaz, sendo que para a sua generalização são necessários médicos e profissionais em regime de dedicação plena, tal como nos CRI. Ora, a falta de médicos, com as aposentações e a saídas do SNS, pode inviabilizar a estimativa avançada pelo Governo de passar já em janeiro de do próximo ano (2024) 250 USF para USF modelo B.
Além disso, é colocado em causa pelos profissionais do setor as alterações ao modelo que prevê que uma parte do vencimento dos profissionais ficar ligado a uma menor despesa de medicamentos e a uma menor despesa de meios complementares de diagnóstico, isto coloca necessariamente questões éticas. “As idas de utentes às urgências, os internamentos e as prescrições médicas podem ter impacto negativo nos salários dos profissionais de saúde, o que levanta ‘questões éticas’”, alertou o presidente da Associação Nacional das Unidades de Saúde Familiar, André Rosa Biscaia, na TSF. Isto porque a despesa médica de medicamentos prescritos e comparticipados, a despesa média baseada no preço convencionado de exames prescritos, a taxa de internamentos evitáveis nos adultos e a taxa de resolubilidade das USF deverão passar a fazer parte dos indicadores de atividades específicas que influenciam a remuneração.
No mesmo sentido também se pronunciou a Ordem dos Médicos. Num comunicado enviado à comunicação social lê-se: “A Ordem dos Médicos considera inaceitável e prejudicial para a qualidade dos cuidados de saúde a proposta do Ministério da Saúde de alterar os indicadores de desempenho das Unidades de Saúde Familiar, associando a remuneração dos médicos aos atos médicos, tais como: meios de tratamento e diagnóstico utilizados, despesa com medicamentos, referenciação para a Urgência, entre outros”. Isto porque se condiciona o pagamento ao pessoal clínico a ações dos utentes que lhes são impossíveis de controlar. No mesmo comunicado, o bastonário Carlos Cortes refere que o novo modelo é uma “tentativa de reduzir os cuidados ao utente a um ato meramente mercantil”. Uma medida que classifica de “errada” e que, diz, “mina a confiança das pessoas no SNS”. E defende que “o desempenho médico deve ser avaliado, sobretudo pelo bem-estar do doente e pelos resultados em saúde e nunca pela poupança gerada. A remuneração pode estar indexada a resultados na saúde das pessoas, sem nunca pressionar os médicos para não tratarem adequadamente os seus doentes. Medidas como estas vão levar à destruição do SNS”.
Mais uma vez, todos estas reformas dependem do sucesso do Governo em conseguir ter médicos e equipas comprometidas com cada uma delas. Ou tudo não passará do papel, das intenções e do plano teórico.