Espanha. Um país mais do que dividido

Num clima de incerteza, vivem-se dias decisivos, de embate entre poderes e anomalia democrática. A crispação aumenta e reavivam-se memórias da guerra civil. A política, nos próximos dias, far-se-á nas ruas.

O acordo  de Sánchez com Puigdemont abre caminho para uma investidura em clima de tensão e violência política.  Havia poucas razões para comemorar na Cimeira dos Socialistas Europeus depois de dias difíceis para o socialismo ibérico. Mas, com a pressão nas ruas a aumentar, PSOE e Junts ultrapassaram o impasse e, nove anos depois do referendo ilegal, anunciaram o acordo que abre uma via rápida para a investidura de Sánchez e para a independência da Catalunha. 

Para Espanha são dias decisivos, de embate entre poderes e anomalia democrática. Sánchez negociou com os sócios à esquerda, e com os independentistas bascos, galegos e catalães. Na semana passada Oriol Junqueras, da Esquerda Republicana Catalã (ERC), conseguiu um perdão de 20 por cento da dívida da Catalunha, valor que supera a soma das dívidas das Astúrias, Castela-Mancha e Estremadura. 

O mais difícil ficou para o fim. Em Bruxelas, prosseguiam as negociações com o Junts para ultimar “questões técnicas”. Mas os obstáculos eram de fundo.  No acordo firmado entre Junts e PSOE os independentistas foram ambiciosos nas exigências e os socialistas generosos nas cedências. O PSOE absteve-se da renúncia à unilateralidade, admitiu debater o referendo e, no âmbito da amnistia, inclui-se o conceito de lawfare (processos judiciais alegadamente motivados por razões políticas), estabelecendo-se que a lei «deve incluir tanto os responsáveis políticos como os cidadãos que, antes e depois da consulta de 2014 e do referendo de 2014, foram objeto de decisões ou processos judiciais vinculados a estes eventos.» 

Apesar do anúncio, os tribunais, a UE e a rua são pedras no sapato de Pedro Sánchez, num momento de tensão política e social. Na quinta-feira, o ex-líder do PP na Catalunha e fundador do VOX, Alejo Vidal-Quadras, foi baleado à saída da missa. Fontes policiais falam numa “ação planeada”. Santiago Abascal, líder do VOX, afirmou que “(…) começou um golpe contra a Nação. Iniciamos a resistência civil”. A crispação aumenta e reavivam-se memórias da guerra civil, precipitada pelo assassinato do conservador José Calvo Sotelo, líder da oposição.

O tempo da justiça 

É uma frase recorrente a que diz que o tempo da justiça é um, e o da política é outro. Mas estes tempos, às vezes, atropelam-se. 

Na frente judicial aumentavam as reservas relativamente à amnistia, que poderá levar à anulação de sentenças e ao encerramento de todas as investigações em curso no âmbito do Procés, incluindo casos de corrupção. 

Com nove votos a favor e cinco contra, o Conselho Geral do Poder Judicial (CGPJ) aprovou uma declaração de condenação da amnistia, considerando incompatível com o Estado de direito que “responsáveis políticos fiquem isentos de responder pelos seus delitos perante os tribunais (…) para que um aspirante a Presidente do Governo possa conseguir o benefício pessoal e político de impedir o governo de outras forças políticas ou, dito de outra forma, de manter-se no Governo.” O que supõe, segundo o CGPJ, “degradar e converter o Estado de direito numa moeda de negociação ao serviço do interesse pessoal”. 

Na quarta-feira a Comissão Europeia pediu “informações detalhadas” sobre a lei de amnistia, alegando que “gera preocupações”, através de uma carta enviada pelo Comissário Europeu para a Justiça, Didier Reynders, aos Ministros da Presidência e da Justiça onde pedia explicações sobre “o alcance pessoal, material e temporal” da norma que estava a ser negociada. 

Depois de conhecidos os termos do acordo, as quatro associações de juízes espanholas emitiram um comunicado alertando que o pacto poderia pôr em causa a separação dos poderes e “quebrar” o Estado de Direito. 

Quando a rua fala 

A política espanhola também se faz nas ruas, como em 2011, quando a nova esquerda progressista se forjou no Movimiento 15-M. Agora é a direita, onde se concentra a oposição à amnistia, a protagonista. 

E à medida que avançavam as negociações, aumentou a mobilização. Em Madrid, junto à sede do PSOE na calle Ferraz, os acontecimentos precipitaram-se na quarta noite de protestos. Depois de alguns manifestantes tentarem romper a barreira policial, foram dispersos pela polícia, com gás lacrimogéneo. Houve feridos ligeiros, detidos, e um cenário de batalha campal. Fontes policiais falavam numa “maré humana incontrolável”. 

Depois dos confrontos, Pedro Sánchez manifestou-se solidário com “a militância socialista que está a sofrer o assédio dos reacionários às casas do povo.” 

No dia seguinte, à concentração de milhares de pessoas junto à sede do PSOE juntou-se outra manifestação que ocupou a Gran Via, seguindo em direção ao Congresso. Mais confrontos entre polícia e manifestantes, alguns enquadrados em grupos de ultradireita. 

O PP não se associou aos protestos, mas anunciou manifestações em 52 cidades no próximo domingo. Feijóo, depois de anunciado o acordo, pediu uma “resposta firme e serena nas ruas”.  

Vencedores, derrotados e uma Espanha partida ao meio

Os anúncios da morte política de Pedro Sánchez foram, em retrospetiva, manifestamente exagerados. Mas num clima de crispação e incerteza, o custo político das negociações, para o PSOE e para Sánchez, aumentava a cada dia. 

O anúncio do acordo foi uma espécie de clímax num longo processo de anomalia democrática criticado também por socialistas como Filipe González ou Alfonso Guerra que, em entrevista ao ABC, afirmou que “a esquerda perdeu o norte”, sublinhando que “os fins não justificam os meios”.

Esta é mais uma vitória política de Pedro Sánchez, e uma vitória pessoal para Puigdemont e todos os que irão beneficiar da amnistia. E é uma derrota para o líder dos populares que beneficiaria da repetição de eleições. 

Sendo quase certa a investidura, os próximos tempos serão de instabilidade. A maioria é extremamente frágil e Puigdemont avisou Sánchez de que “terá de ganhar a estabilidade dia a dia”. Sobre Puigdemont, de quem dependerá a estabilidade do Governo que irá chefiar, Sánchez disse durante a campanha: “Não é mais do que uma anedota cuja palavra vale o que vale a sua declaração de independência, é um papel molhado.” 

É um novo capítulo que se abre numa Espanha que vive tempos de profunda incerteza, divisão e deterioração das instituições. E onde a política, nos próximos dias, se fará também nas ruas.