Elias Barreto. “Os sem-abrigo morrem bastante mais cedo do que a população normal”

O psicólogo acredita que só um trabalho com apoio médico e social poderá ajudar a resolver o problema dos sem-abrigo.

Licenciou-se em Psicologia, em 1993, e obteve o Mestrado em Psicologia Legal em 2002, com a tese “Vinculação e Relações de objecto dos sem-abrigo – um estudo exploratório”. Trabalhou desde 1994 a 2003 na Santa Casa da Misericórdia de Lisboa com a população sem-abrigo, com vários trabalhos publicados nesta área. Trabalhou ainda entre 2003 e 2008 no Hospital Miguel Bombarda e está desde 2009 no Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa, onde se mantém ligado ao apoio a pessoas sem-abrigo com problemas de saúde mental no âmbito das suas atividades na consulta e no internamento.

É psicólogo e trabalhou com os sem-abrigo.
Como começou?

Sou psicólogo clínico e comecei a trabalhar em 1994 na Santa Casa da Misericórdia, num projeto para os sem-abrigo. Foi aí que iniciei o trabalho com António Bento, psiquiatra, e com Teresa Pires, assistente social, em que fomos para a rua. Na altura, era inédito haver técnicos na rua para ir ao encontro dos sem-abrigo. A razão que nos moveu foi perceber que alguns não se dirigiam aos serviços.

Não se dirigiam aos serviços do Hospital Júlio de Matos?

Sim, nem aos serviços sociais. Os casos mais graves normalmente acabam por ter uma relação com os serviços um pouco já distante. Não quer dizer que no passado não tenham ido aos serviços sociais tentar falar com uma assistente social ou vindo aqui ao hospital, mas o que percebemos é que alguns já estavam há muito sem um contacto e sem uma ligação institucional.

Nessa altura, qual era o tipo de sem-abrigo?

Fomos descobrir porque não estava nada tipificado. Andei cerca de dez anos na rua e foi esse trabalho que nos foi ajudando a tentar perceber quem eram essas pessoas. Não havia propriamente um perfil estabelecido. Uma das perguntas que muitas vezes é feita é saber se estamos agora perante um novo perfil. Em 1994, quando começámos a trabalhar, já se falava de um novo perfil. Desafio-os a fazer uma pesquisa sobre as reportagens dos anos 90 e vão ver que é com muita frequência que aparece esta ideia de novo perfil. Tendo a pensar que há um desejo de wishful thinking de que os sem-abrigo de agora sejam diferentes dos de outrora. Há sempre esta ideia de que há um novo perfil associado à ideia de que está a ocorrer uma crise nova. Como já tenho um espetro de quase 30 anos tenho a experiência que estamos sempre perante uma crise. Nos anos 70 era a crise do petróleo, nos 90 era a crise do trabalho e agora estamos perante uma crise de habitação e financeira. Estamos sempre perante uma crise, além das pandemias e das guerras. Nos anos 90 havia uma crise de trabalho e havia a ideia de que os sem-abrigo teriam um novo perfil porque seriam pessoas que não conseguiam encontrar trabalho. Por acaso, essa foi uma época onde houve uma grande aposta na formação profissional e achava-se que se calhar o que estaria por detrás seria um problema de trabalho, daí ter havido essa grande aposta na formação profissional. Participei em alguns desses projetos na Santa Casa da Misericórdia e percebemos que a solução não era assim tão simples, não bastava dar formação profissional para os problemas se solucionarem. Havia problemas mais enraizados e mais complexos, obviamente que a formação profissional era importante. Agora, às vezes, há um discurso equivalente de dizer que o problema é o de habitação e se o resolvermos deixa de haver sem-abrigo. A coisa pode ser um bocadinho mais complexa e a verdade é que os sem-abrigo que estão nas ruas estão há cinco, dez, 15, 20, 30 anos. Afinal não são assim tão novos, são casos persistentes e que vamos vendo ao longo de muitos anos.

Diz que há casos de pessoas que estão dez, 20, 30 anos na rua. Por que estão? Já percebemos que não será só por uma questão de ter ou não casa, ter ou não ter formação. Isto é, estão na rua porque têm problemas psiquiátricos?

Uma das coisas que este trabalho de rua permitiu foi verificar que havia uma percentagem grande de pessoas com problemas psiquiátricos, com problemas de adições, com problemas de álcool, drogas, perturbações psiquiátricas graves. E gostaria de dizer que reduzir o problema do desemprego a isto é muito redutor. Se quiser, usando a metáfora de uma árvore, isto são as folhas e os ramos. A raiz e o tronco é outra coisa.

Distancia-se do seu colega António Bento que dizia que era muito difícil encontrar um sem-abrigo pobre?

Não, ele tem a maneira dele e eu vou dizer a minha. A minha é que os sem-abrigo são o resultado final de um processo que começa, às vezes, muito lá atrás e de uma forma muito precoce. Isto é um assunto que estudei enquanto psicólogo e é aquilo em que acredito. Quando escutamos as histórias das pessoas sem-abrigo vemos que as coisas começaram a correr menos bem, ou mesmo muito mal, muito cedo. Estamos a falar de pessoas que muitas vezes não foram criadas pela família, foram criadas em instituições ou em famílias de acolhimento ou quando foram criadas em famílias descrevem vivências familiares complicadas, com situações de violência, de abuso, que fazem com que muitas vezes fujam de casa ainda em crianças ou muito cedo. As histórias dos sem-abrigo são sempre difíceis, problemáticas e não são muito lineares. E há estudos que mostram isso. Por exemplo, se comparamos a história e os percursos de vida das pessoas sem-abrigo com os percursos de vida de pessoas não sem-abrigo vemos que nos sem-abrigo os problemas começaram logo na infância e na família. Também na vida adulta apresentam normalmente percursos complicados e até traumatizados. A estas pessoas acontece tudo, não perdem só a casa, nem perdem só o emprego. Têm problemas de saúde, são agredidas, são violadas, são não sei o quê. Um sem-abrigo não se fabrica de um dia para o outro. É um processo complexo, onde se vão entrecruzando muitas coisas.

Aquelas histórias que vão surgindo de pessoas que passam, por exemplo, por um processo de divórcio, depois ficam sem emprego, depois perdem a casa são casos pontuais?

Acho que não podemos ignorar o contexto. É evidente que quando o contexto é mau, as coisas más podem acontecer, quer dizer, se de um momento para o outro perde o emprego, perde a casa, se fica sozinho, as coisas podem acontecer.

Mas é uma minoria?

O que me parece é que quando a pessoa tem dentro de si recursos também consegue reverter essa situação mais facilmente e mais rapidamente. Muitas das pessoas que perdem o emprego ou a família nunca chegam a ir viver para a rua porque vão aos serviços sociais. E estes, de uma maneira geral e quando as coisas correm normalmente, dão resposta e alguns não chegam à rua ou quando chegam também saem rapidamente quando se ativam as ajudas que a sociedade ainda dispõe. O que digo é que coisas más podem acontecer a qualquer pessoa, mas se não estiver muito fragilizada também consegue normalmente sair dessa situação.

Acha que algum dia se poderá resolver o problema dos sem-abrigo sem se apostar na psiquiatria, na psicologia, isto é, de tentar resolver os problemas que essas pessoas têm? Podemos dizer que vamos dar uma casa a cada pessoa, mas será que depois conseguem viver lá com os problemas que têm?

Acho que podemos apostar em dar a casa, mas não pode ser só. Precisam de ser acompanhadas e apoiadas. Acredito que precisam de uma intervenção de proximidade de pessoas com preparação técnica para ir ao seu encontro e depois para criar uma relação minimamente próxima para que consigam construir alguma coisa a partir daí. Não acredito muito em intervenções burocráticas do ‘toma lá um cheque ou toma lá uma chave’. Se essas pessoas continuarem sozinhas e desacompanhadas não prevejo grande futuro. Acho que as pessoas precisam de casa, precisam de apoio económico e precisam de ser acompanhadas, mas acompanhadas por equipas que tenham essa disponibilidade para as acompanhar. Por exemplo, os serviços técnicos sociais têm centenas ou milhares de casos para lidar, não têm disponibilidade para acompanhar essas pessoas. Portanto, não basta atribuir um subsídio, é preciso, além do subsídio, pessoas que possam ir acompanhando os sem-abrigo nas suas dificuldades, porque se há coisas que para nós são óbvias, como, por exemplo, ir a uma consulta ou ir tratar do bilhete de identidade, para elas pode ser uma enorme dificuldade e sozinhas não conseguem. Isto não é uma questão dicotómica. Precisam disto tudo, mas também precisam de um grande acompanhamento. Uma outra ideia que as pessoas muitas vezes têm é que os sem-abrigo é um problema dos imigrantes, das pessoas de fora. E a minha experiência, e não é só a minha, mas pelos estudos que conheço, é que isso não é verdade. Os sem-abrigo são de dentro, normalmente são do nosso país e até da nossa cidade. Neste trabalho de rua que fizemos em conjunto descobrimos que 90% eram portugueses.

O estudo foi realizado quando?

Foi realizado num espaço de dez anos e vai até 2003, 2004. Na altura, tínhamos os PALOP, por exemplo, depois a seguir tivemos os de Leste e agora temos os do Bangladesh. Estamos sempre a receber sucessivas vagas de imigrantes e é natural que alguns deles vão parar à rua. Mas não é de todo a minha experiência que sejam a maioria.

No estudo que fizeram em 2001, penso que também tenha participado, chegaram à conclusão de que 56 ou 57% eram pessoas que tinham problemas com álcool, 20% psicoses, depois as drogas e as perturbações de personalidade e que só 10% sem qualquer tipo de patologia. Isto é um quadro que se mantém ao longo dos anos?

Mais coisa menos coisa. Mas acredito que se mantenha, porque foi aquilo que encontrámos em Lisboa. Temos uma relação com vários colegas de vários países – pertencemos a uma associação que já existe há 30 anos e que reúne colegas que trabalham nestas áreas da saúde mental e da exclusão social – e o que verificámos é que em Londres, em Copenhaga, em Madrid e em Barcelona, de uma maneira geral, têm percentagens parecidas com essas. É quase uma invariante neste estudo.

Viver na rua é uma opção?

Às vezes, vê-se alguém na rua e pensa-se que não se faz nada. Isso não é muito justo, porque muitas vezes, depois vamos perceber e há imensa gente a tentar fazer coisas. Também não é justo dizer que estão na rua porque querem. Normalmente é um discurso pendular, em que o pêndulo anda ora para um lado, ora para outro. Isto é, ou dizem que as instituições não fazem nada ou então é contra eles, que são uns malandros e querem esta vida. Nem uma coisa nem outra são verdade. O que verificámos é que estas pessoas quando encontram respostas que são adequadas agarram-nas e saem da rua. Conheço muitos exemplos felizes de pessoas muito complicadas, em que ninguém tinha esperança que se fizesse alguma coisa, mas quando encontraram uma resposta adequada fizeram uma evolução.

E o que é a resposta adequada? É o tal acompanhamento?

Acompanhamento médico, social e também que possam encontrar um lugar para reconstituírem uma vida social, que pode passar por ter um trabalho ou não. Muitos, às vezes, já têm uma idade que não dá para trabalhar, mas ainda assim podem ter uma maior integração, sentirem-se mais integrados na comunidade onde vivem. E quando conseguimos, as pessoas evoluem. Outra coisa também muito importante é o facto de haver sempre relações pessoais que fazem a diferença. Houve um técnico, houve um amigo, houve alguém que fez um investimento e isso foi importante, foi uma alavanca para outras coisas. Por exemplo, no hospital temos um grupo terapêutico fundado por António Bento, semelhante ao grupo que tínhamos feito na Santa Casa da Misericórdia, e é uma resposta importante para as pessoas sem-abrigo. Verificámos isso na Santa Casa da Misericórdia quando criámos um grupo terapêutico: muitos sem-abrigo andavam a pé quilómetros e quilómetros só para ir àquele espaço, em que estávamos uma hora em grupo, mas que era extremamente importante para eles. Normalmente, durante a semana, não falavam com ninguém, sentiam que as pessoas passavam por eles e que os ignoravam e de repente têm um grupo onde são reconhecidos, onde sentem que pertencem de alguma maneira ali. Isto é uma coisa muito simples, mas que tem uma importância enorme. E quando as pessoas começam a frequentar um grupo destes vão fazendo evoluções surpreendentes. Não tenho nenhuma ideia fatalista de que não se pode fazer nada. É preciso uma intervenção sensível, gradual. Não acredito em intervenções bombásticas e drásticas que chegam ali e ‘agora vamos resolver isto’. É um processo.

É uma estupidez pensar que podemos dar uma casa e que o problema fica resolvido?

Não queria dizer que é uma estupidez porque também tenho observado que para algumas pessoas sem-abrigo o facto de terem tido acesso a uma casa foi uma coisa muito importante. Mas acho que não foi só a casa, foi a casa associada a um acompanhamento que também passaram a ter. E se calhar antes não tinham.

Veem isso como uma mudança de vida?

Uma casa é uma coisa que pode fazer a diferença, mas só por si não.

Há um relatório da Federação Europeia das Organizações Nacionais que trabalham os sem-abrigo e diz que Portugal ocupa o sexto lugar do ranking

O que posso dizer é que quando comecei a trabalhar e a conviver com pessoas de outros países rapidamente percebi que nos chamados países desenvolvidos também havia sem-abrigo e tantos como cá. Lembro-me que quando fui a Copenhaga, pela primeira vez, comparámos os números dos sem-abrigo e em Lisboa os números eram idênticos aos que existiam em Copenhaga, e estamos a falar de um país que tem mais apoios sociais. As pessoas lá têm mais pensões, o que daria para viverem bem.

Em relação ao perfil. A ideia que temos é que há mais homens do que mulheres, mais velhas do que novas….

Da minha experiência é isso que está a descrever: encontrámos sempre uma percentagem muito maior de homens, entre 80 a 90%, e o restante mulheres. As mulheres que vão parar à rua são casos normalmente complicados. E uma das hipóteses para isso é que as mulheres de uma maneira geral também conseguem solicitar mais rapidamente ajuda. Uma mulher na rua com filhos tem logo uma maior mobilização de pessoas. E depois, se calhar, algumas destas mulheres não vão parar a rua, mas vão parar à prostituição. Mas as que permanecem nas ruas, de uma maneira geral, são casos complicados, em que todas estas almofadas sociais falharam e por isso não são casos simples de tirar da rua. Obviamente que não é para deixar ficar na rua. Só estou a alertar que são casos complexos, em que é preciso entender bem o que é que se passa. Mas são normalmente mais homens do que mulheres. Eram pessoas já na chamada meia idade, entre os 35 e os 60 anos, essa era a maioria, mas obviamente também há jovens. Quando comecei a trabalhar até havia uma instituição para os meninos de rua, com certeza que ainda existem crianças de rua, mas talvez não tanto como naquela altura. Mas há jovens e há um grupo particularmente vulnerável, que são aqueles que cresceram em instituições, depois chegam aos 18 anos e saem da instituição, muitas vezes, sem apoio ou muito desorientados. Esses jovens são particularmente vulneráveis a irem parar à rua e depois a permanecerem na rua. A questão dos idosos também existe, mas a partir de certa altura, é mais fácil serem encaminhados para lares, etc. Mas há um fenómeno entre os sem-abrigo que também vale a pena assinalar. É que os sem-abrigo parecem muito mais envelhecidos do que são de maneira geral. É muito fácil olharmos para um sem-abrigo com vários anos de rua e darmos-lhes mais 20 anos, por exemplo. E depois há uma grande mortalidade. Não sei a percentagem, mas morrem bastante mais cedo do que a população normal. Esta ideia que as pessoas, às vezes, têm que a vida de rua é uma espécie de vida romântica, com liberdade e que devem ter uma vida muito melhor do que a nossa, que temos de trabalhar todos os dias e de pagar impostos, enquanto eles têm uma vida livre é uma ilusão.

Essa ideia era mais para os franceses nos anos 70…

Sim, dos clochards. Mas isto para dizer que é uma vida que não é nada fácil.

Como é a vida de um sem-abrigo? Há violações, agressões, roubos? São vítimas do quê?

Há tudo isso. Estar na rua é estar desprotegido.

Mas são violados por outros sem-abrigo ou por outras pessoas?

Há várias situações. Há situações dramáticas, por exemplo, de jovens bêbados que agridem. Há situações em que lhes tentaram pegar fogo. Os estudos também reportam que entre as mulheres sem-abrigo há uma percentagem grande de violações. Não dizem quem foi, mas posso garantir que há violações, há agressões, há roubos. Muitas vezes dentro deles, mas também fora deles. Por isso é que os sem-abrigo, muitas vezes, procuram lugares públicos porque se sentem talvez mais protegidos. É muito frequente procurarem lugares perto de esquadras da polícia. Se repararem, em Lisboa, por exemplo, ao pé de uma esquadra há sempre um grupo de sem-abrigo. Também procuram estações, ruas muito movimentadas, onde há sempre carros toda a noite e há luzes. É uma coisa um bocado contraintuitiva, nós imaginaríamos que se escondessem em lugares que ninguém os vê. Mas não, procuram lugares de passagem, onde passam pessoas porque são lugares talvez mais seguros e onde estão sempre em contacto com pessoas.

E como é que vê, por exemplo, na Almirante Reis, na altura da JMJ terem sido retirados para dar uma ideia de limpeza da cidade?

Quando foi a Expo aconteceu também isso. Quando estava na rua tínhamos uma perspetiva de trabalho com estas pessoas, não era tirá-las dali custasse o que custasse. O nosso objetivo era conhecer estas pessoas, convidávamo-los a irem falar connosco em São Bento, que era a sede do nosso trabalho – na Santa Casa da Misericórdia, não era o Parlamento, embora fosse um edifício mesmo em frente – depois ali tentávamos perceber melhor a situação. Mas trabalhávamos sempre numa base colaborativa e não de forçar ou de pressionar as pessoas. Os municípios têm uma outra preocupação, querem limpar as ruas, estão preocupados com as queixas dos munícipes e com a apresentação da cidade.

O aumento da toxicodependência poderá ter contribuído para a subida dos sem-abrigo?

Não sei responder. Obviamente que o aumento do número de toxicodependentes poderá ter contribuído para o aumento do número de sem-abrigo. Mas também acho que haverá outras coisas a contribuir. A minha experiência diz-me que quando entramos na questão dos números de quantos são, se são mais ou menos é entrar num pântano. Para já, para saber quantos são é preciso primeiro definirmos muito bem o que é que é um sem-abrigo, quem é que vamos incluir. Incluímos só os que estão na rua ou incluímos os que estão nos albergues ou incluímos os que estão em quartos alugados apoiados pelos serviços sociais? E depois como é que os contabilizamos? Quando se fala dos números dos sem-abrigo no país é preciso lembrar que há dez anos havia municípios que nunca tinham contabilizado e agora passaram a contabilizar. Portanto, há muitas variáveis que podem confundir esta questão. E Lisboa também é uma cidade com uma grande afluência de pessoas, onde pessoas vêm de outros lugares do país e acabam todos cá. A questão dos números é quase como um balde que tem um buraco cá em baixo, enche por aqui e sai por ali. Em Lisboa é um bocado assim, podemos oferecer respostas, mas depois estão sempre a chegar outros e outros. É uma questão muito complexa.

Não sente que existam mais pessoas a dormir na rua?

De momento não tenho condições para responder a isso.

É um problema maior nas grandes cidades do que, por exemplo, em relação ao interior?

É um problema que se vê mais nas grandes cidades. Mas, às vezes, existem também em ambientes rurais, só que estão escondidos. Tive a oportunidade de ir a uma aldeia no Ribatejo há uns anos para falar sobre os sem-abrigo e quando comecei a falar começaram a identificar: ‘Temos um senhor que vive numa casa da avó quase abandonada. Está quase a cair’. Às vezes nos ambientes rurais encontram-se pessoas semelhantes só que algumas têm uma barraquita, outras têm, apesar de tudo, uma comunidade que lhes vai dando algum apoio.

E como vê estes fenómenos de pessoas viveram em tendas?

É possível que, isso sim, seja um fenómeno novo. Não sei a sua situação concreta, mas quando oiço notícias de pessoas que até têm trabalho e estão a viver em tendas ou a viver em rulotes é fácil aí atribuir a questão da habitação. Sabemos que é caríssimo e estamos a falar de pessoas que têm um trabalho, que são professores, que até é um trabalho diferenciado e não têm onde viver. Não sei se estas pessoas que vivem nestas situações precárias entram dentro deste perfil de sem-abrigo que temos estado a falar. Acredito e espero que tendo trabalho e capacidade de trabalhar consigam sair desta situação rapidamente. Mas acredito que algumas serão uma situação temporária, outras se calhar já não é assim tão temporária como isso.

A estratégia para os sem-abrigo que foi definida para 2017/2023 está concluída?

Penso…

Já percebemos que não que não gosta de entrar nas questões políticas…

Não é não gostar, não tenho paciência. Quando veio a pandemia surgiu este objetivo muito ambicioso de erradicar os sem-abrigo, mas quem trabalha nestas áreas não deu muito crédito porque não vemos isso acontecer em lado nenhum. Por exemplo, Tony Blair há uns anos também teve este discurso da tolerância zero aos sem-abrigo e não acabou coisíssima nenhuma. Isto pareceu mais uma repetição.

Nunca se irá acabar com os sem-abrigo?

Espero que trabalhemos todos para isso e espero que um dia possamos dizer ‘este fenómeno é residual’, ou até mesmo que acabe. Não acho que seja uma coisa assim tão simples de dizer: ‘Em três anos vamos acabar’, pelo menos, até agora ninguém acabou.

Há pouco falou da pandemia. Esse trabalho de acompanhamento foi mais dificultado?

Tudo foi mais dificultado. Mas aí o município fez um esforço grande de criar respostas para estas pessoas e tentou encontrar espaços, onde pudessem permanecer e ter apoio.

As experiências relatadas destes albergues não são muito positivas. Há muitos que preferem estar na rua do que estar nesses sítios, onde as mulheres podem ser violadas e normalmente são roubados…

Às vezes estamos a falar de albergues que vêm do século XIX ou dos tempos antes do 25 de Abril, em que havia uma preocupação de dar um teto, mas podiam viver dezenas no mesmo quarto. Quando há muitas pessoas juntas e muitas delas com muitos problemas, às vezes, não é muito seguro e há muitos sem-abrigo que preferem estar longe dos albergues do que terem de conviver com tantas pessoas ao mesmo tempo. Agora também me parece que tem havido um esforço e uma consciencialização de que a resposta não pode ser metê-los em albergues e em grandes números. Tem havido um investimento para dar uma resposta com uma dimensão mais humana, com menos pessoas, quase a aproximar-se dos ambientes de quarto, de casa. Mesmo alguns albergues, quer em Lisboa, quer pela Europa, têm estado a ser convertidos para dimensões mais humanas.

Quantos sem-abrigo é que estão ligados ao Júlio de Matos? Isto é, são doentes aqui, mas como não podem ficar cá, ficam na rua?

Não sei responder.

Mas há esta realidade ou não?

No nosso sistema não temos nenhuma categoria que diga sem-abrigo, por isso, é difícil de contabilizar. As pessoas ou estão internadas ou têm consulta. A minha experiência é que, às vezes, também há um mito dentro dos hospitais de que é melhor não receber um sem-abrigo porque senão nunca mais sai de cá. Fiz a contabilidade do número de dias de internamento dos sem-abrigo e dos não sem-abrigo e o número de dias de internamento dos sem-abrigo era menos do que os outros. O que significa que os sem-abrigo podem ser internados, podem ser tratados e não ficam cá a ocupar camas. Esta ideia de que ficam cá a ocupar camas faz com que, às vezes, haja uma resistência em receber estas pessoas. Os sem-abrigo, de uma maneira geral, quando aceitam o internamento depois querem sair daqui. Tenho muito medo desse discurso de que os sem-abrigo vão ocupar camas. É um problema, porque faz com que os serviços se defendam de receber estas pessoas.

Quando estávamos a falar das idades dos sem abrigo não percebi se há crianças sem abrigo com cinco ou sete anos como havia antigamente?

Atualmente tendo a dizer que não. Não tenho conhecimento direto dos números. Sei que o IAC, que é um instituto de apoio à criança, foi criado, na altura, para trabalhar com meninos de rua, porque eles existiam. E depois lembro-me de os ouvir dizer que o perfil tinha mudado. Muitos desses meninos, até tinham família e casa, mas o que se verificava é que não iam à escola e passavam o dia na rua. Podiam não dormir necessariamente na rua, mas passavam o dia na rua. E isso passou a ser o alvo de intervenção deles. Não é como antigamente, em que víamos os miúdos a dormir no Rossio.