O poeta e ensaísta morreu na passada quinta-feira, aos 77 anos, depois de se ter debatido longamente com uma doença incapacitante que, ainda que o prostrasse, não o impediu de marcar presença e sinalizar o seu empenho em manifestações e outros eventos, mesmo reduzido ao silêncio, como se, no limite, o seu corpo ainda se interpusesse impondo uma vírgula contra a dinâmica devastadora para a qual hoje nos vemos puxados.
O maior perigo de uma dada época pode bem ser um grau de indiferença em que mesmo a morte não possa trazer consigo qualquer revelação, impondo-se apenas como a coisa seguinte, aquilo que era esperado, vencendo a tentação íntima que há em cada homem de agarrar a este mundo. Se Rilke pedia a Deus que desse a cada um de nós a sua própria morte, hoje podemos antecipar um momento em que a morte venha a tornar-se um acontecimento banal. Talvez por os homens não estarem já empenhados em criar uma espécie de vertigem, de horizonte infinito, participando num diálogo interminável de espelhos. Não era certamente este o caso de Manuel Gusmão, poeta e ensaísta que teve um papel capital na definição desse regime de coralidade que absorve contrastes, ecos e rimas no sentido de suportar uma perspectiva conflituante e magnificente deste nosso tempo. Foi um homem a quem todos reconheciam uma fenomenal integridade e que morreu na passada quinta-feira, dia 9 de Novembro, aos 77 anos, depois de anos a debater-se com uma doença ferozmente incapacitante, tão ingrata por ter atingido precisamente essa estupenda vitalidade e empenho que sempre caracterizou o seu modo de estar junto de nós. “Os afectos são o modo cantabile como sais de ti/ uma impura conversa de fantasmas, seduzida pela matéria/ do mundo de que também são feitos os sonhos.// Não consentir que ao mundo imponham a ausência/ da palavra; porque o mundo em nós e fora de nós/ é o que nos faz falar segundo o desejo. (…) Não consentir no estreitamento daquilo a que chamam/ malevolamente o real; A alucinação: o método/ para um rigor impossível, equilibrar a imaginação.”
Com uma obra que se caracterizou por uma incessante intertextualidade, por uma abertura e uma extraordinária capacidade de admirar e se ligar aos que o precederam como à aventura de tantos dos seus contemporâneos, foi um autor cujo percurso se desenhou caminhando entre as mais desafiantes formas de pensamento, concebendo a sua passagem através de um momento tão tumultuoso e instigante da história que passava por aceitar os seus desafios. Num esforço em que a literatura era gémea da acção política, soube reforçar as suas convicções através da melodia abissal das grandes criações, detendo esse encanto memorioso e um alcance visionário que expandem o limite das nossas vidas. A adesão à vida e aos outros aguçou a capacidade auto-reflexiva da sua obra, fosse no empenho amoroso, na disponibilidade e no cuidado, fosse na forma como buscou sempre aquela intuição que rompe com as convenções e permite que as artes e os diferentes modos do discurso se iluminem entre si. S sem abdicar de uma leitura comprometida da história, foi intransigente na defesa do materialismo que orientava a sua leitura do mundo, procurando sempre contrariar todos esses aparelhos que, nos nossos dias, se “limitam a comunicar o que já faz parte de um consenso manipulado”. Um certo pragmatismo ou realismo degradantes, que rebaixam os homens e a sua possibilidade de se libertarem em direcção ao futuro para o qual estão voltados intimamente, como para um amanhecer revelador. “Não é o sagrado. É o fragmento de uma paisagem terrestre./ Há na música o modo da utopia se reconhecer: é que// é aqui e agora.”
A escrita sempre foi um modo de organizar o desejo, de deixar um registo, um mapa não só das zonas desafiadas e, de algum modo, misturadas à experiência de si próprio, mas também um modo de se manter atento ao que está em falta, àquilo que nos aguarda e já provoca um estremecimento no espírito. Mapas onde cada linha é traçada cheia do assombro do que nos foi prometido. Escrever é assim um modo de “prefixar a origem ao frondoso verde –/ mondar, podar, vir em favor da pedra;/ transpor no tempo, emendar o tempo com/ o tempo”. É também um modo essencial de tomar balanço, forjar alternativas, e estudar “outra hipótese prosódica para a pronúncia do mundo”. Abrir poços nas zonas realmente profundas da experiência humana, “onde o petróleo azul/ e altíssimo devora as estrelas”. E elaborar a partir do esforço de muitos, “quantos a meterem dentro/ com os pulsos e os ombros/ as portas que se fecham/ nos corredores da escrita/ para que passem as vozes fragmentárias/ como um rio de fotografias”.
Porque no fundo a justiça entre os homens vem de podermos transmitir um entusiasmo e um projecto, prosseguir este a partir do ponto onde o outro perdeu as forças, vingar o seu tumulto, em vez de nos transmitirmos apenas os elementos da discórdia e de tudo aquilo que nos esmaga. Querendo-se sempre comprometido com essa embriaguez natural, aquela que é própria do aprendiz, Gusmão foi capaz de desenhar esse mapa de tempos sobrepostos, dispor esse “tempo constelado”, impondo-se a “depuração de uma oficina onde pode soprar uma fúria rigorosa”. Este militante indefectível do Partido Comunista, que foi membro do comité central e chegou a ser deputado, não só não aceitou qualquer contradição entre a militância política e a escrita ou o ensino de Literatura Francesa na Faculdade de Letras de Lisboa, como entendeu que levar a sério a história passa por compreender que isso exige uma compreensão da sua descontinuidade bem como da sobreposição de tempos, o que se opõe, portanto, à ideia da sucessão linear.
A poesia torna-se assim um discurso fundamental para proceder à desarticulação do mundo, e travar certos fatalismos que vão derrotando aquela capacidade de criar que isola o homem perante a história. “A poesia é o que recapitula o mundo/ chamando-o em cada chama/ pela chama de cada sílaba./ Guardar: inventar o mundo. Como se/ conseguisses imaginar que ele ama a poesia como/ uma forma perdida para/ o seu destino: uma força para o seu nome –/ inumerável boca. O sol: a água, nas mãos abertas.” Como António Guerreiro notou, “a sua poesia é uma poderosa máquina de fragmentação, de justaposição de realidades e de tempos, de cruzamento de géneros e de encontro de vozes. O espaço do poema é um cenário grandioso onde não se dá nenhuma síntese nem se procura impor a ordem do ‘grande estilo’”.
Nascido em Évora, em 1945, apenas se estreou na publicação de um livro de poemas em 1990 (“Dois Sóis, A Rosa – a Arquitectura do Mundo”, livro cujos textos vêm de 1969 a 1986), quando tinha já 45 anos, isto embora tenha publicado antes alguns dispersos nas tantas revistas onde colaborou ou que ele mesmo fundou, e quem o lia não tinha como negar essa vertigem em que só era preciso que fosse “escandindo/ a fala” para que as intuições com que se detinha generosamente na obra dos outros fossem lidas como a pauta para uma música densa e cheia de movimentos, e isto sem nunca abrir mão desses diálogos tão decisivos na sua obra, tendo sempre reforçado “essa amizade que o amor da arte/ dos versos é”.
No fundo, toda a sua obra foi um modo de devoção a esse elemento crucial e nascente do próprio horizonte político, da confiança que leva os homens a confiarem nas suas capacidades e no seu poder de afectar o mundo. Gusmão deteve-se sobre a linguagem enquanto campo essencial da transmissão de vivências e ideias, um campo que exigia reparações depois de tantos esforços para suprimir os horizontes do possível, e isto de forma a que o homem pudesse escapar ao seu isolamento e impotência, e voltou-se para esse regime da fala e da escrita onde tudo se suspende: “a poesia é ela mesma uma escuta de si e um operador de historicidade”, vincou, adiantando que “a poesia conhece o mundo de mundos em que vivemos historicamente”, e que “não apenas inventa/descobre figurações do mundo, mas nela a linguagem ‘dinamizada’, intensificada, produz outras maneiras de o figurar e habitar, com o que participa tendencialmente da modelação histórica dos nossos próprios sentidos históricos”…
Neste sentido, Manuel Gusmão resgatou a possibilidade de um recomeço, de reordenar o sentido, valer-se da instabilidade a que é possível sujeitar a fala, da prosódia à sintaxe, para refazer o sentido, produzir imagens estarrecedoras para abalar essas noções que nos condenam a viver sepultados, petrificados, dispondo-nos a ir beber no caos, esse “em que até os dicionários se desarrumam e convulsionam” entregues à vertigem de tudo o que pode suceder. Assim, “habitando a fenda, a fracção ou a fractura do tempo/ voltas ao princípio”.
É um modo de estragar os planos daqueles a quem a exuberância da vida provoca tonturas, que mais motivos de receio têm, devido aos privilégios imerecidos de que gozam, estando empenhados em representar como fatal todo o acontecido. É contra estes sacerdotes que trabalham para o rebaixamento dos homens, pervertem os exemplos, essa épica da libertação que serve de esteio às grandes causas e até às religiões, fazendo delas formas de moralismo, reduzindo-as à idolatria, que os poetas movem os seus esforços.
Contra todos aqueles que se empenham em servir a história como “uma profecia dos vencedores: será sempre assim, porque sempre assim foi”. “Aliás, a tese sobre o ‘fim da história’ começa por ser uma história mal contada e, mais do que um diagnóstico, representa uma tentativa de eternização de um presente reduzido e um bloqueamento do futuro por esgotamento dos possíveis”, frisou Manuel Gusmão. Ele bateu-se sempre para que fosse possível uma outra coisa, “recriar o mundo pedra a pedra”, e que essa ruptura, por mais sumptuosa que no fim venha a parecer-nos, é algo que está na nossa natureza, no regime dessa atenção que dedicamos ao mundo ao nosso redor, e que nos arrasta com ele. No fundo, não é mais que “um mecanismo simples mas delicado. O sol/ acende as árvores na luz e no equilíbrio dos mundos/ e imprime o seu leve gesto na tua retina; em resposta/ as árvores, com a sua sombra, desenham, na parede/ branca, e sonham, nas tuas pálpebras descendo,// uma escrita oriental, levemente dançando”…