O SNS virou Paródia Nacional

O SNS também não foge à regra e já chega às rábulas da revista à portuguesa. Que o diga a nova revista em exibição no Teatro Maria Vitória

Falar do Serviço Nacional de Saúde é falar de um tema que desperta logo o interesse da comunicação social, dos profissionais do setor e da população em geral, ou não fosse ele uma das maiores conquistas do pós-25 de Abril. Eu próprio já o abordei por diversas vezes neste espaço, com base na minha experiência de médico de família e dos cargos diretivos por onde passei. Não querendo ser repetitivo, volto apenas a insistir no ponto que me parece mais importante: a necessidade de uma profunda reestruturação. Vou mais longe: o SNS não terá viabilidade se não for totalmente remodelado. Até agora têm sido feitas coisas com pouco significado, mas o mais importante continua por fazer. E porquê? Porque teria de se mexer na legislação, impor regras, cortar a direito, e ninguém está disposto a perder eventuais regalias nem direitos adquiridos, tanto os profissionais como os utentes. Olhando, pois, aos ‘efeitos secundários’ que tal medida podia acarretar, é mais do que evidente a falta de coragem para dar o primeiro passo – e daí a reestruturação ser constantemente adiada.

Os portugueses olham hoje para o SNS com desconfiança e tristeza, embora o vejam como um mal necessário, pois as alternativas no mercado não estão ao alcance da bolsa de qualquer um. Mas há uma característica que nos distingue dos outros povos e que, por maiores que sejam as dificuldades à nossa volta, nunca perdemos: o humor. O SNS também não foge à regra, e já chega às rábulas da revista à portuguesa. Que o diga o novo espetáculo em exibição no Teatro Maria Vitória, onde o número hilariante ‘Quem quer ser utente do SNS’ põe a nu as deficiências do sistema, fazendo desse e de outras realidades do dia a dia uma Paródia Nacional. É precisamente este o nome do espetáculo que o empresário Helder Freire Costa, o resistente histórico do teatro de revista em Portugal, volta a apresentar naquela emblemática sala do Parque Mayer. Da autoria de Flávio Gil, Miguel Dias e Renato Pino – trio de respeito que se mantém há vários anos, cujo trabalho de excelência já não é novidade para nós –, esta magnífica revista diverte-nos com o humor sarcástico característico deste património cultural, pelo qual muito se tem lutado para não deixar cair. Do elenco fazem parte os veteranos Paulo Vasco e Miguel Dias, a fadista Cidália Moreira e ainda Marina Albuquerque, Cátia Garcia, André David Reis, Teresa Zenaida, Marcos Marques, Beca Loureiro, Bea Moreira, Lucila Pereira e um grupo de excelentes bailarinos.

Não vou, obviamente, falar muito do espetáculo, destacando aqui os dois números que mais me marcaram, por razões diferentes: o quadro hilariante do SNS transformado em concurso televisivo, e outro, um número sério, que aborda o problema da saúde mental. No primeiro caso, o grande prémio em jogo é, nem mais nem menos, ter um médico de família. E isto porque, hoje em dia, “em Portugal ter médico de família não tem preço” e “para ganhar um médico de família não é preciso ter sorte, é preciso um milagre!”. Para isso, porém, há que acertar na pergunta: “Quanto tempo, em média, um utente do SNS espera por uma consulta de especialidade? Hipótese A: ‘8 meses’; hipótese B: ‘Até morrer’; hipótese C: ‘Fica bom antes de marcarem a consulta’; hipótese D: ‘Mas isso é pergunta que se faça?’”. Mas em minha opinião o ponto mais alto da revista aborda o tema grave da Saúde Mental, para o qual todos temos de estar atentos. Com uma espantosa interpretação de uma jovem com pouco mais de vinte anos – Teresa Zenaida –, ficamos arrepiados perante a complexidade de uma situação tão traiçoeira. ‘Sozinho na multidão’ é um número muito forte, escrito pelo talentoso Flávio Gil, que nos deve fazer pensar e refletir profundamente. “A dor não se mede, não se julga. Cada um sente-se à sua maneira”. Ou: “Não ignorem quando alguém vos pedir ajuda, não desvalorizem. E não ignorem, sobretudo, o vosso pedido de ajuda”. Olhando para o número com outros olhos e como profissional de saúde, considero este momento grandioso e de importância capital. Obrigado, Flávio, por chamares a atenção para este problema candente, pelo qual pouco se tem feito. Parabéns, Teresa, por estares à altura deste enorme desafio! Um pouco por tudo isto, deixo o convite aos leitores: venham ver a revista!