Enredados há muito numa teia de crise permanente, hoje, boa parte dos portugueses não conheceram nas suas vidas outra perpetiva do quadro político que não o desse recreio de intrigas que garantem que tudo se organiza no sentido do impasse, da imobilidade social, da degenerescência dos valores democráticos. Sem que o exercício crítico mais impiedoso seja levado em conta e produza consequências, sem regeneração, vemos a vida política entregue a uma corrosão subliminar de todas as referências ideológicas. E se há muito deixou de ser possível achar consolação no pessimismo profético, a maioria das pessoas tende simplesmente a alhear-se, ou adere apenas nalgum dos momentos da sátira que acaba por se sobrepor, pois nem com muito boa-vontade se pode supor que alguma coisa se transforme com estes protagonistas ou outros saídos do mesmo molde.
Há muito que nos vimos enclausurados na condição anacrónica da nossa realidade comum o que, pelo menos, impede que nos iludamos com o que se segue. Mas este ritualismo cíclico permite também, por outro lado, uma leitura infalível do nosso destino, sendo mais proveitoso levantar de tomos empoeirados a nossa mais lúcida caricatura, que serviu para outros tempos e, com toda a probabilidade, está mais atual do que nunca.
É certamente mais gratificante ler a prosa maturada dos que se deram o tempo de conhecer a fundo as nossas manhas e fragilidades, em lugar de nos deixarmos embalar por essa classe intoxicada de mitologia política fabricada em paragens que pouco têm a ver connosco. Neste sentido, e aproveitando-nos para imprimir algum fulgor às pífias comemorações do centenário de Eduardo Lourenço, parece-nos útil recorrer à sua lente compreensiva para ler a crise atual, e também para contrariar a imagem de uma certa bonomia que permite que qualquer um dos nossos abundantes vendedores de palavras de ordem e pseudofilósofos se reclamem seus herdeiros, adotando uma forma de misticismo eclético pessoal como modelo para reciclar lugares-comuns em momentos em que seria de exigir um nível de comprometimento a que já não estamos habituados dos intelectuais que hoje nos servem e se servem do espaço mediático.
Aproveitando a reedição no final do ano passado do livro O Fascismo Nunca Existiu, um volume de ensaios que reúne um conjunto de intervenções decisivas de Eduardo Lourenço logo a seguir ao 25 de Abril e também nas vésperas da deposição do Antigo Regime, tocando o último fôlego do nosso imperialismo, as questões coloniais, mas sobretudo a instauração da democracia, vimos cozinhar aqui com os ingredientes dessa enorme dispensa uma reflexão que prova como o juízo e as severas análises deste pensador não se confundem com a opinião balofa daqueles que têm lugar cativo nos espaços de comentário nem é uma mera vibração de fundo da consciência e da linguagem que possa ser processada como mero material de arquivo.
Na verdade, a um ano de se celebrar o meio século de vida democrática, Eduardo Lourenço vem deixar claro que enquanto não compreendermos em que medida o anterior regime tal qual existiu foi uma realidade bem portuguesa e que, por isso de algum modo persistiu nessa medida invisível para a massa daqueles que lhe dão corpo e por isso o aceitam, habituando-se a uma realidade cujas taras efetivas ou imaginárias não desaparecerão por encanto, a vida política portuguesa está condenada a ser um diálogo de surdos periodicamente renovado.
Procederemos aqui, por isso, não a um exame das teses de Lourenço, mas a uma reformulação de algumas passagens que se mostram hoje imensamente penetrantes, dando-se largar a um exercício de montagem, uma espécie de jogo para desencravar essa retórica imobilizada. Este autor a quem se colou a imagem de mais outra figura entronizada, talvez se tenha fantasmagorizado, enquanto preparava o seu desaparecimento preocupado mais com garantir que os seus livros estariam por aí, nesse espírito de confronto que o separa inteiramente do funambulismo estéril do comentário político, em que qualquer novo acontecimento acaba por perder o significado na normal indigência oposicional que caracteriza o nosso debate público.
Se este pode ser um momento mais exasperado da nossa tendência para evitar um confronto com as nossas debilidades, Lourenço diz-nos que isto não traz qualquer surpresa para quem conhece o povo português e a vida imaginariamente épico-retórica em que vive por dentro, à falta de viver uma autêntica e realística vida coletiva por fora. Entrega-se de diferentes modos a algum ludíbrio infantil, entretendo-se com a cobertura de qualquer sinistra paródia, servindo-se dessa caldeirada de vagos especialistas, politólogos, sociólogos, jornalistas desfigurados. E fala-nos de um informacionismo sem perspetiva, que é aquele que resulta do exercício de um jornalismo acumulativo, caótico, aparentemente ‘movimentado’ mas no fundo passivo e reverencial.
Nenhuma questão essencial é abordada de frente, discutida, estudada, como se o simples eco da violenta agitação verbal que atravessa o país suprisse o dever de as analisar, de tomar posição e partido. Quanto ao ambiente de degradação política em Portugal, este não espanta ninguém apenas porque a fórmula que se encontrou para superar a ditadura, foi uma forma de abandalhamento e desordem, em que o confusionismo, o arranjismo, a imbecilidade que caracteriza a lógica colegial, dos partidos às universidades, não conhece limites.
Damos pela imprensa dominada pela vertigem de mais outra crise eufórica consigo mesma, uma vez que o estado de desordem suspende todos os critérios, e o comentário pode reinar na sua especulação mirabolante. O próprio 25 de Abril acabou por ser sacrificado como uma miragem, uma vez que a tarefa que nos era exigida passava por despertar o país da sua passividade política sem se aproveitar dela para instaurar outra, mas foi isto precisamente o que vimos ser feito no enquistamento dos nossos partidos, que se revezam simulando diferenças, escamoteando esta ausência de alternativa debaixo da fraseologia que serve apenas para nos conservar no frio.
Lourenço lembrava, há quase meio século, que tínhamos de reaprender a falar, sublinhando que isto não dizia respeito somente àqueles a quem o monólogo ensurdeceu, referindo-se igualmente aos democratas a quem o silêncio forçado fatalmente inquinou o registo de voz. O passado mistura-se com o presente de uma forma em que tudo o que nos ocupa parecem ser meros álibis. Não devemos confundir esta participação verbal quotidiana e obsessiva, puramente imaginária e glandular, com uma verdadeira participação na vida política.
Não se pode chamar reflexão política séria à glosa de meros tópicos de sociopolítica internacional veiculados pelos grandes meios de informação. Ainda menos a simples mastigação ideológica de pensamentos políticos dignos desse nome mas reduzidos pela urgência militante a litanias, se não vazias de sentido, pelo menos de pensamento ativo.
Tudo isto explica a sensação de que a vida portuguesa aderiu a um conformismo maciço, e como todas as manifestações oficiais recaem num fabrico de incenso para uso caseiro, alimento etéreo de um deus económico, não podendo evitar a real fraqueza de estômago do delicado sistema que nos rege.
A enorme abstenção em todos os atos eleitorais não é, por isso, apenas um sinal de alheamento, mas o reconhecimento da farsa representado por uma classe política que soube aconchegar-se na Nação, explorar-lhe a infantilidade, o orgulho, a vaidade palerma. Os 50 anos da revolução dos cravos parecem assinalar um fosso significativo, mas vemos como, por estes dias, o culto do conformismo sistemático numa sociedade historicamente predisposta para ele não pôde evitar a catástrofe a um político que para não se molhar meteu corajosamente a cabeça debaixo de água, empregando esforços sobre-humanos para convencer os seus concidadãos a fazer o mesmo.
O pedido de demissão de António Costa devido a suspeitas de corrupção que atingem várias figuras do seu executivo levou muitos a falar num problema de Regime. Contudo, é possível reconhecer-se como este configura uma espécie de perfeição no seu género, quer dizer, no género dos sistemas passivos e conformistas. Sem favor, é o mais perfeito dos sistemas reacionários herdados do século passado, sendo que a sua longevidade (quase 50 anos, mais dois do que o Estado Novo) confirma esta singular perfeição sem amanhã.
Tal como em Salazar era possível reconhecer um político hábil, ainda que desprovido de todo o traço de imaginação, o mesmo se poderia aplicar a António Costa, um verdadeiro mestre-de-cerimónias da nossa impotência, tendo-se habituado a dissimular, disfarçar, vender gato por lebre. Foi alguém que baloiçava entre uma postura tranquilamente paternalista e a de um fanfarrão, mas depois sempre falho de uma política audaciosa e fecunda, viria a acabar tal como o seu antecessor, de quem tanto fez por se distanciar, enredando-se na teia dos compromissos que matam. E mesmo no fim, quando já se lhe elogiava a dignidade com que se afastou do Poder, ainda se serviu de expedientes de esperteza saloia para vir defender-se das suspeitas que recaiam sobre ele no plano judicial.
Fica claro, assim, como, à coragem e à franqueza, este Regime prefere sempre as meias tintas de sobrevivência. E ninguém pode agora fingir surpresa, depois de uma maioria absoluta arrancada sob a forma de coação, pela estratégia a que o Partido Socialista e os seus dirigentes se aferraram nos últimos tempos e em que, para se perpetuarem no poder, atiçam os receios em relação ao Chega para fazer subordinar essa imensa classe dos moderados, dos nossos conformistas, a uma vaga Moral, de modo semelhante ao que o salazarismo fez, sendo claro, contudo, que isto não basta para afastar o espectro do arbítrio ou da tirania. Pelo contrário, é um modo de fornecer gratuitamente aos governantes um diploma de boa consciência política.
E depois há sempre uma certa desfaçatez na forma como se dirigem aos eleitores, como se tudo o que deles viesse fosse decido tendo em vista o regime económico. O que esqueceram foi que a essência da Democracia é reduzir ao mínimo a corrupção inscrita no exercício do Poder. Eduardo Lourenço vinca que a democracia tem de definir os limites a partir dos quais nega a sua essência e se converte no seu contrário. Por agora, e numa altura em que já se prepara uma sucessão sem pôr em causa nada de mais profundo, fica claro como o Regime não responde pelas suas falhas, e se mostra desertado devido ao espetáculo de impotência ideológica, à ausência de verdadeiras perspetivas que o tardio dinamismo de planos de fomento ultra-cautelosos não pode já oferecer.
Enquanto isso, à sua volta, como rémoras, as sociedades de advogados engendram o próprio esquema dissolvente, garantem que os grandes negócios acabam por se fazer à esquerda como à direita. E aqui há outra equivalência com o regime salazarista, em que o líder se via apoiado numa legião de juristas, seus colegas de ofício, colaborando com estéril sabedoria formal nessa ficção política de dispor em novas combinações o xadrez de uma inamovível miséria pública. Nesse jogo que eles julgam brilhante não criam nem deixam criar nada de novo, exceto os seus proventos de criados regiamente pagos. Maquiáveis formais de trazer por casa, limitam-se, sob os olhos frios do patrão, a recair em velha carcaça medieval de uma sociedade de um adiantado estado de anacronismo. Para a vaidade de pobres camponeses promovidos que traíram a origem, diz-nos Lourenço, um tal exercício de arqueologia jurídica é um prato de deuses. Para a História, será um crime de mandarins sem desculpa.
Toda essa classe que parecia ter sido enxotada a seguir à revolução, retomou a sua posição, sem ver ao mesmo tempo o contrassenso de um privilégio que não tem a garanti-lo outra coisa senão um passado a caminho da morte. E para se sair disto, como se faz? Eduardo Lourenço propõe que só o diálogo honesto, simples, da Nação consigo mesma nos pode arrancar ao monstruoso monólogo político que durante as últimas décadas separou a Nação de si mesma.
Esse diálogo deve começar por compreender o que significa, em termos de responsabilidades e deveres, optar por um regime democrático. Pois ao contrário do que se supõe, a Democracia não é esse regime óbvio, fácil, pai de facilidades, que os seus ingénuos ou excessivamente sabidos defensores nos querem inculcar. Por definição, é o mais difícil e imperfeito dos regimes políticos uma vez que a perfeição para que tende não tem um fim assinalável. Regime de participação efetiva, e não apenas delegada, como a democracia parlamentarista o concebeu, implica uma presença ativa e crítica da e na própria estrutura quotidiana. Por isso é, por essência, programa para povos adultos e não o paraíso de pacotilha visionado pelos seus demagogos. Para nós, portugueses, herdeiros de uma dupla tradição de intolerância e paternalismo – à qual os democratas não escapam –, a perspetiva democrática só pode constituir acesso a consciência política mais complexa e exigente – embora mais honrosa – que a requerida pela repercussão (já bem complicada…) de um pensamento político ao abrigo da contestação.
Tudo isto é uma tarefa que, de tão adiada, começa a parecer-nos que é algo que receamos, talvez por significar não só uma reforma política, mas também um exame que teria um impacto na vida íntima de cada um de nós. Por isso talvez seja tão urgente, e por isso a vida política se tenha transformado numa paródia em que os governantes se revezam e defendem certos grupos de interesses sabendo que, mais tarde ou mais cedo, acabarão por ser sacrificados, apontando-se-lhes o dedo pelo fracasso do nosso destino coletivo, por esta democracia defunta, que cede à intriga e se apaga na balbúrdia. Mas, no fim de contas, os portugueses compactuam com este estado de coisas, pois o pior que se lhes poderia exigir é que assumissem a sua quota parte de responsabilidade através de uma participação cívica, esclarecida e ativa. Ora, Eduardo Lourenço entendia que num momento como o atual, de grande incerteza, devemos abandonar-nos à pulsação histórica que vem subverter as opções mais comuns, abdicando de excessivas cautelas não sabendo nós se elas mesmas não são aquilo que nos lança no precipício.