Mónica Baldaque seguiu sempre o conselho que um dia lhe foi dado pela mãe, a escritora Agustina Bessa-Luís: «Tens de viver com o que és, com a tua força, as tuas qualidades, e o teu destino». Nascida há 77 anos em Godim, Peso da Régua (Douro), licenciou-se em Pintura pela Escola de Belas-Artes de Lisboa e desempenhou o cargo de conservadora em vários museus, uma atividade que foi conciliando com a prática tanto da pintura como da ilustração. E até da escrita: além das exposições que realizou, tem vários livros publicados.
Neste ano em que se celebra o centenário de Agustina (e do marido, o advogado e jurista Alberto de Oliveira Luís), Baldaque oferece-nos um retrato próximo e vivido da grande escritora, falando abertamente sobre as suas preferências, as suas rotinas e, claro, a sua obra.
Esteve muito recentemente em Paris, num colóquio que encerrou as comemorações do centenário do nascimento da sua Mãe. O que a sensibilizou ou impressionou mais nesse acontecimento?
Celebrar Agustina neste Ano de Centenário, e depois do arranque protocolar, teve início com uma Exposição em Serralves – Uma Exposição Escrita. Realizou-se um primeiro Colóquio na Fundação Calouste Gulbenkian – O Riso de Todas as Palavras; e encerrou com o Colóquio Internacional na Sorbonne, Agustina Bessa-Luís dans les soubresauts du siècle. Orientados cada um com um espírito diferente, trouxeram uma interpretação e uma luz renovada à presença e à Escrita de Agustina. Na Sorbonne assistimos a uma leitura académica, clássica, aquela leitura que põe ordem na interpretação, a sistematiza e abre caminhos para novas inspirações e procuras. Há muitos métodos inteligentes para pensar Agustina, e ali isso ficou demonstrado na procura de focos que incidem sobre as inúmeras variações da sua obra. E sensibilizou-me que tivesse sido Paris, cidade de muitos encontros de minha Mãe, a lembrá-la.
Em todas estas comemorações do centenário, houve para si algum momento mais marcante?
Por umas razões ou por outras, todas aquelas em que participei, ou a que assisti, foram gratificantes. Mas destaco a gente nova que lê Agustina, e revela interessantes linhas de descoberta no texto literário. Em apontamento, refiro o filme A Sibila; o documentário Estações da Vida – Vento da Desordem; as pinturas do mural da CCDR-Norte; ou uma rapariga de 14 anos que assistia a uma sessão em Esposende, e sobre Dentes de Rato, teve uma intervenção surpreendente.
A obra da sua Mãe está traduzida em muitas línguas. Qual era o país com que tinha mais afinidades? E qual a cultura que mais a seduzia? A francesa?
Agustina está traduzida em muitas línguas, o que verdadeiramente nunca a preocupou, nem ocupou. Talvez a francesa e a dinamarquesa sejam as mais significativas, em volume. Sem dúvida que a cultura francesa foi aquela com a qual tinha mais afinidades. O francês, o castelhano, estiveram presentes desde a infância, porque se falavam em casa, porque eram as línguas da biblioteca da família. Mas as literaturas russa e alemã foram as suas grandes referências, como é sabido.
Tinha algum controlo sobre as traduções? Era a própria que as revia ou tinha alguém que fazia esse trabalho?
Como lhe disse, minha Mãe não se interessava por esse aspeto mais comercial, a que de todo se abstraía. Os contactos com os tradutores eram com meu Pai, que se munia de grande paciência para esclarecer e acompanhar a tradução da escrita de Agustina.
O seu Pai era um apoio fundamental da sua Mãe. Sabemos que se conheceram através de um anúncio e que esse encontro resultou numa relação duradoura. Entenderam-se de imediato ou foi um processo de adaptação mais progressivo?
Conheceram-se, e casaram pouco tempo depois. Minha Mãe quando tomava uma decisão, ela estava certa, e não perdia tempo com hesitações. Foi assim toda a vida.
Também sabemos que o seu Pai ia às livrarias, comprava-lhe livros… Em que outras tarefas a ajudava? Ele vivia para ela e em função dela – ou tinha interesses mais importantes e o apoio que dava à sua Mãe era secundário na vida dele?
Meu Pai era um assíduo frequentador das livrarias, tanto cá, como no estrangeiro. Frequentador e comprador. Além da sua enorme cultura, tinha uma intuição especial para o que era novo e importante no domínio do pensamento e da literatura. Também mandava vir com frequência livros de Itália, França, Espanha. Vivia muito dedicado à minha Mãe e ao seu trabalho, mas não descuidava o seu, como advogado, como jurista. Era brilhante, ainda há alunos e colegas que o lembram com admiração. Este ano, celebro o seu Centenário de Nascimento.
Diz-se que a sua Mãe escrevia sempre à mão, e não revia o que ia escrevendo. E matava personagens que mais à frente ressuscitava. Quem lhe fazia a revisão – não ortográfica mas editorial? Era o seu Pai? O editor?
Minha Mãe escrevia à mão, com caneta de tinta permanente, até certa altura, depois, com esferográfica. Quem vê os seus manuscritos, sem rasuras, sem espaços em branco, percebe como a escrita surgia, como o pensamento, sem tempos de espera. Isso de abandonar um personagem a meio do romance, ou de o fazer ressuscitar depois de o ter encontrado morto, é mais um efeito da metamorfose! E tudo, sempre, é possível. Como morrer e ressuscitar para vir dizer mais qualquer coisa!
A sua Mãe falava de outros escritores? E o que dizia?
Falava de Dostoiévski, Tolstoi, Dickens, Poe, Balzac, Jane Austen, Musil, de Walser, de Cervantes, de Freud… de tantos, de todos aqueles que eram seus interlocutores e confidentes!
E dos portugueses? O que pensava, por exemplo, de Saramago? Disse um dia ao meu pai que quem o ensinou a escrever foi a Isabel da Nóbrega…
Sobre Saramago, sei que as suas palavras e o seu sentimento eram amáveis. Se foi a Isabel da Nóbrega que o ensinou a escrever… porque não, se valeu a pena a voz do discípulo?
E de Lobo Antunes, falava?
Lobo Antunes? Creio que nenhum dos dois tem nada a dizer um do outro, para além da estima, do respeito, e da admiração mútuos. Isso determinou o clima de confiança entre eles, quero dizer, de reconhecimento e aceitação, elegantes.
Diz-se que os grandes artistas são em geral maus pais, vivem ‘obcecados’ com a obra e muitas vezes têm pouco tempo e pouca paciência para a família. Como era a sua Mãe nesse papel?
E se colocarmos o problema ao contrário? Os filhos dos grandes artistas nem sempre são bons filhos. Justamente porque não aceitam que a energia de um artista criador está concentrada na criação; e não conhecem (os filhos), qual é o seu próprio lugar, nem na vida familiar, nem na vida social, nem na deles mesmos. Minha Mãe nisso foi uma educadora excecional. Dizia-me: ‘Tu és uma pessoa única. Tens de viver com o que és, com a tua força, as tuas qualidades, e o teu destino’.
Como era um dia normal na vida da sua Mãe? Tinha rotinas, horários certos para escrever e fazer outras coisas, ou era indisciplinada e escrevia quando lhe apetecia?
Se tive um exemplo de disciplina, para além do Colégio, foi o de minha Mãe. Escrevia regularmente, todos os dias; lia, todos os dias; sem deixar de incluir na rotina deles as conversas com a família, ou estranhos; os passeios, o cinema, as viagens. A hora do chá. Normalmente, um romance escrevia-o em 3/4 meses, se não fosse obrigada a um trabalho de pesquisa.
Escrevia todos os dias, ou estava temporadas sem escrever?
Escrevia sempre. Mesmo em férias – cartas, crónicas, contos, discursos, reflexões.
Quando escrevia, precisava de estar isolada e em silêncio absoluto, ou não se importava de ser ‘importunada’?
Ninguém a interrompia. Mas, se isso acontecesse, ela pousava a caneta e respondia, com um olhar que eu conheci bem, de quem está em dois sítios ao mesmo tempo. Já com os netos era diferente: eles iam cumprimentá-la quando chegavam da escola, e ela ouvia-os, atenta, e falava-lhes sem usar aquela linguagem deferente de conto infantil.
Nunca teve crises de falta de inspiração? Períodos em que sentia que já não tinha mais para dar e que a sua veia criativa tinha secado?
Não! A inspiração encontrava-a nos mais pequenos assuntos que observava. Depois, tudo era um lento e complexo exercício de relacionamentos e experiências, até ao infinito.
Como era psicologicamente? Era uma pessoa serena, estável, tranquila, ou era inquieta, com altos e baixos, e períodos de melancolia?
Minha Mãe era uma pessoa cordial, serena, silenciosa; no trato comum, quase se apagava, diria, como personalidade. Mas, de repente, a caneta transformava-se, e ela, como ninguém, conhecia a cólera. Cólera, pelo que fosse justo.
Em quantas casas a sua mãe viveu? Tinha alguma de que gostasse mais?
Em criança, minha Mãe viveu em muitas casas, porque meus Avós eram assim – não se fixavam para além do tempo conveniente… um dia, desatavam os laços, e partiam. Tinham alma errante! Depois de casar, meus Pais viveram em sete casas e lugares. A oitava foi a casa na encosta, no lugar do Gólgota, no Porto, onde viveram cerca de 50 anos. E foi a escolha, para ficar até ao fim. ‘Gólgota’, já por si, tem uma carga mística, que minha Mãe tomou como sinal. Veio para esta casa com uma idade em que precisava de uma rotina isolada e cómoda. Receber aqui a sua Mãe, viúva, e a preocupação de a receber com boas condições e privacidade, foi determinante para a instalação definitiva.
Diz-se que o Porto não seria o mesmo sem Agustina. Ela amava a cidade ou apenas a usava como pretexto ou cenário para a escrita?
Quem diz isso? Gostava de saber, para lhe dizer o quanto é ingénuo! O Porto é sempre o mesmo, passe por lá quem passar. Nem que fosse Cristo! Minha Mãe gostava de viver no Porto, porque, e dizia-o muitas vezes, era uma boa cidade para trabalhar – um laboratório. E ali teve boas condições. Depois, o Porto é uma cidade romanesca e cheia de personagens-virgem, para o seu espírito curioso e investigador; tudo era matéria de descoberta e de estudo. Mesmo hoje, invadida por uma espécie de matilha de pitbulls, continua a ser romanesca. Até por isso mesmo.
Existe uma certa rivalidade/ animosidade de alguns habitantes do Porto em relação à capital. O que pensava a sua Mãe de Lisboa?
A partir de certa altura, minha Mãe começou a preferir a permanência em Lisboa, pela cidade, pelo clima, pela luz, pelas pessoas, e pensou seriamente em mudar-se. Chegámos a procurar uma casa, mas infelizmente não encontrou ‘aquela’ casa que a decidiria. E, entretanto, surgiu esta, sobre o rio. Eu acho que essa animosidade, como diz, existe noutras escalas também: de rua para rua, de bairro para bairro. Lisboa-Porto, isso é a eterna fábula, sem moral, de ‘A Cortesã e o Provinciano’.
Politicamente, julgo que podemos dizer que era uma pessoa conservadora. O que pensava de Salazar e do seu regime? E de Marcello Caetano? Como viu o 25 de Abril?
Se minha Mãe fosse ‘conservadora’, com a conotação que lhe querem dar alguns, não tinha escrito a Obra que escreveu. É preciso lê-la, saber lê-la, para que não continue esse discurso antiquado, repetido com ligeireza e ignorância. Sim, foi ‘conservadora’ porque não foi viver para Paris, ou para o País Basco, ou para a Provença, e tanto a incitou a Vieira da Silva! Foi ‘conservadora’, porque ficou cá, e escreveu sobre este pequeno país, esta gente, a sua História! Dedicou-lhes o seu talento, o seu tempo, o seu esforço, para que lhes fossem úteis, um dia, num reconhecimento de um corpo e de uma alma. O que pensava de Salazar, de Marcelo Caetano, do 25 de Abril, está magistralmente analisado na sua Obra. Nunca se esquivou de o fazer, com toda a lucidez e oportunidade. É ler As Pessoas Felizes, de 1975, e A Crónica do Cruzado Osb., de 1976; e O Comum dos Mortais, de 1998. Para além das reflexões em inúmeros romances, e em entrevistas.
Parece que, depois do 25 de Abril, esteve algum tempo sem escrever. Pelo menos para os jornais. Sabe porquê? Foi ostracizada?
Situações de conflito de minha Mãe com os jornais em que colaborava não creio que tivesse havido, como consequência do estado revolucionário. Houve um tempo de paragem da atividade jornalística em 1975, que teve que ver com a própria reorganização dos jornais, e certamente com a sua própria avaliação da intervenção, que muda. Retoma os artigos em Fevereiro de 1976, na Critério – Revista Mensal de Cultura, com o título ‘Governo e Revolução’.
O seu conservadorismo ou posicionamento político trouxe-lhe problemas depois da revolução?
Nunca minha Mãe teve qualquer problema alegando-se ‘conservadorismo’. Sempre foi respeitada pela esquerda, e tratada com cerimónia pela direita. Isso deixou-a livre no seu direito de ser e de falar, no seu espaço de liberdade – que é o mais temível.
Quem era o político, depois do 25 de Abril, com que mais se identificava? Que relação tinha com Sá Carneiro, o político mais destacado nascido no Porto?
Havia, não uma convivência, mas um conhecimento próximo das famílias. O Pai do Francisco Sá Carneiro foi advogado de meu Avô. Minha Mãe viu nele, desde muito cedo, as qualidades de um político raro.
O que dizia de Mário Soares e de Cavaco Silva?
Tinha por Mário Soares, e por sua mulher, uma grande simpatia, e afinidades, não só pela vivência numa mesma época, como pela cultura. Era um homem generoso. E a Maria Barroso, não esqueço a última vez que esteve com minha Mãe, já doente, a sua delicadeza, que não era de instituição, mas de uma natural educação da alma. De Cavaco Silva quase nada sei dizer. Mas não teve a mesma proximidade de minha Mãe. Pelo feitio, pelas circunstâncias. Foi o homem que minha Mãe percebeu ser o necessário naquela altura, para o país. E foi importante.
É bem conhecida a relação artística que teve com Manoel de Oliveira. O que pensava dos filmes baseados em livros seus? Gostava do resultado, sentia que eram fiéis à sua obra?
Esse convívio estimulante entre minha Mãe e o Manoel de Oliveira, às vezes ácido, raramente manso, merece uma reflexão mais profunda, um dia. Admiro-os pela energia que um ao outro transmitem através das suas resistências. Se minha Mãe nem sempre concordava com as adaptações dos seus livros, é perfeitamente compreensível. Porque quando escrevia, e a sua escrita é toda ela muito cinematográfica, ela via ao mesmo tempo a passar diante de si os personagens, os cenários, os diálogos, e tudo se altera com o olhar do cineasta. Há como que uma sobreposição de imagens: sobre as do romance, as do filme, o que torna esta uma linguagem intrusiva. O filme passa a ser uma variação do romance.
Qual a relação da sua Mãe com os críticos de literatura? Lia-os? E tinha respeito por alguns? Quem?
No início da carreira teve uma séria e violenta troca de cartas com o crítico Jaime Brasil, do que se arrependeu mais tarde. Com o tempo, tornou-se distraída em relação às críticas.
A sua Mãe tinha algum livro favorito?
O seu livro de companhia – a Bíblia. Terá sido o mais lido e analisado desde sempre. l
A entrevista foi realizada por escrito