Depois de um outubro que começou tórrido e acabou num comboio de tempestades, novembro chegou com o verão de S. Martinho atrasado e um tsunami político. Abusando nas metáforas, dir-se-ia que o caldo já estava há muito em banho-maria e ficou entornado quando num repente levantou fervura e apanhou de surpresa o cozinheiro. Sim, porque independentemente da espuma dos dias, quem se queimou foi mesmo o responsável disto tudo: o primeiro-ministro demissionário e líder cessante do PS.
E a tentativa de voltar a sacudir a água do seu capote e passar as responsabilidades pela crise de instabilidade política e da ingovernabilidade do país para outrem – no caso, o Presidente da República – evidencia um desespero e uma inabilidade que nunca lhe foram reconhecidos.
Para António Costa, foi como se o céu lhe tivesse caído em cima, mas nem assim perdeu a cabeça.
Porque não é de alguém com cabeça perdida a declaração que fez ao país às 20h de sábado, na Residência Oficial de S. Bento. Uma declaração minuciosamente preparada para sua defesa na Operação Influencer, fazendo tábua rasa do princípio, em que sempre se escudou, da separação de poderes – ‘À Justiça o que é da Justiça, à Política o que é da Política’.
Como não é de alguém politicamente desnorteado, antes pelo contrário, a revelação que o ainda líder do PS fez à entrada para a reunião da Comissão Política no Largo do Rato, dois dias antes, dizendo que propôs ao Presidente da República a nomeação de Mário Centeno como primeiro-ministro para assegurar a governabilidade e a estabilidade política no país após a sua demissão.
António Costa demitiu-se por considerar – e bem – que deixara de ter condições para continuar a exercer as funções de primeiro-ministro com a dignidade inerente ao cargo.
E, consequentemente, anunciou a saída de secretário-geral do PS.
Com a revelação da proposta que fez a Marcelo e que envolvia o governador do Banco de Portugal, apesar de se ter demitido de PM e líder do PS e de ter dito que não voltará a assumir um «cargo executivo» até à conclusão deste processo por uma Justiça que se sabe que é tudo menos célere, assim quis deixar claro que a notícia da sua morte política é manifestamente extemporânea.
António Costa vai querer voltar, só não sabe é quando.Se bem que possa nunca mais vir a ter reais condições para um regresso, por ele, e ao contrário do que sempre disse, talvez as Presidenciais de 2026 sejam agora o objetivo que nunca foram e a Europa, apesar de tudo, continua sem estar definitivamente afastada.
De outro modo, como se acharia em condições de fazer qualquer proposta que fosse ao Presidente da República?
Desde quando um líder demissionário por falta de condições para exercer um cargo se acha competente para escolher e propor quem lhe possa suceder sem sequer ouvir primeiro os seus pares do partido?
Uma vez primeiro-ministro demissionário e aberto o processo de sucessão no PS, António Costa sabe que já não tem condições para nada.
Se até o povo diz que rei morto é rei posto, como pode alguém com a experiência de uma vida feita na política, como António Costa, ter a presunção de continuar no poder depois dele apeado?
E entre o querer e o poder…
A verdade é que António Costa, com a sua revelação, arrastou consigo para o lodaçal o governador do Banco de Portugal, que neste processo de suplício coletivo resolveu também fazer insólitas declarações ao Finantial Times, confirmando ter tido um convite do Presidente da República que não teve. Sujeitou-se, assim, ao inevitável (e madrugador) desmentido da Presidência da República e acabou a pedir a retificação das suas declarações.
Como se a imagem de Portugal na imprensa internacional ainda pudesse piorar.
Neste comboio de tempestades políticas, só faltava mesmo o presidente da Assembleia da República vir também pressionar a investigação e o Supremo Tribunal de Justiça, fazendo lembrar o comportamento das cúpulas socialistas (que, aliás, pouco variaram nestas últimas duas décadas) quando o partido se viu mergulhado no escândalo da Casa Pia.
Mais uma vez, vale a pena lembrar o que disse o presidente do Supremo Tribunal de Justiça na véspera de rebentar a Operação Influencer sobre a falta de vontade política para fortalecer a Justiça e dar-lhe meios – recursos humanos, técnicos e normativos – para ser mais ágil e eficaz, nomeadamente, como é o caso, quando se trata de investigar e combater a corrupção.
Sendo que são esses mesmos responsáveis políticos que beneficiam dessa falta de meios, por um lado, ou que, por outro, vêm depois exigir celeridade aos agentes da Justiça e aos tribunais.
Não, não adianta a António Costa tentar passar culpas ou apressar a Justiça.
Se ficou sem condições para exercer o cargo não foi só por estar envolvido pessoalmente no que quer que seja – embora António José Seguro lá devesse ter razões para o apelidar de ‘homem dos negócios’. Mas porque pactuou com a cultura de compadrios ou favorecimentos que está enraizada no PS e menosprezou sempre os ‘casos e casinhos’ que se sucederam no Governo sob a sua liderança.
Aconteça o que acontecer, António Costa é, mesmo, o responsável por isto tudo. Os outros, mais do que muitos, são cúmplices.