Problema dos sem-abrigo não se resolve só com dinheiro

O projeto era ambicioso: acabar com os sem-abrigo em seis anos. Acontece que estamos a chegar ao fim do prazo e há cada vez mais pessoas a viver na rua. Muitas delas com doenças mentais.

2023 está a acabar e, como era previsível, o plano nacional para acabar com os sem-abrigo não passou de uma miragem, bem pelo contrário, embora o desfecho já fosse completamente esperado pelos profissionais que estão ligados ao fenómeno. 

Os políticos gostam muito de falar em soluções miraculosas, avançando com dinheiro para resolver problemas que são impossíveis de erradicar se não existir um trabalho conjunto, que vai muito além das questões monetárias. Quando se fala em sem-abrigo, o comum dos mortais tem a tendência de associar automaticamente a palavra pobreza, o que, na maioria dos casos, não corresponde minimamente à verdade, pois o drama que afeta muitos dos que vivem nas ruas deve-se, principalmente, a problemas de doença mental, que há quem goste de esconder na expressão saúde mental, como diz António Bento, uma das pessoas mais habilitadas sobre o drama dos sem-abrigo.

“Os políticos e dirigentes que prometeram acabar com os sem-abrigo até ao final de 2023 sabiam que estavam a enganar a opinião pública, mas contavam que o álibi da pobreza os salvaria sempre”, escreve nesta edição o psiquiatra que trabalha há 30 anos com os sem-abrigo.

Também o psicólogo Elias Barreto, que colaborou muitos anos com António Bento, gosta de reforçar que os sem-abrigo são um fenómeno que dificilmente desaparecerá, pois mesmo os países mais desenvolvidos, e onde há muitos mais apoios do que em Portugal, não conseguem erradicar o problema. Também em países como a Dinamarca, França ou Espanha, entre outros, a maioria dos sem-abrigo são pessoas que se debatem com problemas de doença mental, nomeadamente esquizofrenia e outras psicoses graves. 

Doença mental, droga e álcool 

Nos últimos tempos, a problemática voltou a abrir telejornais devido a um aumento de pessoas a viver em tendas ou mesmo no interior dos próprios carros. Aqui, a história é bem diferente, segundo os especialistas, pois estamos mesmo perante um problema financeiro: muitas das pessoas que se encontram nessas situações têm trabalho, mas não ganham o suficiente para pagar a renda de uma casa, de onde foram expulsos precisamente por falta de liquidez monetária.

Das cerca de dez mil pessoas que estão em situação de sem-abrigo, a maioria, porém, debate-se com problemas de saúde mental, outros com a droga e, por fim, com o álcool. Muitos destes são alvo das maiores patifarias, às vezes perpetradas por outros sem-abrigo, mas também por jovens bêbados sem quaisquer escrúpulos, que chegam a violar mulheres indefesas, a deitar fogo a quem dorme na rua, além de agredirem os indefesos por puro prazer. A afirmação não é minha, é de quem trabalha no terreno e recolhe os testemunhos dos agredidos.

Para se ter uma ideia, muitos sem-abrigo passaram por instituições de acolhimento, mas optaram por fugir, já que aí se sentiam mais inseguros do que nas ruas das cidades. Um teto nem sempre é sinónimo de segurança.

Do dossiê que hoje publicamos fica claro que só um trabalho conjunto entre os vários atores poderá produzir efeitos, pois os sem-abrigo não têm mudado muito ao longo dos anos. São pessoas que têm um historial problemático, muitos deles desde muito cedo, e não é a atribuição de uma casa que resolverá o problema, pois se não tiverem acompanhamento social e médico rapidamente voltarão às ruas das cidades, pois não têm defesas que lhes permitam ter uma vida dita normal.

“Cada doente psiquiátrico na rua recebe um investimento de milhares de euros por ano, que não tem qualquer benefício para o próprio mas que interessa a todos, desde o cidadão com bom coração que gosta de ajudar, até à poderosa indústria dos sem-abrigo”, diz António Bento, que reforça: “Como é a vida de rua de um doente com esquizofrenia? Recebe as equipas de rua, as instituições e as pessoas anónimas, dá entrevistas a jornalistas e políticos de todos os partidos, não aceita nenhum tipo de tratamento, mas pode aceitar uma das múltiplas ofertas de alojamento, incluindo uma casa (que logo abandonará para voltar para a rua, mas, entretanto, engordará os números oficiais daqueles que saíram da situação de sem-abrigo)”.

Novos velhos sem-abrigo

Muito também se tem falado do aumento dos sem-abrigo devido à chegada de migrantes de países como o Bangladesh, Paquistão, Nepal ou Índia, entre outros. Elias Barreto tem outra visão do problema: dos estudos realizados, “os sem-abrigo são de dentro, normalmente são do nosso país ou até da nossa cidade. Do trabalho de rua que fizemos descobrimos que 90% eram portugueses”.

De então – 2003/2004 – para cá, muito se terá alterado? “Na altura, tínhamos os PALOP, por exemplo, depois a seguir tivemos os de Leste e agora temos os dos países asiáticos. Estamos sempre a receber sucessivas vagas de imigrantes e é natural que alguns deles vão parar à rua. Mas não é de todo, segundo a minha experiência, que sejam a maioria”, explica Elias Barreto. Curiosamente, em Serpa, uma das localidades que mais recebeu migrantes asiáticos, segundo fonte camarária disse ao i, desapareceram das ruas da cidade.

Certo é que há milhares de pessoas na situação de sem-abrigo, muitos com doenças mentais – 200 mil com esquizofrenia e outras psicoses graves – e em Portugal quase dois milhões de portugueses estão em risco de pobreza. São dois problemas muito diferentes, mas que muitos tendem a misturar, nem que seja por interesses pessoais ou por incapacidade.