No passado sábado, 28 de Outubro, Bruno Vieira Amaral (BVA), um dos escritores mais talentosos da sua geração, foi até Penafiel. Convidado por Tito Couto, o programador do festival Escritaria, BVA participou na homenagem à ‘Vida e Obra de Miguel Esteves Cardoso’. Ficou na mesa Geração Nestum com Figos, ao lado de Bárbara Reis e da moderadora Minês Castanheira.
Eram quase sete da tarde quando BVA começou a falar. Lá fora, do céu cinzento, jorrava um dilúvio. Na plateia, as pessoas não sabiam se era das alterações climáticas ou do magnetismo das palavras de BVA, que se entregava por inteiro, com admirável profissionalismo, à missão de homenageador:
«(…) Vou contar aquela história que o David Foster Wallace conta num dos livros e que dá para muita coisa e também dá para isto. Que é a história dos dois peixinhos que estão a nadar, dois peixinhos muito pequeninos, e passa um peixe mais velho por eles e diz: ‘Então rapazes, como é que está a água?’. E os dois peixinhos olham um para o outro e dizem: ‘O que é que é água?’. E nós todos cronistas, todos aqueles que escrevemos crónicas, nadamos numa água, num lago, que foi criado pelo Miguel Esteves Cardoso, mesmo que não tenhamos absoluta consciência disso, nem do que é essa água».
Por esta passagem se vê o dedo do mestre que já ganhou – nada mais justo! – os Prémios Fernando Namora, PEN Narrativa e José Saramago.
É que a metáfora de BVA se adaptava perfeitamente ao estado da roupa que tínhamos no corpo: empapada de cima a baixo até aos sapatos.
BVA é um orador consumado, um especialista do verbo que salta de festival literário em festival literário. A sua eloquência é a do feiticeiro capaz de provocar a chuva e de estabelecer uma continuidade entre vários ambientes.
De seguida, como se fosse o peixe mais velho da história de Foster Wallace, BVA continuou a explicar aos «peixinhos muito pequeninos» – nós todos, no fundo – «o que é a água»:
«(…) Um cronista português não consegue contornar a figura do Miguel e a escrita e as crónicas do Miguel, e mesmo que o faça, o contorne, o caminho dele fica definido por ter tentado evitar essa influência. Como eu acho, e tenho essa consciência, tenho a certeza, que é impossível contornar a figura do Miguel e as crónicas que ele escreveu. (…) é algo a que nós enquanto cronistas não podemos escapar, que é um ângulo sobre a realidade. Leio crónicas do Miguel, leio crónicas do Nelson Rodrigues, leio aqueles textos humorísticos do Woody Allen, para entrar nessa água.
«(…) muita daquela maneira de olhar para Portugal e para os portugueses… Porque nós (…) procuramos falar sobre os portugueses pondo-nos de fora, mas quando o fazemos, normalmente parecemos parolos (…). É inevitável quando nos pomos de fora. São raríssimos os casos de escritores e de cronistas que têm essa capacidade de comentar, de analisar, de desmontar o comportamento dos portugueses, falando de nós, estando de fora. (…) é como se o cronista estivesse num diálogo com o leitor e dissesse, ‘estás a ver como é que são os portugueses? Mas nós não somos assim’. E depois nós tentamos replicar isso, com mais ou menos sucesso. Agora que esse valor, esse quase padrão ouro da crónica que está estabelecido pelo Miguel (…), acho que isso é inegável».
Notório admirador das crónicas de MEC – o gosto de BVA pela escrita, tal como o meu, brotou da leitura de livros como A Causa das Coisas -, Bruno continuou a dirigir-se a uma «plateia antecipadamente rendida», a espraiar-se nas excelências da obra do homenageado. Poucos, como ele, terão sido mais meticulosos em obedecer ao espírito de adoração do festival:
«A coisa mais fascinante para mim, quando li pela primeira vez A Causa das Coisas, era essa atenção à linguagem, o desmontar das expressões utilizadas pelas pessoas e também nos jornais, pelos escritores. E isso é talvez das maiores influências do Miguel. (…)
«Eu tomei contacto com a obra do Miguel em livro. (…) Foi para aí em 1995, já depois de o Miguel ser conhecido como figura televisiva. Houve uma professora de técnicas de tradução de inglês que me disse: ‘Tens de ler o Miguel Esteves Cardoso’. E eu fui à procura, na biblioteca do meu bairro, d’A Causa das Coisas. (…) Uma das coisas que me deixou mais satisfeito, eu não tinha muitas leituras na altura, tinha pouquíssimas leituras de autores portugueses, e lembro-me de um inquérito, que eu creio que foi feito pelo Independente na altura, em que pediram a uma série de personalidades da cultura… figuras da cultura portuguesa… para escolherem os dez livros mais importantes da língua portuguesa, e eu fiquei muito feliz quando houve alguém, já não me lembro quem, que entre esses dez livros escolheu A Causa das Coisas. E eu fiquei contente porque na altura era o único livro que eu tinha lido, e disse: ‘É verdade! Eu se tivesse de escolher dez, escolhia dez vezes A Causa das Coisas (…).
«(…) as crónicas quase todas são geniais, e genial aqui não é uma palavra vã… hoje vinha a reler e percebi: elas são literatura (…). Agora, aquilo que é essencial permanece, as verdades, as observações, a pontaria das observações em relação a comportamentos e à linguagem, isso continua perfeitamente válido e poderia continuar a ser feito ainda hoje pelo Miguel, ele seguiu por outro caminho, e acho muito bem que o tenha feito (…). Para acabar, concordo absolutamente com esse senhor, que já não me lembro quem é que era, que escolheu A Causa das Coisas como um dos dez livros, um dos dez maiores livros da língua portuguesa, eu concordo absolutamente».
Entrámos todos em transe. Sentíamo-nos unificados por uma espécie de culto evangélico, éramos como aquela «gente que se reúne em caves, em garagens, em lojas suburbanas, para adorar a Deus. Gente que canta e que bate palmas, que proclama alto e bom som o amor a Deus» (BVA, Aleluia!, 2015).
Havia algo de enternecedor em tudo aquilo, uma ingenuidade que, no fundo, era uma admiração por alguém (MEC) no seu estado primitivo.
Quis levantar-me para o aplaudir. Apeteceu-me subir ao palco para lhe dar um abraço. As palavras de BVA eram pura vida. Emoção em estado bruto. Autêntica, virginal.
Queria dizer-lhe que compreendia a carga emocional que lhe fazia vibrar todos os nervos e todas as fibras do seu coração: «Também eu, Bruno, quis ser escritor desde que me lembro de ler o Miguel Esteves Cardoso. Também eu, Bruno, concordo absolutamente que ‘genial aqui não é uma palavra vã’. Também eu, meu amigo, meu irmão, seria capaz de dizer que ‘A Causa das Coisas é um dos dez maiores livros da língua portuguesa’. Pouco importa o exagero, Bruno, as paixões são mesmo assim, absurdas, irracionais, torrenciais».
Como sou um bicho de concha, tímido e taciturno, limitei-me a bater palmas com as orelhas.
Miguel Esteves Cardoso sentiu-se apreciado e estimado. Para ele, foi um banho de glória: Bruno Vieira Amaral, o mesmo que em 2016 tinha sido nomeado uma das ‘Dez Novas Vozes da Europa’ (‘Ten New Voices from Europe’), considerava A Causa das Coisas um dos dez maiores livros da língua portuguesa. A par, ou melhor, que Fernão Lopes, Camões, Bocage, Garrett, Camilo, Eça, Pessoa, Sá-Carneiro, Agustina, Pacheco, Cesariny, etc.
Não só estes. Porque BVA, qual foguetão a caminho do espaço, falou, reparem, em «língua portuguesa». Portanto, segundo ele, A Causa das Coisas ultrapassa as dimensões da nossa pequenez, eleva-se acima das obras de Machado de Assis, Lima Barreto, João do Rio, Guimarães Rosa, Nelson Rodrigues, João Cabral de Melo Neto, Cecília Meireles, Ruben Braga, Mário de Andrade, Vinicius de Moraes, Clarice Lispector, Manuel Bandeira, Paulo Mendes Campos, José Craveirinha, Paulina Chiziane, Luandino Vieira, Luís Fernando Veríssimo, etc. Caramba! Maior encómio é difícil!
Depois de todo o esforço e toda a saliva gastos em asseverar-nos que A Causa das Coisas era um dos dez maiores livros da língua portuguesa, Bruno estava cansadíssimo. Achava-se inteiramente esgotado. Parecia que tinha estado toda a tarde a cortar lenha (a sua camisola de gola alta grená dava, de facto, a mais perfeita imagem de um lenhador das florestas), ou que estivera a soprar, durante mais de meia hora, para encher um balão de látex gigante, daqueles «que os portugueses têm a tendência megalómana de encher muito para além da sua capacidade pulmonar e intelectual» (BVA, Observador, 29/10/ 2023).
Mas Bruno não estava apenas com dificuldades de respiração. O seu rosto apresentava aquele ar vago de quem estivera prestes a sucumbir a uma crise de nervosismo, com palpitações no peito e o coração a bater com mil pulsações por minuto.
É que, na primeira fila, mesmo diante dele, a ouvi-lo atentamente, palavra por palavra, elogio por elogio, estava Miguel Esteves Cardoso, o homenageado do festival, o fabuloso autor de um dos dez maiores livros da língua portuguesa de todos os tempos.
Logo no início da sua intervenção, BVA reconheceu que «estava muito tranquilo aqui há uma hora, duas horas, e agora estou menos. A minha médica há uns tempos dizia-me que as pessoas costumam tomar bisoprolol [fármaco que diminui a pressão arterial] antes de falarem em público e eu agora percebo porquê, e talvez devesse ter tomado uma caixa de bisoprolol e isso também se deve à presença do Miguel [Esteves Cardoso] aqui».
Daí a instantes, a moderadora informou-nos que Bárbara e Bruno olhavam para Miguel Esteves Cardoso com respeito reverencial: «Eu estou a vê-los a responder e a falar sobre as crónicas do Miguel e depois a olharem para o Miguel. Volta e meia, assim de relance, para verem qual é a reacção daquele lado».
Havia nisso alguma razão. No artigo do Observador sobre aquela homenagem, BVA confidenciou que MEC «mete medo. Ainda mete medo. Tem superpoderes como a visão raio-x que lhe permite ver através da alma lusitana, vasculhar o nosso interior e revelar-nos numa total transparência e nudez. (…) MEC mete medo, essa é que é essa».
Entretanto, como tinha de ir jantar, por causa da entrevista da noite, Miguel Esteves Cardoso abandonou a sessão, sob o olhar triste e aquoso de BVA. O que mereceu um comentário da moderadora, dirigido aos oradores (já o homenageado tinha saído): «Agora o Miguel já não está aqui, portanto, já não precisam de olhar para ele com medo». Aliviado, com o suor a cobrir-lhe o rosto, o lenhador concordou: «Agora já estamos à vontade…».
Para encerrar a mesa, BVA declamou, com voz eclesiástica, um texto de MEC. Depois, pôs-se de pé. Ergueu-se e começou a distribuir cumprimentos, apertos de mão à esquerda e à direita. Atravessou a empolgada multidão, cada vez mais densa, que se tinha levantado, e afastou-se da sala. Desapareceu. Retomou o caminho de casa.
No dia seguinte, BVA acordou, foi urinar, bebeu um gole de água da torneira, barbeou-se, tomou um duche, vestiu-se, comeu o pequeno-almoço, lavou os dentes. Levantando a cabeça, deparou-se consigo próprio no espelho. Pensou: «Uma boa noite de sono faz maravilhas. Quando se dorme bem, acorda-se outra pessoa. Até pareço outro Bruno!».
Este novo Bruno – um Bruno mais independente, mais crítico, mais atento às particularidades (ou misérias) do nosso meio cultural, um Bruno, enfim, mais crescidinho, mais homenzinho – foi ouvir a minha entrevista de sábado à noite a Miguel Esteves Cardoso.
No final, teve uma ideia luminosa para um artigo do Observador: «Vou disfarçar-me de alguém que nunca esteve na homenagem ao MEC!».
Pôs uma máscara para disfarçar o rosto e pegou num papel e numa caneta. Anotou a primeira frase.
A frase é esta: «(…) está em curso um processo secular de canonização do cronista ou, o que seria dramático e, presume-se, traumático, um processo de bovino-sacralização, aquele processo através do qual uma alta figura da cultura nacional se transforma numa vaca sagrada, intocável e consensualmente elogiada» (Observador, 29/10/2023).
Aquilo que antes parecia fascínio intelectual, admiração genuína, era agora um «processo de bovino-sacralização».
A Causa das Coisas é um dos dez maiores livros da língua portuguesa? Isso foi no dia anterior. Isso foi um exagero e os exageros costumam trazer remorsos.
Na véspera, para participar no ballet, BVA pôs o maillot, os collants e as sapatilhas. No domingo, antecipando o Halloween, vestiu a t-shirt dos Black Sabbath.
Segundo ele, o MEC de hoje já não possui o «pensamento ágil», nem o «humor explosivo» nem as «palavras certeiras» do MEC de antigamente.
O MEC das crónicas do Público «já não dá aquelas punhaladas ternurentas, tão duras que quase nos matavam». Agora, mais moderado e mais comedido, o antigo autor d’A Causa das Coisas «convida-nos para um chá de tília», «observa, divertido, a nossa boquinha afectada a sorver cada golo como quem saboreia frases inanes de autoajuda».
Isto apesar de, no dia anterior, BVA ter reconhecido que aquelas crónicas bucólicas e contemplativas do Público lhe pareciam ajustadas à idade do homenageado. Porque «se o Miguel agora estivesse a escrever esse tipo de crónicas pareceria um daqueles velhos que vestem calções de licra e vão andar por aí de bicicleta».
Só durante a minha entrevista, segundo BVA, é que o entrevistado deu «uma prova de vida». Só ali é que o «duende traquinas» que escreveu A Causa das Coisas se deixou vislumbrar.
Temos assim dois Brunos completamente diferentes. O de sábado e o de domingo. De um lado, o Bruno Nestum com Figos que falou com «a gratidão devota de uma irmã das Carmelitas Descalças». Do outro lado, o Bruno do Observador que tenta convencer-nos que é diferente dos restantes que estiveram na homenagem, que é um crítico independente, senhor de si e do seu nariz, que não vai em cantigas nem se deixa levar por consagrações em vida, frívolos êxtases colectivos.
Como se BVA, dirigindo-se aos leitores do jornal, dissesse: «Estão a ver como é que são as pessoas que foram homenagear o Miguel Esteves Cardoso? Nós não somos assim».
Numa questão de horas, o autor de Manobras de Guerrilhas passava de integrado a apocalíptico. De adaptado a marginal, a rebelde que goza com os domesticados.
Em Penafiel, um Bruno venerador e dócil. No Observador, um Bruno cáustico e irreverente. Num dia a homenagem, no outro a autópsia.
Diante de Miguel Esteves Cardoso, era todo «gratidão devota». Em casa, quando já não havia risco de estilhaços, satiriza, arremessa sarcasmos, torna-se num demolidor implacável.
BVA escreveu um belo texto no Observador. A prosa é impecável e o ritmo é rápido e límpido. Tem verve. Por isso mesmo, mete-me ainda mais pena que seja tão enganador – para com os leitores e, sobretudo, para consigo próprio.
Uma pessoa pode mudar radicalmente de opinião, mesmo de um dia para o outro. O que não fica bem, nada bem, é querer ser duas coisas ao mesmo tempo: num dia, participar numa homenagem, excedendo-se nos elogios; no outro, falar de «bovino-sacralização», tirando o corpo fora, como se não tivesse estado nos festejos de Penafiel, onde participou com os maiores louvores, aliás justíssimos.
O estranho, por isso, não é mudar de opinião. É não ter a coragem de assumi-lo – e a honestidade de dizer que se mudou.