A casa estava em arrumações, mas o escritório pareceu-me organizado – dentro do possível, uma vez que o número de livros excedia largamente o espaço disponível nas estantes. Nestas, ocupava lugar de honra uma caixa de cartão com a edição integral das Aventuras de Tintin. Oito volumes de lombadas vermelhas que se destacavam dos demais. “Isso é a minha mania de completista”, comentou o meu anfitrião. ‘Completista’? Nunca tinha ouvido a palavra, mas percebi muito bem o que ele queria dizer.
Há situações em que podemos adquirir, de uma assentada, a obra completa de um autor ou personagem – e o caso fica encerrado. Mas há outras em que isso exige mais tempo e paciência. Enquanto a coleção não está completa, é sempre uma pedra no sapato. Olhamos para a prateleira e não vemos os volumes que lá estão, mas sim os que nos faltam.
Aqui há tempos adquiri, por bom preço, o que me foi vendido como todos os volumes da Biblioteca de Babel – os livros de histórias fantásticas escolhidos e apresentados por Jorge Luis Borges – publicados em Portugal. Sabia que por cá a coleção não chegava aos 33 volumes editados entre 1975 e 1985 por Franco Maria Ricci (FMR), e estava convencido de que aqueles dez ou onze títulos seriam tudo o que havia em português.
Espreitemos agora como a famosa casa editorial italiana apresenta a coleção: “Do encontro entre Franco Maria Ricci e Jorge Luis Borges surgiu a ideia de reunir a sua biblioteca ideal, uma coleção da sua literatura favorita. London, Chesterton, James, Stevenson, Kafka, Kipling e outros coabitam nesta antologia que reúne o melhor da literatura fantástica. Inspirada no título de uma das melhores histórias de Borges, a série foi baptizada ‘Biblioteca de Babel’”.
Com o seu formato alongado, as letras bem torneadas e os sugestivos desenhos a cores da capa enquadrados por uma cercadura, a edição portuguesa da Presença reproduz sem mácula o design requintado da versão original. E tem a vantagem de não ser absurdamente cara.
Só que – como já devem ter adivinhado – ao chegar a casa comecei a perceber que ainda me faltavam alguns números. Bartleby, O Escrivão, o livro de culto de Melville, era um deles. Tratei de o arranjar, embora já tivesse outra edição. Seguiram-se O Abutre, de Kafka, que deu mais luta, e a antologia Contos Argentinos. Procurei afincadamente pelos Contos Russos nas plataformas online. Um dia lá me apareceu um exemplar. Pelo menos o título e os autores eram os mesmos. E a descrição começava desta forma inconfundível: “A minuciosa burocracia, exaltada satiricamente, é o tema essencial da inacabada fantasia de ‘O Crocodilo’, de Dostoiévski…”. Quando chegou, porém, tratava-se afinal de uma outra edição, com uma tristonha capa castanha… Publicidade enganosa?
O volume dos Contos Russos é sem dúvida o mais diabolicamente difícil de encontrar de toda a Biblioteca de Babel. Nesta coleção parece ser o 14 e não o 13 – esse eu tenho, é a Porta no Muro, de H.G. Wells – o número do azar. Mas, quando se trata de colecionar, claro que a caça é uma das partes mais emocionantes. Toda a gente sabe que as crianças, no dia em que completam uma caderneta de cromos, fecham-na e põem-na de parte. Daí em diante só lhes interessa a próxima coleção, a que ainda está por completar.