Vale a pena ouvir atentamente a entrevista do juiz Manuel Soares (presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses) a Vítor Gonçalves (Grande Entrevista na RTP3, na quarta-feira) e ler o artigo assinado pelo mesmo magistrado no jornal Público do mesmo dia. Intitulado ‘Malhar’ no Ministério Público, o artigo começa por sublinhar: “A lei é clara. Influenciar o processo de decisão pública para obter um resultado ilícito a troco de vantagens não devidas é crime”. E continua: “Sem espanto, a Operação Influencer detonou uma explosão política, com estilhaços em ricochete para o Ministério Público (MP). Entre interrogações legítimas, intervenções cínicas e cortinas de fumo, vale a pena esmiuçar algumas dúvidas que circulam por aí, à luz do senso comum e da lei; não dos interesses partidários”. E, tanto no artigo como na entrevista, o magistrado preocupa-se em esclarecer a opinião pública com uma lucidez e um bom senso que, infelizmente, são cada vez menos comuns.
Manuel Soares, como é seu dever deontológico, não fala de casos concretos, mas não deixa de ser suficientemente claro para defender a ação da Justiça num Estado que se reclama de direito e democrático, onde ninguém está acima da lei nem isento de investigação.
Mesmo quando em causa está o primeiro-ministro e membros do seu Governo (do chefe de gabinete a ministros) ou do seu inner circle pessoal (como o seu publicamente reconhecido ‘melhor amigo’), a Justiça tem de seguir o seu caminho.
Qual ‘judicialização da política’ ou ‘golpe de Estado judiciário’, qual quê?
Do mesmo modo, o magistrado também rebate a ideia da ‘politização da Justiça’ ou de uma ‘inaceitável intromissão política’ cada vez que se abre o debate público sobre a organização e modo de funcionamento dos Tribunais ou do Ministério Público.
É, aliás, com naturalidade que admite a discussão sobre uma revisão da composição do Conselho Superior do Ministério Público e a existência de uma maioria de magistrados, desde que se respeite a autonomia e a independência do MPrelativamente ao poder político.
Como é na ‘normalidade’ que enquadra as pressões públicas dos agentes políticos sobre os magistrados do Ministério Público e judiciais, que obviamente estão ou têm de estar preparados para não se deixarem condicionar: “Faz parte da função, quem não as quiser sofrer ou não souber resistir-lhes, não vem para a magistratura”.
Manuel Soares tem perfeita consciência de que a Justiça não está bem nem se recomenda, que a maioria dos juízes tem excesso de trabalho, que os magistrados cometem erros, que a morosidade dos processos-crime (e não só) é excessiva e não apenas justificada pelas manobras dilatórias que a defesa dos arguidos usa e abusa na busca da prescrição.
Mas uma coisa é o estado a que a Justiça chegou – diga-se, verdadeiramente lamentável, quer pela falta nos meios e condições quer também na quantidade e qualidade dos seus recursos humanos – e outra a tentativa de descredibilização da sua ação quando os efeitos políticos são inevitáveis.
E para essa tentativa de descredibilização contribuem políticos com muito mais experiência do que bom senso – como o presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva, e o seu antecessor e líder do PS quando rebentou o escândalo da Casa Pia, Eduardo Ferro Rodrigues – e, sobretudo, reputados magistrados, como a procuradora-geral ajunta Maria José Fernandes (que, também num artigo publicado no jornal Público, na segunda-feira, se questionava “Ministério Público: como chegámos aqui?”).
Maria José Fernandes não se coíbe de arrasar o trabalho dos seus colegas na Operação Influencer, concluindo o artigo com a dúvida sobre qual a vantagem patrimonial que possa resultar de um almoço.
Bem lhe respondeu Manuel Soares, questionando a senhora procuradora sobre se não veria qualquer problema e antes consideraria ‘normal’ que o procurador de um determinado caso andasse em almoços ou jantares com arguidos ou envolvidos nesse mesmo processo.
Também por aqui se vê que o bom senso é cada vez menos comum inclusivamente entre os agentes da Justiça.
Porque já vale tudo. Como obrigar a procuradora-geral da República, Lucília Gago, a vir a público prestar explicações sobre o que já estava mais do que explicado – caiu-lhe uma bateria de jornalistas em cima, ontem, mal pôs o pé numa cerimónia pública. Lucília Gago já fora chamada a Belém, pelo Presidente Marcelo e a pedido do primeiro-ministro, António Costa – como bem esclareceu o conselheiro de Estado António Lobo Xavier –, e já publicara a célebre nota de imprensa cujo último parágrafo tanta tinta tem feito correr.
Que dúvidas ainda restavam?
Aos jornalistas, a PGR limitou-se a repetir o que já era do domínio público.
Não se trata de uma cabala, de uma tentativa de golpe de Estado judiciário ou de uma conspiração para derrubar um primeiro-ministro com maioria absoluta. Trata-se de uma investigação judicial com suspeitas de tráfico de influências e corrupção que envolve membros do inner circle político e pessoal do primeiro-ministro e que podem também implicar o próprio.
O que é muito grave.
Pôr mais lama na ventoinha só por desespero, falta de senso ou mau gosto… na melhor das hipóteses.