Os ossos de Eça de Queiroz – 3.ª Parte

O ambiente em casa dos familiares de Eça de Queiroz era monárquico, católico e até mesmo, por vezes, muito reaccionário. Depois da implantação da República, Emília, a sua filha Maria e a sua irmã Benedita de Castro foram para Richmond (Londres) e juntaram-se à colónia de portugueses que acompanharam o exílio de D. Manuel II,…

6. A descendência de Eça de Queiroz

Quando morreu, Eça de Queiroz deixou quatro filhos dependentes da mulher: Maria de Castro d’Eça de Queiroz (Porto, 1887/Santa Cruz do Douro, 1970), José Maria d’Eça de Queiroz (Londres, 1888/Praia da Granja,1928), António d’Eça de Queiroz (Paris, 1889/Lisboa, 1968) e Alberto d’Eça de Queiroz (Paris, 1894/Lisboa,1938).

Quando vieram de Paris para Portugal, com a mãe, foram todos viver com Benedita de Castro, irmã da viúva de Eça, em Lisboa e em Penamacor (Beira Baixa). Em 3 de Novembro de 1900, Emília estava nesta última terra, como se percebe pela carta que escreveu a Jaime Batalha Reis: “Como tive coragem para o ver morrer, para desmanchar a nossa casinha, para deixar aquela Neuilly tão cheia de recordações, nem sei. Vim para casa da Benedita, para Penamacor, e todos os dias penso, respirando este ar tão puro, e vendo este lindo sol, que aqui o José teria vivido, não nos teria sido levado tão cedo”.

Mais tarde, mudaram-se todos para uma moradia na Granja, mesmo em frente do mar, alugada à família Ramos Pinto, a mesma casa que a família de Sophia de Mello Breyner costumava arrendar (mais tarde, o filho José Maria compraria a casa, ali ficando a viver até ao fim dos seus dias).

Entre os descendentes de Eça de Queiroz havia uma forte tradição monárquica, que se reforçou em 1912, quando um grupo de republicanos, em sessão da Câmara dos Deputados, lhes retirou a pensão do Estado que tanto a viúva como os filhos recebiam do Estado desde 1901.

Estiquemos o fio da memória. Com a morte de Eça de Queiroz, a viúva e os filhos viram-se, aparentemente, em condição material difícil ou precária. Em finais de Setembro de 1900, cerca de um mês após o falecimento do escritor, Bernardo Pindela, o conde de Arnoso, um dos amigos que Eça mais amava e mais respeitava, escreveu uma carta a José Carlos Rodrigues, o director do Jornal do Comércio, do Rio de Janeiro, solicitando fundos para acudir à viúva e aos filhos do romancista português, que se encontrariam em sérias dificuldades monetárias.

A carta dizia assim:

“A morte do querido José Maria Eça de Queirós, tão grande morto para tão pequena terra, deixa na mais negra miséria (como isto é triste de escrever) não só a inconsolável viúva, mas quatro formosíssimas crianças que são seus filhos. Nós aqui, amigos e admiradores de tão grande morto, procuramos obter das Câmaras uma pensão para a viúva. E por subscrição aberta entre nós erigir-se num recanto dum jardim de Lisboa um singelo monumento: o seu busto assente num artístico pedestal. A pensão, porém, que alcançarmos, será sempre muito pequena, quase nada, que seguramente não chegará para se educar, como devem ser educados, os filhos de Eça de Queirós. Assim, foi minha ideia recorrermos ao Brasil, sempre generoso e sempre largo, pedindo a brasileiros e aos nossos compatriotas ali para acudirem a tamanha desventura. E porque Eça de Queirós descreveu na mesma língua que o Brasil fala e porque deu sempre os primores do seu luminoso espírito a tão grande povo — me parece que não será em vão que semelhante apelo se fará”.

No dia 28 de Setembro, o correspondente em Lisboa daquele jornal carioca informava que “Os amigos de Eça de Queiroz estudam com interesse e com amor a melhor forma de adquirir o dinheiro bastante para educar os quatro filhos do romancista. Custa a escrever, mas é uma crua verdade: a viúva e os filhos de Eça de Queiroz ficaram sem pão”.

Emília não só perdera a principal fonte de rendimentos (o vencimento de Eça de Queiroz como cônsul português em Paris), como também parte do recheio da residência parisiense de Neuilly: em 24 de Janeiro de 1901, o navio “St. André”, vindo de França, naufragou na barra do Tejo, consigo arrastando tudo o que havia dentro, e que incluía, entre outras coisas, as obras de arte portuguesas que tinham sido exibidas na Exposição Universal de Paris e uma parte importante dos pertences da família Eça de Queiroz: alguns papéis, quadros de Carlos Reis, de Malhoa, de Veloso Salgado e um retrato do autor de O Primo Basílio, pintado por Columbano, além de mobílias, loiças, etc.

Felizmente, nem o arquivo privado do escritor, nem os livros da biblioteca — muitos deles, posteriormente, roubados da casa da viúva —, nem os livros que deixara prontos ou quase prontos estavam naquele navio. A Ilustre Casa de Ramires, A Cidade e as Serras e as Cartas de Fradique Mendes (cujos finais precisavam de ser revistos) tinham vindo por terra: Emília colocara todas estas obras numa mala e enviou-a por terra, através de Tomás de Sousa Rosa, para casa de Maria Barbosa de Castro Pamplona, sua cunhada.

No dia 15 de Março de 1901, o conde de Arnoso, incansável na sua dedicação à memória de Eça, dirigindo-se à Câmara dos Pares do Reino, onde tinha assento, não regateou elogios à obra do romancista e, falando dos seus altos méritos literários, pressagiou que “enquanto nesta terra, que todos tanto amamos, se falar a língua de nossos pais, (…) os livros de Eça de Queiroz hão-de ser lidos, estudados, admirados, ficando como um padrão imorredouro do nosso tempo. Os povos perpetuam-se pela sua literatura, porque essa subsiste mesmo quando as nacionalidades desaparecem. Quando os que vierem depois de nós fizerem, despidos de todo o preconceito, a história literária de Portugal no século XIX, o nome de Eça de Queiroz brilhará, entre os primeiros inscritos, em letras de ouro nas suas páginas mais refulgentes”.

Depois, propunha que fosse votado o seguinte projecto de lei: “É concedida a pensão anual de 1.200$00 reis a D. Emília de Castro Eça de Queiroz, viúva do eminente escritor José Maria Eça de Queiroz, e a seus filhos Maria, José, António e Alberto” (artigo 1.º) e “Esta pensão será vitalícia para a viúva e, por sua morte, manter-se-á para os filhos varões até à maioridade, ou à conclusão dos seus cursos, e para a filha até ao casamento, sendo isenta de pagamento de quaisquer impostos e paga em mensalidades, a partir da promulgação desta lei” (artigo 2.º).

Em seguida, Hintze Ribeiro, presidente do conselho de ministros, fazendo uso da palavra, declarou que o Governo via com bons olhos a iniciativa, tendo a mesma sido aprovada pela Câmara do Pares na sessão de 26 de Março de 1901, após as intervenções do conde de Magalhães, de Luís da Câmara Leme, de Hintze Ribeiro, do visconde de Chanceleiros, entre outros. Transitando para a Câmara dos Deputados, seria confirmada em sessão de 21 de Maio de 1901.

O projecto entraria finalmente em vigor a 12 de Junho de 1901, com a respectiva publicação no Diário do Governo de dia 15 do mesmo mês. Desde esse dia, a família de Eça passou a receber uma pensão do Estado português.

Nove anos rodaram sobre este episódio, até que, em 1910, se deu a implantação da República. Em 1913, Alberto Eça de Queiroz, o filho mais novo do escritor e aquele de quem menos se sabe, foi para Brasil, onde viveu os dez anos seguintes, trabalhando como jornalista em O País, do Rio de Janeiro.

No breve, mas precioso depoimento que Alberto deixou, em 1923, sobre a fama do pai no Brasil, vemos que ele se surpreendera com a emoção que a obra do pai “despertava nas criaturas mais simples do campo e nas cidades do interior ou nos homens que formam a esplêndida elite mental dos centros cultos”. Referindo-se depois a “uma literatura outrora malsinada”, confessava que “Só aqui comecei a medir a grandeza da obra de Eça de Queiroz”. Segundo ele, no Brasil, os romances do pai ganhavam interesse a cada dia que passava, o mesmo não acontecendo, pela mesma altura, em Portugal.

Entretanto, os dois outros filhos rapazes, António (depois de entrar para a academia militar, em 1909, serviu o exército como alferes miliciano até 1910) e José Maria (este último, funcionário do Ministério dos Negócios Estrangeiros, demitiu-se após a implantação da República), convictamente empenhados na causa monárquica, juntaram-se às forças rebeldes de Paiva Couceiro e com elas se exilariam em Vigo, depois de ali chegarem em finais de Março de 1911.

Em 27 de Outubro seguinte, Emília escrevia a Jaime Batalha Reis, comentando as horríveis notícias dos jornais portugueses e contando que os filhos de Eça de Queiroz se tinham alistado nas hostes de Paiva Couceiro, e que, a partir da Galiza, tinham participado na incursão monárquica daquele ano (tal como, depois, em 1912, a segunda campanha monárquica, igualmente falhada). A participação de ambos nestas revoltas foi relatada por António no livro Na Fronteira, escrito em Londres e editado em 1915 (com esta dedicatória: “Ao nosso Comandante Henrique de Paiva Couceiro e a todos os meus companheiros de jornada”).

Em face disto, começou a circular nos meios republicanos a informação de que a viúva e os filhos de Eça recebiam uma pensão do Estado. Em 11 de Novembro de 1911, Emília, que fora atrás dos filhos e estava em Vigo, no Hotel Europa, escrevia a Batalha Reis: “Há muito que eu esperava que me retirassem a pensão, apesar de ela não ser de meus filhos, mas só minha e por minha morte de minha filha, depois da sua maioridade os rapazes não têm direito a ela. Se a república ma tirar terei de me resignar, pois a afirmação de quem nem conspiro nem nunca conspirei de nada me servirá”.

No dia seguinte, 12 de Novembro, menos disposta a resignar-se, voltava a dirigir-se a Batalha Reis: “entendendo que devo fazer tudo para tentar salvar a pensão que tanto me ajuda a viver, tenho a acrescentar ao que já lhe disse que não há maior prova de eu não conspirar do que ter deixado em Portugal o meu filho mais novo, que foi o único dos rapazes que se não meteu em nada por ser menor e eu portanto ter tido mão nele, embora tenha já 20 anos. (…) os meus dois filhos são maiores, muito independentes e seguem o que a sua consciência lhes dita. Nunca pensei vir para Espanha e agora que cá estou tenho receio de ir para Portugal, para onde iria de bom grado por lá ter o Alberto”.

De nada lhe valeu gastar tantas palavras. Na sessão da Câmara dos Deputados de 19 de Junho de 1912, França Borges denunciou a existência da pensão concedida pelo Estado português à família de Eça de Queiroz. Segundo ele, e de acordo com “as mais fidedignas informações”, esse dinheiro estava a ser aproveitado

“em serviço contra a República e a favor da monarquia. Se a memória de Eça de Queiroz é digna de todo o respeito e de toda a nossa veneração, nós devemos consagrá-la em todos os campos com todo o nosso amor, admiração e piedade, mas o que nós não podemos consentir, necessariamente, é que a memória dele sirva para que o Estado tenha um encargo que representa um meio de combate contra a República.

Ninguém ignora que os filhos do grande escritor, que foi mestre da língua portuguesa, são nossos inimigos, inimigos da República, como tantos que aí andam pelos cafés e pelas ruas a fazer propaganda contra a República, mas que são inimigos que estão, por assim dizer, no campo de batalha, que tem estado nas hostes de Couceiro, prontos a fazerem parte dessa, tantas vezes anunciada incursão, e praticando de facto uma obra de propaganda contra a República e de traição contra o país.

Não se compreende que estes filhos do grande escritor estejam tramando contra a República e contra o seu país, à custa dum subsídio que lhe é dado pelo Estado. Por isso proponho, ou exprimo pelo menos o meu voto, para que se faça uma revisão das pensões que o Estado paga, pensões dadas às famílias dos escritores e homens públicos, e faço os meus votos para que, como é de Justiça, de moral e do próprio decoro da República, se suprima esta pensão à família Eça de Queiroz, que é aproveitada de maneira tão desagradável para a República, e mais do que desagradável, indecorosa.”

Secundado por Alexandre Braga, enviou depois para a mesa um projecto de lei propondo que a pensão concedida à viúva e aos quatro descendentes de Eça de Queiroz lhes fosse retirada, porque dois filhos eram adversos à República, contra a qual, além do mais, se tinham insurgido activamente, participando na luta armada. Em substituição, pedia-se que as verbas pagas a Emília de Castro fossem transferidas a favor da viúva e dos filhos de Rafael Bordalo Pinheiro.

Tendo sido aprovado o projecto de lei, a pensão foi suprimida em Julho de 1912, o que gerou na família de Eça de Queiroz um ressentimento e um ódio ainda maiores contra a I República.

Opinião diferente tinha a irmã de Eça de Queiroz. Comentando as acções monárquicas conspirativas dos sobrinhos António e José Maria, a tia Aurora Amado diria a Jaime Batalha Reis, em carta de 15 de Julho de 1912: “Meu querido irmão se ele vivesse nada disto sucedia” (em Beatriz Berrini, introdução, comentários e notas, A arte de ser pai. Cartas de Eça de Queiroz. para os seus filhos, Lisboa/São Paulo, Verbo, 1992, p. 116).

Quase um século depois, no ano 2000, esta história continuava bem presente na memória da família. No testemunho que deixou sobre a avó (a viúva do escritor), Emília Maria de Castro d’Eça de Queiroz Cabral lembrava que

“terminado o período conturbado da revolução, os meus pais, que, entretanto, tinham casado, vieram viver para a Granja trazendo com eles a minha avó, pois ela não tinha meios para ter uma casa própria. A República tinha-lhe tirado uma pensão de viuvez que o Estado lhe dava até então. No tempo do Presidente António José de Almeida, o Governo ainda lhe chegou a propor que se os seus filhos aderissem à República ser-lhe-ia restituída a antiga pensão, o que, como seria de esperar, não aceitou” (testemunho recolhido pela filha Maria da Graça Eça de Queiroz Cabral Nicolau de Almeida, publicado em Solar: Cadernos de Cultura Gaiense, n. 3, Novembro de 2000, p. 58; número intitulado Roteiro Queirosiano de Vila Nova de Gaia, organizado por Gonçalves Guimarães e Ana Filipa Correia).

O ambiente em casa dos familiares de Eça de Queiroz era monárquico, católico e até mesmo, por vezes, muito reaccionário. Depois da implantação da República, Emília, a sua filha Maria e a sua irmã Benedita de Castro foram para Richmond (Londres) e juntaram-se à colónia de portugueses que acompanharam o exílio de D. Manuel II, último rei português (entre os quais Luís de Magalhães e a filha Joana).

Pouco depois das incursões monárquicas de 1911 e 1912, António casou com Cristina Rino, filha de um abastado proprietário de Alcobaça, e dedicou-se à literatura, aos concursos hípicos e à administração agrícola. Continuando fervorosamente monárquico, juntou-se em 1919, com o irmão José Maria, aos apoiantes da Monarquia do Norte, liderada, também, por Paiva Couceiro, o que os levaria, de novo, a exilarem-se no estrangeiro (José Maria esteve em Espanha e, depois, no Brasil, onde viveu cerca de quatro anos).

Em 1950, no livro Desafronta à memória de Eça de Queiroz (em que se insurgiu contra os biógrafos do pai, em particular João Gaspar Simões, António Cabral e Padre Allyrio de Mello, por serem levianos, imprudentes, tendenciosos e mentirosos), António acreditava que seu pai apoiaria a sua decisão: “Quanta vez não tenho eu sido, entre amigável e azedamente criticado, por ter seguido uma política tão diversa da que disseram ser a de meu Pai! ‘Que teria ele dito, se o tivesse visto nas colunas de Paiva Couceiro, combatendo em Vinhais ou em Chaves, ou pelas Províncias do Norte, em 1919?’ Pois suponho que me não teria censurado, visto que se tivesse assistido aos auspiciosos começos da balbúrdia sanguinolenta que tão acertadamente predisse, teria, para se furtar ao triste espectáculo da época, pelo menos saído de Portugal, e é pena e bem pena que se não possa ler o que inevitavelmente nos teria legado, que teria sido de bem maior alcance do que os meus inúteis esforços guerrilheiros” (Porto, Lello & Irmão, 1950, p. 31).

Tendo-se divorciado, litigiosamente, em 1923, António apareceria depois na direcção de alguns negócios privados, ora na Companhia Agrícola e Fabril da Guiné, ora nos Serviços Aéreos Portugueses, empresa precursora da aviação comercial no nosso país: “Que estivesse à frente da companhia portuguesa de aviação António Eça de Queiroz, filho do famoso romancista, simultaneamente escritor e dandy como o seu pai, foi uma sorte para mim. Tinha então Eça de Queiroz 38 anos. Era um monárquico elegante, um divorciado mundano, um homem viajado e um inestimável cicerone de Lisboa” (César González-Ruano, Memorias. Mi Medio Siglo Se Confiesa a Medias, Madrid, Editorial Renacimiento, 2004, p. 176).

Anticomunista feroz (criou uma revista intitulada Antibolchevista. Publicação mensal do Secretariado Português da Entente Internationale contre le la IIIème Internationale), era um admirador dos regimes fascistas espanhol, italiano e alemão, ao ponto de ter sido condecorado com as comendas da Coroa de Itália e da Águia Alemã. Para ele, Mussolini era um “Redentor” e Primo de Rivera um salvador, pois suprimira “a propaganda da utopia assassina dos povos”.

As posições políticas deste filho de Eça de Queiroz seriam recompensadas durante o Estado Novo. Logo em 1933, foi convidado por António Ferro para integrar o grupo de funcionários que lançaram as bases do Secretariado da Propaganda Nacional (SPN). Ali trabalhou entre 1933 e 1951, primeiro como subdirector e depois como um dos seus directores, tendo publicado alguns artigos (como este: “Manhã de caça em Moçambique”, em O mundo português: revista de cultura e propaganda, arte e literatura coloniais, volume 1, n.º 2, Fevereiro de 1934, pp. 74-78) e proferido comunicações, como esta, de 1945, quando era subdirector do SPN: “O ressurgimento do espírito nacional pelo fortalecimento do espírito legionário” (palestra da série “A Legião e o Comunismo”, ao microfone da Emissora Nacional).

Em meados de 1951, e até 1959, assumiu a presidência da Emissora Nacional, passando depois a administrador da Mozambique Oil Company, em representação do Estado português.

Nos anos em que esteve ligado à propaganda e informação do Estado Novo, António fez algumas conferências, uma delas em Madrid, em Fevereiro de 1947, a convite do Director Geral de Propaganda de Espanha, Pedro Rocamora (a conferência seria publicada em separata da revista Ocidente, n.º 109, volume XXXII, 1947, pp. 5-20), em que se descrevia, a ele e aos irmãos, como “católicos praticantes, patriotas e nacionalistas intransigentes e dois dos mais velhos, meu irmão José Maria e eu, desde os tempos em que, monárquicos por tradição e convicção — seguimos Paiva Couceiro nas suas campanhas contra a ‘balbúrdia sanguinolenta’ dos começos da República, tão admiravelmente prevista por meu Pai, e mais tarde desde a tentativa monárquica de 1918 até ao 18 de Abril, ao 28 de Maio e ao 7 de Fevereiro, datas fundamentais do advento salvador do admirável governo de Salazar, batemo-nos sempre por causas que tendiam ambas para o mesmo fim, que era a grandeza de Portugal dentro duma ordem moral e material que considerámos — e hoje mais do que nunca considero — a melhor, para a minha Pátria” (p. 13).

José Maria, o irmão, era funcionário do Ministério dos Negócios Estrangeiros (pretendia seguir a carreira diplomática) quando a sua vida sofreu uma brusca mudança de rumo, com a instauração da República em Portugal, em Outubro de 1910.

Em 24 de Maio de 1915, José Maria casou, como disse antes, com a prima coirmã, Matilde de Castro, em Inglaterra, tendo como padrinho D. Manuel II. O casal foi depois viver para a Praia da Granja, onde nasceram os cinco filhos, dois rapazes e três raparigas. Pelo meio, José Maria continuou envolvido em movimentos monárquicos e anti-republicanos, como a revolta de Monsanto, em 1919, que o obrigariam a exilar-se por breves períodos (em Vigo, naquele ano, depois da Monarquia do Norte, e em Madrid, após as revoluções de 1920 e 1921). Em 1964, publicou o livro Santuário bravio: Os animais surpreendentes da Gorongosa e safaris em Moçambique.

Em 1916, com o fim do arrendamento de Tormes ao caseiro, e depois de casar de com um primo coirmão, José de Castro Pamplona, a filha do escritor, Maria Eça de Queiroz, instalou-se com o marido na quinta, em Santa Cruz do Douro. Daí em diante, Maria iria dedicar-se à divulgação da vida e obra do pai.

Em 1945, por ocasião do Centenário da Lello e com os direitos de autor do pai, Maria começou as obras de ampliação e conservação da casa, para ali transferindo uma parte dos pertences da casa de Neuilly, que antes tinham ido para a Granja, desde papéis a objectos, passando pelo mobiliário, como a secretária onde Eça escrevia de pé ou o armário onde guardava os seus manuscritos. Por outro lado, recuperou parte dos móveis que já existiam na casa, antes das visitas do escritor, por exemplo, um arcaz de sacristia e a cadeira onde Jacinto, em A Cidade e as Serras, se deixa convencer pelo arroz de favas.

Até ao fim da sua vida (em 1970, com 83 anos), Maria Eça de Queiroz desempenhou presença destacada naquela região. A 15 de Fevereiro de 1946, descerrou uma lápide em Santa Cruz do Douro, com a seguinte legenda (retirada d’A Cidade e as Serras): “Serra tão acolhedora, serra de fartura e de paz, serra bendita entre as serras”.

E em 23 de Agosto de 1968, os jornais noticiaram a inauguração de um monumento a Eça de Queiroz em Baião (sede de concelho de Santa Cruz do Douro), com a filha a descerrar um medalhão de bronze com a efígie do romancista, feito pelo escultor Henrique Moreira, rodeado por duas lápides, uma das quais com uma frase de Eça de Queiroz retirada da sua correspondência com Eduardo Prado: “Esta nossa terra é sem dúvida a obra prima do grande paisagista que está nos céus”. Na ocasião, Maria Eça de Queiroz pronunciou um discurso sobre o seu pai e as afinidades com a região do Douro, de como Eça se sentia ligado àquela região.

               7. Do Alto de S. João para Santa Cruz do Douro

Na Quinta de Vila Nova, a chamada “Casa de Tormes”, no concelho de Baião, vivia desde 1916 uma filha do escritor, Maria Eça de Queirós, ano em que casou com um primo coirmão, José de Castro, filho de Manuel, o 6.º Conde de Resende.

Depois da morte do marido, coube-lhe em herança aquela quinta, cuja posse passaria depois, com o falecimento de Maria Eça de Queiroz de Castro, para o seu filho único, Manuel Benedito de Castro.

Se nem Alberto (que faleceu novo e solteiro, com 44 anos de idade) nem António tiveram descendência, José Maria teve cinco filhos — dois rapazes (Manuel e José Maria Eça de Queiroz) e três raparigas (Maria das Dores Eça de Queiroz de Melo, Matilde Maria de Castro Eça de Queiroz e Emília Maria de Castro Eça de Queiroz) —, enquanto Maria, a descendente mais velha do escritor, teve uma rapariga (que morreria muito nova) e um rapaz.

Este último, de seu nome Manuel Pedro Benedito de Castro (1917-1978), casou com Maria da Graça Salema de Castro, a principal responsável pela criação da Fundação Eça de Queiroz, como adiante se verá.

Com a morte de Maria de Castro d’Eça de Queiroz (filha mais velha do romancista), Manuel Pedro herdou da mãe o terço da herança que lhe cabia e o tio António, que não teve filhos, fê-lo herdeiro universal, ficando assim com dois terços dos direitos de autor da obra do avô. Além disso, por via dos Condes de Resende (origem da mulher de Eça de Queiroz), ficou também com a casa e a quinta de Vila Nova (que adquiriu o nome literário de Casa de Tormes, assim crismada pelo romancista em A Cidade e as Serras).

Como Manuel Pedro e Maria da Graça Salema não tiveram filhos, os descendentes mais directos do autor d’A Tragédia da Rua das Flores eram os cinco filhos de José Maria com a prima direita, Matilde de Castro (1890-1964): José Maria, Manuel, Maria das Dores, Matilde Maria e Emília Maria d’Eça de Queiroz.

Entretanto, em 1988, a Câmara Municipal de Lisboa (CML) avisou os descendentes directos de Eça — as duas netas sobreviventes, Maria das Dores Eça de Queiroz de Melo e Emília Maria de Castro d’Eça de Queiroz Cabral — de que o talhão do jazigo dos Resendes, no cemitério do Alto de S. João, estaria prestes a ser vendido em hasta pública (provavelmente por questões de dívidas ao município).

O estado deplorável do jazigo do escritor naquele cemitério lisboeta já fora antes motivo de crítica. Em 1945, o ano em que se assinalo o Primeiro Centenário de Eça de Queiroz, o Século Ilustrado publicou um suplemento especial. Aí, entre outras coisas, criticava-se a indiferença das autoridades: Eça de Queiroz “não tem, nesta mesma cidade em que dorme o último sono, uma jazida condigna com a sua envergadura de figura excepcional na vida portuguesa. (…) Jaz em mausoléu Alexandre Herculano e repousam também nos Jerónimos, como o grande historiador, Garrett, João de Deus e Guerra Junqueiro; descansam em sepulcros especialmente erigidos Gomes Leal, Fialho de Almeida, Oliveira Martins, César Machado e outros que poderíamos citar. Eça de Queiroz, contudo, encontra-se anonimamente num jazigo de família, sem ao menos uma inscrição a indicar a quem passe encontrarem-se ali os seus restos mortais. Na rua 17, do cemitério Oriental, aquela em que se encontra o monumento sob o qual está enterrado o jornalista Alves Correia e que foi levantado devido a subscrição pública aberta nos jornais, e ainda o mausoléu construído pela Câmara Municipal em 1925 e destinado aos beneméritos da cidade encontra-se logo a seguir ao pequeno cotovelo que a rua forma, do lado esquerdo de quem desce, o jazigo n.º 2884, onde está inscrito o nome de D. Alexandre de Castro Pamplona, cunhado do romancista. (…) Já vários articulistas e biógrafos de Eça se têm referido ao caso, estranhando-o — entre eles, muito recentemente, Bourbon e Meneses. Têm toda a razão, pois que, com umas dezenas de contos, perpetuar-se-ia a memória do insigne autor de A Cidade e as Serras, edificando-se um mausoléu que, tal como a obra deixada pelo escritor, fosse majestoso e imponente, embora com a sobriedade exigida pelo fim a que se destinaria” (p. 13).

Segundo o bisneto José Maria d’Eça de Queiroz, na entrevista que lhe fiz em Oeiras, no dia 4 de Outubro de 2023, o presidente da República, Mário Soares, quando soube que a CML se preparava para vender o talhão dos Resende, que incluía os restos mortais de Eça de Queiroz, e considerando que o autor de Os Maias merecia honras de Panteão Nacional, entrou em contacto com alguns elementos do Partido Socialista e com Teresa Patrício Gouveia, então secretária de Estado da Cultura, no primeiro governo de maioria absoluta de Aníbal Cavaco Silva.

Na sequência dessas conversas, em Dezembro de 1988, deu entrada na Assembleia da República o Projecto de Lei N.º 318/V, que preconizava a “Trasladação dos Restos Mortais de Eça de Queirós e Aquilino Ribeiro”. Por baixo, as assinaturas dos deputados socialistas Raul Rêgo, Osório Comes, João Almeida, António Braga, Tito de Morais, Jorge Sampaio, António Almeida Santos e Manuel Alegre.

O texto do projecto, que baixou à comissão parlamentar dos Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, dizia no ponto 2: “De entre os escritores portugueses dos últimos 100 anos dois vultos à espera de um gesto se destacam: Eça de Queirós e Aquilino Ribeiro. Sobre as cinzas de Eça de Queirós, aliás, se levantaram recentemente problemas no Cemitério do Alto de São João, tendo chegado a pôr-se a hipótese terrível de serem atiradas à vala comum!”.

Com o intuito de perceber se estariam de acordo com a trasladação dos restos mortais de Eça de Queiroz para o Panteão Nacional, alguém do PS e/ou a própria secretária de Estado da Cultura encontraram-se com as netas do escritor ainda vivas, Maria das Dores e Emília Maria, juntamente com Maria da Graça Salema de Castro, viúva de Manuel Pedro (neto de Eça de Queiroz). A resposta só pode ter sido negativa, pois o projecto do PS ficou sem efeito, não havendo quaisquer registos de que tenha sido debatido na Assembleia da República.

Colocadas perante a possibilidade de os restos mortais de Eça de Queiroz irem para o Panteão, as duas netas, em conivência com Maria da Graça Salema de Castro, opuseram-se ao projecto do Partido Socialista. Ninguém sabe o porquê desta recusa.

A história política e ideológica dos descendentes de Eça de Queiroz, atrás resumida, ajuda-nos a perceber o que poderá ter estado por trás daquela recusa da trasladação dos restos mortais do escritor para o Panteão Nacional, em finais da década de 1980. Limito-me a formular uma hipótese: muito provavelmente, a companhia de Aquilino Ribeiro, maçon do Grande Oriente Lusitano, republicano e opositor ao Estado Novo, não terá agradado às netas. O facto de a proposta juntar o nome do avô ao de Aquilino Ribeiro — escritor que, segundo algumas vozes, participou nos bastidores do regicídio de 1908, que levaria à implantação da República em 1910 — terá sido determinante na decisão de impedir a ida de Eça de Queiroz para o Panteão Nacional.

Emília Maria de Castro d’Eça de Queiroz Cabral, uma das netas, lembraria mais tarde, em Novembro de 2000, que a sua avó, mulher do escritor, “em 1910, aquando da implantação da República, monárquica dos quatro costados que era, exilou-se em Londres com os seus filhos”.

Em alternativa ao Panteão, as netas, em conivência com Maria da Graça Salema, decidiram que os ossos de Eça deveria ficar perto da filha e do neto, ambos sepultados em Baião. O que, de resto, respeitava a vontade da avó, viúva do escritor, que, pouco antes de morrer, pretendera juntar pais e filhos num jazigo novo, em Verdemilho.

Em rigor, não se sabe de quem partiu a ideia, se de uma das netas ou da viúva de Manuel Pedro. Se a ideia original não foi das netas, ao menos não a contariaram. Provavelmente, porque a filha primogénita de Eça (Maria Eça de Queiroz de Castro) estava ali sepultada, tal como o filho dela, neto do escritor (o falecido marido de Maria da Graça Salema). Juntamente com as questões políticas, haveria também uma razão afectiva.

Para o queirosiano Alfredo Campos Matos não havia quaisquer dúvidas de que a ideia partira de Maria da Graça Salema. É essa a sua opinião num livro coeditado pela Fundação Eça de Queiroz, quando ainda era presidida por Maria da Graça:

“A ela se deve a iniciativa de trasladar em 1989 os restos mortais de Eça do cemitério do Alto de S. João em Lisboa, para o cemitério de Santa Cruz, que se avista da eira de Tormes e se situa mais abaixo, a meio caminho do rio Douro. Algum tempo antes agitara-se na Câmara de Lisboa a sugestão de que se deveria retirar o escritor do anonimato em que permanecia no Cemitério do Alto de S. João, para o levar para os Jerónimos. No mesmo dia da trasladação de Eça para o cemitério de Santa Cruz, os restos mortais de seus filhos José Maria, António e Alberto eram também aí sepultados. Haviam sido trasladados do Alto de S. João em Lisboa, António e Alberto, do Porto, José Maria. ‘Aqui descansa entre os seus José Maria Eça de Queiroz’, lê-se na pedra tumular. Apenas Emília de Castro, sua mulher, não pôde ser trasladada do cemitério de Arcozelo, nas cercanias da granja, onde jaz desde 1934, por se desconhecer a localização da sua sepultura” (A. Campos Matos (introdução e anotações), A Casa de Tormes. Inventário de um património, Lisboa, Fundação Eça de Queiroz e Livros Horizonte, 2006 (2ª edição), p. 19).

Fosse como fosse, em Setembro de 1989, depois de afastada a hipótese do Panteão Nacional, as descendentes de Eça fizeram publicar nos jornais da capital o seguinte anúncio: “A família de José Maria Eça de Queiroz informa os amigos e admiradores do escritor que será rezada Missa por sua intenção, no dia 15 do corrente, pelas 9h30, na Basílica da Estrela, após a qual os restos mortais seguirão para o cemitério de Santa Cruz do Douro, Tormes, onde repousará junto aos seus”.

Nesse dia 15 de Setembro, uma reportagem da RTP lembrava que os restos mortais de Eça tinham ficado esquecidos no jazigo do Alto de São João e informa o seguinte: “(…) passados que são 89 anos, Eça de Queirós volta definitivamente a Tormes. Tudo começou aqui, em Lisboa, quando um belo dia os restos mortais do escritor foram encontrados num dos muitos jazigos abandonados no cemitério do Alto de S. João. Esta manhã, na Basílica da Estrela, houve missa de corpo presente, logo após o que a urna seguiu para jazigo de família em Santa Cruz do Douro. (…) Embora se saiba, pela sua correspondência, que ele não queria ficar sepultado em Lisboa, mas em Verdemilho, berço da família, os seus netos optaram por Tormes”. Feitas as exéquias, um carro dos bombeiros proveniente de Baião, levou os ossos do escritor para o norte do país.

8. Eça de Queiroz e Santa Cruz do Douro

Qual a ligação de Eça de Queiroz a Santa Cruz do Douro, tirando a parte ficcional do conto “Civilização” e do romance A Cidade e as Serras? Em 1892, após a morte da 4ª condessa de Resende (que falecera dois anos antes, em 1890), mãe de Emília de Castro e sogra de Eça, o casal recebeu em herança a Quinta de Vila Nova, em Santa Cruz do Douro, concelho de Baião, a duas horas da Régua. Naquele ano, já eles viviam em Paris, Emília pediu ao marido que fosse com a sua irmã, Benedita de Castro, visitar a propriedade.

Foi assim que, em Maio de 1892, Eça e a irmã da mulher foram conhecer as propriedades que tinham herdado (Benedita ficara com umas terras em Beire, perto de Penafiel, hoje Casa do Gaiato, e Emília com a quinta de Santa Cruz do Douro).

Ali chegados de comboio — o único acesso à quinta era através da estação de caminho de ferro do Douro —, com a natureza rodeando-o de todos os lados, Eça sentiu-se deliciado, depressa se deixou cativar pelos encantos selvagens daquela terra. Inebriado pelos aromas dos bosques e das lavras, rodeado pelo maravilhoso silêncio do campo, escreveu à mulher, em 28 de Maio, dizendo-lhe que Santa Cruz era

“(…) extremamente bela. O caminho íngreme e alpestre da estação do C.F. até à Quinta é simplesmente maravilhoso. Vales lindíssimos, carvalheiros e soutos de castanheiros seculares; quedas de água, pomares, flores, tudo há naquele bendito Monte. A Quinta está situada num local alto, soberbo, que abrange léguas de horizonte e sempre interessante. Como terra creio que é excelente (os próprios caseiros o confessaram) e tão fértil que nem quase necessita adubos.

Como quinta não é quase habitável – a não ser para quem tenha a agilidade, a constância e a experiência das cabras. É toda em socalcos. Logo adiante da casa o monte desce atá ao Douro; logo por trás da casa o monte sobe até aos cimos onde há uma ermida. O que sobe e o que desce é tudo admirável de vegetação, de verdura, de águas, de sombras, de belas vistas – mas para passear por lá é quase necessário andar de gatas. Isto não quer dizer que não haja em volta da casa um espaço plano, dez vezes maior talvez do que o nosso jardim de Neuilly, e onde cabem aido, eira, horta, etc.

Mas é uma pena ver logo adiante, tão pitorescos e frondosos sítios, e não poder ir lá livremente senão com todas as varas especiais e sapatos ferrados, de que usam os membros do Clube Alpino.

Seria necessário gastar dinheiro, e bastante, em fazer através de todo aquele belo monte, caminhos transitáveis e fáceis.”

Já a casa senhorial parecera-lhe medíocre: “Enquanto à casa é feia, muito feia; e à fachada mesmo pode-se aplicar, sem injustiça, a designação de hedionda” (talvez por isso, e porque necessitava de grandes obras de reabilitação, Eça acabaria por hipotecar a casa).

No dia seguinte, a 29 de Maio, Eça descrevia a Eduardo Prado, a quem como irmão queria, o espectáculo da natureza em Santa Cruz do Douro:

“Também fiz, com a Benedita, uma excursão ao Minho e Douro, que eu não via há muitos anos. Esta nossa terra é sem dúvida a obra-prima do grande paisagista que está nos Céus. Que beleza! E tudo toma o doce estilo da Écloga. Tudo canta. Cantam, trabalhando, cavadores e ceifeiras, até canta o carro de bois, o velho carro do Latium, levando o mato pelas azinhagas!… O pior são as camas, nas hospedarias. Mas em compensação que maravilhosas caçoilas de arroz, e que divinos anhos pascais assados no forno! Não posso compreender como este é um país falido. em toda a parte onde estive não vi um palmo de chão onde se pudesse assentar o pé sem perigo de esmagar uma semente. As flores silvestres, não tendo já onde florir, procuram refúgio nos telhados. A terra toda parece prenhe de pão. E no ar tudo é vinha e azeitona em flor…”

Também Benedita enalteceu as belezas naturais da região. Em 25 de Maio de 1892, escrevia à irmã: “Fomos esperados na estação pelos caseiros e viemos a cavalo por aí acima, encantados com esta região abençoada. Não se imagina o aspecto de riqueza e fertilidade que tudo isto tem; a vista para a outra banda do rio é linda e nesta há lindas árvores de fruta, enormes castanheiros, muitas vinhas, oliveiras e água por toda a parte. É lindo”.

Sobre os caseiros, considerava-os “encantadores, têm a finura e generosidade da gente do povo. Põem tudo à nossa disposição e acham que nunca comemos bastante. Deram-me ontem uma óptima ceia e daqui a bocado vão-nos dar um banquete, que nos há-de sustentar até amanhã”.

Quanto à casa, tal como Eça, não a considerou digna de encómios: “Ontem mesmo demos uma grande volta pela quinta, que é muito grande e bem situada toda. A casa é que não é grande coisa. Está sólida, não tem graça nem se lhe pode dar. Contudo sempre me parece que seria bom dar-lhe um jeito. É agradável ter-se a certeza de possuir um tecto nosso e quanto a luxo, é coisa perfeitamente dispensável. O que os pequenos por aqui medrariam!”.

De regresso ao Porto, a Santo Ovídio, Eça confrontou-se com o cunhado Alexandre, que lhe exigiu a Quinta como penhor de uma quantia de tornas que o casal lhe devia pagar. O que Alexandre não sabia era que Eça já a hipotecara, para saldar dívidas urgentes (a hipoteca só seria redimida anos depois da morte do escritor, graças aos direitos de autor que Emília foi recebendo da editora Lello).

Em 1898, Emília idealizou passar as férias do Verão em Santa Cruz do Douro. Com alguma antecedência, para avaliar o estado em que se encontrava a casa, Eça foi à quinta, acompanhado por Luís de Castro, sobrinho de Emília e filho do 5.º conde de Resende (com quem o escritor viajara pela Terra Santa e pelo Egipto), tendo ali permanecido durante quatro dias.

Quando chegaram, o caseiro não estava na estação com os cavalos para os levar à Quinta, que ficava bem lá no alto (tal aconteceria a Jacinto e a Zé Fernandes, em A Cidade e as Serras).

Em 4 de Junho de 1898, Luís de Castro escreveu à tia, contando-lhe as proezas gastronómicas a que tinham sido submetidos: “Cá estou juntamente com o Queiroz neste paraíso. Não sei se conhece isto mas é uma beleza. Só gostava de a ver aqui com os pequenos. Achei perfeitamente o Queiroz muitíssimo mais gordo e nada velho e comendo-lhe e bebendo-lhe que parece um rapaz de 20 anos”. Dias depois, a 7 de Junho, o sobrinho voltava ao contacto com Emília: “Gostei muito de Santa Cruz que é lindíssimo, tem vistas muito bonitas mas para si que gosta pouco de subir deverá achar de difícil ascensão. Em cima é mais plano, isto é tem caminhos que mais ou menos circundam o monte. O Queiroz contar-lhe-á as comezainas que lá fizemos e as conversas com o José Pinto à sobremesa que o Queiroz pouco ouvia porque geralmente adormecia atordoado com tanto frango tanta carne de porto e tanto vinho que via beber. Para o ano devem vir para cá, há-de fazer muito bem aos pequenos trepar por estes montes, comer fruta das árvores e beber daquela água que aqui cai por todos os lados. Há só uma coisa que destoa, é o povo que é tão sujo, tão andrajoso e tão humilde que até nem se acredita que sejam homens”.

Em 2 de Junho daquele ano, Eça comunicou à mulher que

“À chegada senti uma inesperada desilusão — St.ª Cruz não me pareceu tão belo! Até, Deus me perdoe, achei a serra um pouco banal e mesquinha. Mas não foi impressão duradoura. Dois ou três passeios bastaram para me fazer experimentar l’ancien charme. Descobri mesmo que é possível passear por caminhos planos, e todavia pitorescos. A serra tem bocados em que se humaniza.

A casa, essa, inteiramente me convenceu da sua inabitabilidade. Nunca seria possível vir passar aqui dois meses de férias por gosto este ano, mesmo com o alegre propósito de roughing it. Não há quartos, não há mesmo cozinha. Realmente, a casa, tal qual está é um vasto celeiro. Excelente para guardar milho, impossível para conter uma família.

 (…) A casa precisa uma larga obra antes de ser habitável. Não é obra dispendiosa, porque a propriedade dá a pedra, a madeira, etc. Mas é obra lenta, obras de longos meses!

Portanto para este ano, é perder a ideia de veranear em St.ª Cruz. Insisto nisto, porque na tua última carta ainda aludias à esperança de vir aqui para Agosto e Setembro. Resta também ainda saber se tu gostarias destes sítios. O Luís pensa que não. Eu também desconfio que não. Tu detestas a quinta dos Castanhais em Sintra, toda em socalcos, descidas, precipícios. Pois St.ª Cruz é isso mesmo em grandioso. (…) Andar de gatas, agarrado às fragas, é frequente nestes passeios de prazer. Eu gosto. Tu gostarias?

Em quanto aos pequenos penso que adorariam — e que só lhes seria benéfico sítio tão alpestre.”

Perante a descrição do marido, Emília chegou a pensar em vender a Quinta e comprar outra, em Coimbra ou Setúbal. A 6 de Junho daquele ano, declarava ao marido que “Ficou hoje dissipada a ilusão Santa Cruz — ni pensons plus. Nas férias iremos a umas caldas, talvez les Voges, se o Jules Simon aprovar, e lá passaremos um tempo. Enquanto a Santa Cruz, o meu grande desejo era vendê-la, mas bem; creio que é certo termos comprador. Devia-se primeiro procurar uma quinta, talvez perto de Coimbra, ou melhor ainda, de Setúbal, com casa sofrível, habitável, e depois fazer o negócio, venda aqui, compra acolá; — eu queria sítio de bonitas vistas, frescas águas e boas frutas, mas não um despenhadeiro como descreves — e desta vez sem entusiasmo”.

Eça voltaria àquela região, pela última vez, na Primavera de 1899. Em 11 de Maio desse ano, em carta à marquesa de Palmela, referia o “anho assado no espeto em cima da eira” que ali comera, “como nos tempos de Abrão”. Dias depois, a 15 de Maio, ao conde de Arnoso, elogiava a boa hospitalidade camponesa, dizendo que

“parei nas serranias do Douro, em Santa Cruz, onde fiquei dois dias a descansar (quase devia dizer a convalescer), do tremendíssimo almoço com que o meu rendeiro me honrou, logo na manhã da chegada, às dez horas duma doce manhã! O prato mais ligeiro era um anho assado. Na cabidela entrava toda uma capoeira. Sobre a mesa, em vez de garrafa, pousava um pipo! Honrei o festim: depois foram os dois dias, os dois lentos dias de cansaço e digestão, sentado numa pedra, debaixo dum castanheiro.”

Apesar de todos os inconvenientes descritos por Eça, não há dúvida que o escritor readquiriu, em Santa Cruz do Douro, o gosto do campo (um gosto que o levaria a registar a riqueza de sensações transmitidas pela terra no romance A Cidade e as Serras). É isso que se depreende, também, das palavras que a viúva, Emília, confiou ao papel, na carta que dirigiu a Ramalho Ortigão, de 24 de Junho de 1901:

“Mando-lhe hoje o exemplar das Cidades e Serras como me pede. (…) com que infinita tristeza e comoção o tenho lido e relido, por vezes parece-me ouvir falar o José com os seus exageros, a sua bondade e o seu espírito. Quanto desejo irrealizado eu vejo naquele livro! Ele tanto apetecia viver no campo, em Portugal! Nestes bons ares de Penamacor, todos os dias eu penso como a sua saúde teria melhorado, se tivéssemos com efeito deixado a cidade e vindo para as serras viver a boa vida simples! Mas ele só pensava nisso como um fim de vida e esse fim ainda nos parecia longe!”

Com base nessa e noutras fontes, Luís dos Santos Ferro — ilustre queirosiano, amigo da filha do escritor, Maria Eça de Queiroz de Castro, com quem conviveu em Tormes, Santos Ferro acompanhou o projecto de criação da Fundação Eça de Queiroz e foi membro da Comissão Executiva para a Comemoração do Centenário da Morte de Eça de Queiroz — considera que Tormes era o sítio “onde o escritor ambicionava uma vida simples, com os filhos em liberdade no grande ar… desiderato que Maria d’Eça de Queiroz veio a cumprir” (Dicionário de Eça de Queiroz (organizado e coordenado por Alfredo Campos Matos, p. 1103).

Tormes continuaria sempre na posse da família. Em 18 de Janeiro de 1901, Emília escreveu a Ramalho Ortigão, pedindo-lhe informações sobre a quantia necessária para desipotecar a propriedade de Santa Cruz do Douro: “Eu tenho uma quinta sobre a qual pesa uma hipoteca, e quero saber se juntando o dinheiro do Lello ao que possuo, completarei a soma precisa para pagar a hipoteca”.