No seu livro Abril em Novembro, faz o retrato das três datas que consolidaram a democracia em Portugal, o 25 de Abril de 1974, o 11 de Março de 1975 e o 25 de Novembro de 1975. Por que sentiu a necessidade de escrever este livro?
Nós estamos a assistir a um processo de verdadeiro revisionismo histórico em relação a estas datas. Quando se diz que o 25 de Abril é um movimento de esquerda e o 25 de Novembro é um movimento de direita estamos a alterar a natureza de factos históricos por óbvios interesses político-partidários. A minha maior motivação na elaboração deste livro foi o meu conhecimento de quanto se sentem injustiçados muitos dos atores principais dos acontecimentos vividos nessas três datas pela realidade virtual subjacente a narrativas oficiais do regime, de que são um bom exemplo as declarações recentes do ministro da Cultura, sublinho, do ministro da Cultura. É um facto insofismável que as novas gerações estão a ser vítimas de um conhecimento enviesado dos acontecimentos. Tenho três netas universitárias que não sabem o que foi o 11 de Março de 1975, e dizem que o 25 Abril de 1974 foi promovido pela esquerda e que o 25 de Novembro de 1975 foi promovido pela direita. De facto, esta é a atual narrativa oficial, mas não é a verdade histórica: o 25 de Abril foi impulsionado pelo corporativismo militar, não tem que ver com esquerda nem com direita e o 25 de Novembro foi a tentativa do PCP e da esquerda radical de instaurar uma autocracia político-militar a que os militares e as forças sociais-democratas responderam com sucesso. George Orwell, no seu genial 1984, já tinha parodiado estas manipulações históricas, o seu protagonista Winston Smith, funcionário do ironicamente chamado Ministério da Verdade, tinha como único trabalho fazer desaparecer factos históricos, falsificar documentos, substituí-los por narrativas favoráveis aos interesses do partido e do governo, enfim, reescrever a História. Em 1949, Orwell estava a retratar a realidade do ‘paraíso’ soviético sob a manipulação da máquina estalinista, talvez estivesse longe de imaginar que essas manipulações também pudessem verificar-se noutras sociedades que não a estalinista. Não é a Rússia de Putin que diz que a Ucrânia nunca existiu? Não é o Irão dos ayatollahs que dizem que o Holocausto é uma ficção? Não é o Dr. Francisco Louçã que diz que o Holodomor não aconteceu?
Qual a importância de cada uma destas três datas?
O 25 de Abril colocou um ponto final no Estado Novo e nas suas opções políticas. Recordo que o Estado Novo surgiu pela incapacidade da 1.ª República em democratizar e desenvolver o país, tendo mesmo acabado por lançá-lo numa profunda crise económica e social agravada com a erradíssima opção que envolveu Portugal na Guerra Mundial de 1914-18. Tendo equilibrado as Finanças Públicas, o Estado Novo governou o país ao arrepio das regras democráticas e não teve a lucidez para fazer uma descolonização ordenada, defendendo os interesses de um Portugal não imperial e das centenas de milhares de portugueses que viviam no Ultramar. Os militares de Abril, motivados inicialmente por razões de interesse profissional, recolocaram Portugal no seio das sociedades democráticas europeias. A partir de 26 de Abril de 1974, o PCP, ancorado em alguns meios militares, iniciou um processo revolucionário que só terminou em 25 de Novembro de 1975 com a sua derrota. Entretanto, em 11 de Março de 1975, caindo na esparrela de um ‘false flag attacks’ (ataques de bandeira falsa), uma engenharia clássica dos grandes atores políticos internacionais, parte do círculo próximo do General Spínola impeliu-o a um ataque ao Ralis, estando de antemão os fazedores do falso facto político já preparados para o derrotar. Objetivo: acelerar o processo revolucionário e a descolonização com os parâmetros pretendidos pelo PCP e pela União Soviética, e impedir as eleições para a Assembleia Constituinte. Só este último objetivo não foi almejado. O 25 de Novembro de 1975 pôs termo ao projeto totalitário do PCP e recolocou o país nos caminhos que o Movimento das Forças Armadas propusera instaurar em 25 de Abril: uma democracia parlamentar integrada dos melhores valores europeus, liberdade, desenvolvimento económico e coesão social.
Como é que o PCP, que assumiu um papel determinante no 25 de Abril, quase nos encaminhou para uma nova ditadura?
A pergunta assenta numa premissa errada e prova a necessidade de clarificar este período histórico. O PCP foi, de facto, uma oposição tenaz ao regime do Estado Novo e muitos dos seus militantes foram perseguidos e presos, mas não teve qualquer papel determinante na sua queda. A sua estratégia para acabar com o regime assentava num grande ‘levantamento nacional’ que nunca logrou alcançar. O 25 de Abril não tem qualquer conotação política, é um pronunciamento militar, pragmático, inicialmente para defesa dos interesses legítimos dos Capitães e acelerado pela surdez do Governo quanto ao fim da guerra ultramarina. O PCP não quis nessa altura, não quer agora e nunca quererá no futuro, estabelecer um regime democrático em Portugal. As sociedades que o PCP quer implantar são um cocktail de um conjunto de muitos traços comuns, que engloba a Coreia do Norte, a China, a Rússia, Cuba e Venezuela. Na célebre entrevista dada a Oriana Fallaci, quando o PCP estava prestes a instaurar em Portugal as ‘amplas liberdades’, o seu secretário-geral, Álvaro Cunhal, foi muito claro e deixou expressas para o futuro as seguintes ‘pérolas’: ‘As eleições não têm nada ou muito pouco a ver com a dinâmica revolucionária… Nós, os comunistas não aceitamos o jogo das eleições… Portugal nunca será uma democracia parlamentar burguesa’. Reportando-me a Mário Soares, talvez a resposta à pergunta fosse a sua afirmação “O comunismo é o grande embuste da História”.
Tal como refere no seu livro, as eleições para a Assembleia Constituinte vieram mostrar que os portugueses não queriam um regime comunista. Tem uma noção de quando é que o povo sentiu que a democracia poderia estar em perigo?
A generalidade do povo português rejeitou sempre a solução comunista. Antes do 25 de Abril, o PCP era apoiado em muitas franjas populares não pelo seu programa político (que poucos conheciam) mas pela oposição ao regime. Aliás, foi esse estatuto que lhe deu credibilidade e de que ainda beneficia, quanto a mim injustamente. A partir de 26 de Abril de 1974, a sua verdadeira essência veio ao de cima: ocupações selvagens das propriedades, saneamentos e perseguições pessoais, nacionalização da economia, assalto aos órgãos de comunicação social, ambiente revolucionário nas empresas e na vivência coletiva. Estas opções ficaram a nu mais claramente a seguir a 11 de Março de 1975, o que permitiu aos portugueses, chamados a votos, em 25 de Abril de 1975, infligir uma clamorosa derrota aos comunistas.
Considera que o 11 de Março contribuiu para isso? Como é que essa tentativa falhada de conter o processo revolucionário foi percecionada pelos portugueses?
O 11 de Março de 1975 revelou o PCP no seu melhor e os portugueses percecionaram bem a essência da sua própria política: a Junta de Salvação Nacional passou a chamar-se Conselho da Revolução, a Banca e os setores estratégicos da economia foram nacionalizados, o MFA foi institucionalizado, as ocupações de terras multiplicaram-se. Os portugueses compreenderam bem que estas políticas eram a disrupção total do país e a sua reação foi a corrida às urnas nas eleições para a Assembleia Constituinte, onde se registou uma abstenção histórica de apenas 9% e a rejeição clara de um projeto comunista para Portugal.
Até ao 25 de Novembro, estivemos realmente em risco de uma guerra civil? Se o 11 de Março e os acontecimentos que lhe sucederam (como assaltos, ocupações, prisões arbitrárias, nacionalizações e a degradação económica do país) não tivessem tido lugar, acha que o 25 de Novembro se teria concretizado?
O acelerar do processo de assalto às instituições teve o seu clímax a seguir ao 11 de Março, mas o processo já era muito anterior: saneamentos de civis e militares, a generalizada indisciplina nos quartéis, a liderança governamental do filo-comunista Vasco Gonçalves, o controle do aparelho sindical através da unicidade institucionalizada, a ocupação de terras que já começara em finais de 1974, a exigência da nacionalização da Banca em janeiro de 1975, as campanhas de ‘Dinamização Cultural’ promovidas para ‘educar’ o povo no socialismo, e de que o povo fugia a sete pés, começaram logo em janeiro, campanhas a que o sobrinho de Mário Soares, e seu muito próximo, José Manuel Barroso, apelidava de ‘braço armado do setor político ligado ao Partido Comunista’. O 25 de Novembro tinha que acontecer porque o espírito do 25 de Abril, democrático, libertador, tinha dado lugar à tentativa de domínio do país por um projeto antidemocrático e destruidor do tecido social e económico.
O “Documento dos Nove” foi também um ponto de viragem?
O Documento dos Nove teve o mérito de formalizar o grito de revolta que grassava da sociedade civil e foi de uma extraordinária importância, estará talvez para o 25 de Novembro como o Programa do MFA esteve para o 25 de Abril, deu-lhe o suporte programático. Visava reorientar o rumo do país, travar a anarquia reinante e fazer frente à liderança dos destinos do país pelo PCP. Por isso mereceu o maior repúdio do Conselho da Revolução a 7 de Agosto de 1975, e da maioria filo-comunista, mas foi apoiado pela maioria das unidades militares, tendo suscitado uma esperança renovada no país. Denunciava a ‘progressiva decomposição das estruturas do Estado’, rejeitava a ‘onda de violência incontrolável’, recusava ‘o modelo de sociedade socialista tipo europeu-oriental’, precisamente aquele que o PCP tinha em marcha. Perante este Documento, o primeiro-ministro Vasco Gonçalves, no célebre discurso de Almada, ensaia um salto em frente já que ‘chegou enfim a hora da verdade da Revolução Portuguesa,… já que os revolucionários têm que assumir as suas responsabilidades’. Este discurso levou à sua queda, o Documento dos Nove foi, sem dúvida, um ponto de viragem, formalizou um novo sopro de esperança no futuro democrático do país.
No livro critica o discurso atual daqueles que defendem que o 25 de Novembro foi obra da direita. Qual a razão para que esta data seja associada à direita? Ou melhor, qual o interesse por trás da esquerda em distanciar-se deste momento na história da democracia?
O 25 de Novembro é a tentativa antidemocrática e golpista protagonizada pelo PCP e a esquerda radical de assalto ao poder. Estando, formalmente, essas forças inseridas no quadro partidário da democracia portuguesa, é óbvio que não podem aceitar a sua autoria pois essa confissão seria o reconhecimento da sua essência antidemocrática. Como não podem apagar a data, criaram a narrativa que é um golpe da direita. Quanto ao PS de António Costa, as razões são diferentes, António Costa deve a sua sobrevivência política à aliança com os comunistas, o novo PS que ele formatou não pode quebrar essas pontes para continuar a formar maiorias com esses partidos, reconhecer o golpe comunista de 25 de Novembro era reconhecer o seu caráter antidemocrático e dificultar a concretização dessas alianças no futuro. Esta postura oportunista contrasta com a do fundador do PS, Mário Soares, que atribuiu a Jaime Neves, herói operacional do 25 de Novembro, a mais elevada ordem honorífica em Portugal, a Ordem Militar de Torre e Espada, do Valor, Lealdade e Mérito.
Acha que a perceção atual destas datas está sujeita a algum revisionismo histórico? Isto é, há um certo desalinhamento entre aquilo que foi vivido na época e o entendimento dos factos pela sociedade atual?
Em absoluto, há claramente um reescrever da História. Como compreender que as novas gerações não tenham informação fidedigna sobre estas datas? Que alunos dos últimos anos do secundário e mesmo universitários atribuam o 25 de Abril de 1974 à esquerda e o 25 de Novembro de 1975 à direita? O 25 de Abril não teve qualquer intervenção partidária, foi um movimento exclusivamente militar. E quanto ao 25 de Novembro a influência do PCP está por todo lado: Costa Martins acompanha os Páras em Monsanto, está no posto de comando do SDCI (a nova polícia política de informações) de onde se coordenaram os movimentos, e vai para a Lisnave com a intenção de avançar sobre Lisboa com milhares de trabalhadores da Cintura Industrial de Lisboa; Duran Clemente, outro militante do PCP, ocupa a RTP e, na sequência do insucesso, refugia-se em casa de militantes do PCP e foge para Moscovo e daí para Luanda; na preparação do golpe, quando foi tentada a decapitação do Comando do Regimento de Comandos, os furriéis coniventes afirmaram que foram chamados ao Secretário Geral do PCP, Álvaro Cunhal, que lhes prometeu todas as garantias, incluindo, se fossem castigados, viagens para o exterior. Ora a narrativa oficial fala de golpe da direita… É o revisionismo histórico numa sociedade formalmente democrática. A História está a ser reescrita nas nossas escolas e na narrativa oficial.
Numa passagem muito interessante diz: ‘A cinquenta anos de distância [do 25 de Abril de 1974] custa entender como se considera, hoje, o PCP parte do arco democrático quando esteve (e sempre estará se tiver oportunidade) por detrás de um golpe visando o colapso da democracia portuguesa e promoveu ações de total destruição das instituições’. No seu entender, o PCP atual, com as lutas e bandeiras que tem, não traz qualquer contributo à democracia em Portugal?
Uma coisa é o PCP ser um partido que tem legitimidade para defender o seu ideário e a sua ação política, tem esse direito que lhe é conferido quando foi legitimado pelo Tribunal Constitucional. Outra coisa é como o avaliamos politicamente. Eu não tenho dúvidas que o PCP não acrescenta nada à vitalidade da nossa democracia, o PCP utiliza-a como um meio para acabar com ela. Aliás, é uma força da democracia permitir a atuação e o pensamento mesmo daqueles que são seus inimigos. A Europa, com a singular exceção de Portugal, já respondeu à pergunta, os partidos comunistas, na linha marxista-leninista, são residuais ou foram extintos pela rejeição das populações, como é o caso de França, Espanha, dos países do Leste europeu ou, mesmo, os do compromisso histórico como em Itália. Ninguém, a não ser obrigado, quer viver nas sociedades que ele defende. Quem quer emigrar para Cuba, para a Venezuela, para a China ou para a Coreia do Norte? Nem os próprios comunistas portugueses, a não ser que sejam dirigentes… É verdade que o PCP ganhou adesões e credibilidade durante o Estado Novo, mas isso deveu-se a um erro político de Salazar que, com a perseguição e prisão de muitos dos seus militantes, criou uma auréola positiva na sua imagem. Essa auréola foi desaparecendo a seguir ao 25 de Abril à medida que o povo compreendeu e sofreu com a verdadeira essência do projeto comunista. Isso confirma que é saudável para a democracia que os comunistas, e mesmo as franjas mais radicais, exerçam livremente a sua ação política, aliás como os wokistas, os climáximo e quejandos. A atuação visível destes protoditadores salvaguarda-nos de eles virem a exercer o poder porque, ao contrário do tempo de Salazar, agora sabemos do que eles são capazes quando tomam conta do poder.
Como vê esta ideia do 25 de Novembro como o dia em que se cumpriu o 25 de Abril? Considera que o Estado deve celebrar a data como se celebra o 25 de Abril? O que achou da iniciativa do presidente da Câmara de Lisboa, Carlos Moedas, de festejar o 25 de Novembro?
Como diz um poema citado no meu livro ‘se não fosse o Novembro, ai do Abril… e ai de nós!’ Carlos Moedas veio corajosamente abrir a caixa de Pandora no seio do ambiente politicamente correto. Enalteço a sua coragem em nome da verdade histórica em contraponto àqueles que a querem reescrever. Aqueles que querem compreender o contexto em que aconteceu o 25 de Novembro, e a sua importância, leiam, com atenção, o Relatório da Comissão sobre violência sobre os presos sujeitos às autoridades militares, de que o livro transcreve algumas partes sugestivas e que esteve classificado como ‘secreto’, vá lá saber-se porquê, no Arquivo da Presidência da República até 22 de fevereiro de 2021, até há apenas dois anos! Este relatório devia ser objeto de estudo nas escolas portuguesas, na chamada educação para a cidadania. O 25 de Novembro permitiu que se realizassem as primeiras eleições livres para o Parlamento, para o Presidente da República e para as autarquias, todas logo no ano seguinte, em 1976. Permitiu que Mário Soares assinasse o Acordo de Adesão à União Europeia e Cavaco Silva assinasse o Tratado de Maastricht de que veio a resultar o Euro como moeda única. E permitiu que todos os anos festejemos o 25 de Abril porque, caso contrário, o 25 de Abril já teria sido erradicado da História e substituído pela grande data da libertação revolucionária, agora sim, dessa grande festa nacional, agora já tornada possível, que seria o feriado nacional de 25 de Novembro. E tendo permitido isto, impediu que outras coisas acontecessem, desde logo impedir termos ficado isolados na Europa Ocidental, em que o nosso parceiro mais amigo a ocidente seria esse referencial da liberdade que é a Cuba da família Castro e a oriente, entre outros semelhantes, teríamos o país da família Kim Il-Sung das amplas liberdades norte-coreanas. Se estas razões não justificam um dia nacional festivo não sei que outras o justificarão melhor.
Partidos de esquerda, como o Bloco de Esquerda e o PCP, sempre tiveram uma forte base de apoio e recrutamento nas faculdades de ciências sociais. Acha que isso explica o facto de continuar a ser difícil explicar às gerações mais novas a importância do 25 de Novembro? Ou vê outra razão para isto acontecer?
Sem dúvida que explica em parte a persistência nesse enviesamento histórico, a ideologia marxista fixa objetivos independentemente dos meios para os atingir. Mas se o atual Partido Socialista de António Costa seguisse a linha histórica defendida pelo seu fundador, Mário Soares, esses objetivos eram mais dificilmente alcançados. Acredito que no futuro a verdade acabará por vingar.