Quem semeia ventos…

Ao passar pela Avenida da República vejo um sem número de corpos jazidos em caixas de cartão…

Dia de Todos os Santos. Um de novembro de 2023. Saio de casa para celebrar as missas nas paróquias que me estão confiadas. Ao passar pela Avenida da República vejo um sem número de corpos jazidos em caixas de cartão. Estarão vivos? Estarão mortos? Não se mexem!

Entro no carro para seguir caminho e lembro a imagem que me têm ficado na memória nas noites anteriores. Ao descer a Avenida Almirante Reis, deparo-me com um sem número de tendas nas arcadas dos prédios. São muitos os que ali vivem… 

Lembro-me que há cerca de uns dez anos acompanhei as equipas que, em colaboração com a Santa Casa, faziam o levantamento dos Sem Abrigo. Depois, houve um Presidente da República que deu um prazo para acabar com esta realidade. Nada!

Vêm-me à memória as relações que fui estabelecendo com as pessoas que aqui vivem no centro da cidade de Lisboa. Tantos Sem Abrigo, perdidos. Não consegui ajudar nenhum… apenas entrelaçar uma relação de amizade e de escuta. O António (nome falso) viveu oito anos à porta do Estacionamento do Chão do Loureiro. Sentámo-nos muitas vezes. Conversámos várias… almoçámos outras. Morreu! Depois do funeral entregaram-me as cinzas que ficaram durante dois meses ao lado de um dos altares da Igreja até que tratasse da burocracia. Pedi à Câmara Municipal de Lisboa que isentasse de taxas para colocar o corpo reduzido a cinzas, junto de muitos outros, do Cemitério do Alto de São João – deixaram meter lá as cinzas, mas negaram o pedido de isenção. Paguei as taxas do meu bolso!

André (outro nome falso), ao fim de vários meses, acede ao convite para entrar numa comunidade terapêutica para recuperar da droga. Ando com ele às voltas para fazer os exames e análises necessárias e marcaram-me o dia para entrar na comunidade. Ele diz-me onde vive: numa casa ocupada com mais dois Sem Abrigo – cada qual com o seu quarto. Não dormia na rua. Tinha o seu quarto, com um pequeno colchão no chão e uma pequena mala com as suas roupas. 

Com ele estava também a Andreia (nome fictício). Vivia num outro quarto. Várias vezes tinha falado com ela junto da rua onde várias mulheres procuram clientes para o negócio do sexo. À noite, a Andreia encontra-me na rua e pergunta-me como estava o André. Convido-a também a entrar na comunidade terapêutica. Ofereci-lhe a minha ajuda! Ela, no entanto, diz-me: «Padre, olhe bem para mim! Imagine que eu entre na comunidade terapêutica! Onde é que acha que eu irei dormir?». Pois… não tinha pensado… ela, afinal, era um homem… que se prostitui como mulher… baixo a cabeça e digo-lhe: «Não te preocupes, arranjamos uma solução para te sentires bem!».

Dizia, no início desta crónica, que tudo isto me veio à cabeça no Dia de Todos os Santos, porque, entretanto, vejo umas seis pessoas num Parque da Mouraria. No chão estava o corpo inerte de um gato. Estavam ao telemóvel. No final da missa, pergunto: «Estava morto?». Responde-me: «Não! Estávamos a chamar uma associação para o vir buscar, porque foi atacado por um cão!». 

Este será o futuro! Quem semeia ventos, irá, seguramente, colher tempestades!

Não acredito que seja bom deixar sofrer um gato, desgastado das lutas animalescas desses brutos que são os cães. É, no entanto, um ato de grande heroísmo… Mas…