Aos 66 anos, Joaquim de Almeida reparte a sua vida entre Sintra e Santa Mónica, Califórnia, para onde se mudou quando foi fazer a série 24 Horas, com Kiefer Sutherland. Está numa fase em que já não gosta de sair como antigamente: prefere deitar-se cedo e acordar cedo, e à noite ficar a ler ou a ver uma série. Nascido em 1957 numa família privilegiada, em adolescente deu algumas dores de cabeça aos pais. Depois saiu de casa e foi estudar teatro – primeiro para Viena, depois para Nova Iorque. Trabalhou num bar que pertencia a mafiosos e chegou a servir às mesas em reuniões do crime organizado.
Mais tarde, recorreu a essa experiência para construir os seus papéis de criminosos, em filmes como Perigo Imediato (1994), com Harrison Ford, ou agora em O Último Animal, de Leonel Vieira, que acaba de se estrear nas salas portuguesas. Rodado no Brasil, O Último Animal conta a história de um jovem, Didi, que quer ter um emprego honesto para sair do ciclo de pobreza e de violência da favela, mas acaba por ficar preso nesses meandros. Joaquim de Almeida veste a pele de Casimiro Alves, um emigrante português que controla o negócio ilegal do jogo do bicho, que se mistura com as escolas de samba, a corrupção e o narcotráfico.
Em conversa com a LUZ nas vésperas da estreia, o ator fala sobre a infância, a fase de formação e as diferentes realidades com que se tem cruzado pelo mundo fora ao longo da sua carreira.
Na entrevista recente que deu à Sábado havia uma fotografia sua com oito anos na Suíça e outra com os seus pais em Baltimore, nos EUA. A família vivia numa moradia em Alvalade, no bairro de S. Miguel. Imagino que tenha tido uma infância altamente privilegiada.
O meu pai tinha os laboratórios farmacêuticos Jaba, éramos oito filhos, tínhamos de ter uma casa grande, não é? Se bem que agora… Continua a ser uma casa grande, mas já não corresponde à ideia que eu tinha quando era miúdo. Nós tínhamos para aí cinco quartos, com os meus pais éramos dez, portanto dormíamos dois por quarto. Depois viviam as empregadas em baixo…
E as férias na Suíça?
Andámos todos na Escola Alemã e todos os verões íamos – foi uma coisa óptima que o meu pai fez – com um padre e grupo de miúdos para a Suíça, para uma casa grande, sempre em sítios diferentes. Eu fui quatro anos seguidos, dos dez aos 14. No primeiro ano, tive umas saudades… No segundo ano queria era ficar lá mais tempo [risos]
Era um miúdo rebelde? Há aquela história de ser expulso da escola por acertar com uma pedrada no diretor. Todos os pais querem que os filhos sejam bons alunos, bem comportados…
Está bem, mas naquela altura nós éramos oito e eu era um dos grandes problemas da família, e havia um irmão mais velho que tinha umas questões de saúde. Essa rebeldia era também porque o meu irmão não podia sair tanto e a mim cortavam-me um bocado as vazas. Hoje há uma doença que é o défice de atenção e não sei quê. Na altura era-se mal comportado e pronto, não havia défice de atenção.
Tinha quê, uns 16 anos quando foi o 25 de abril?
17.
Já tinha consciência política ou não ligava muito?
Então não tinha? Andava no MAESL, que era o Movimento Associativo dos Estudantes do Ensino Secundário de Lisboa. Antes do 25 de Abril andei muitas vezes a distribuir panfletos, depois fui ainda militante do PUP, Partido de Unidade Popular, que era maoista.
Na altura era um bocado moda, não? Hoje que sabemos o que foi o maoismo ficamos com os cabelos em pé.
Naquela altura era muito moda. Era o que era, o Durão Barroso estava no MRPP. Repare que eu vinha de uma família… O meu pai era completamente antifascista, muito anti-Salazar e anti-Caetano. Dava dinheiro para o CDE [Comissão Democrática Eleitoral, formada por opositores do regime para disputar as eleições legislativas de 1969]. Era patrão das artes, do Adriano Correia de Oliveira, do Luiz Goes, etc., e fazia essas festas lá em casa com todos esses músicos de esquerda. O Carlos Paredes trabalhava como delegado de propaganda médica dos Jaba, também ia lá muitas vezes tocar com o Fernando Alvim. A PIDE não era muito amiga, de vez em quando ia-nos lá bater à porta. Dos meus irmãos, cinco foram para os laboratórios. Mas eu não me via a trabalhar num escritório. E aos 16 anos dei uma volta pela Europa, fui à Dinamarca, Finlândia, Suécia, Paris, e disse: ‘Eu não fico nesta terra’.
Isso antes do 25 de Abril.
Em 73. Portugal antes da revolução era um atraso de vida, muito fechado. Um tipo chegava lá fora…
Respirava-se outro ar?
Exatamente. Era outra coisa. Tinha uma alegria… Lembro-me perfeitamente de em Copenhagen sair de um clube de jazz às três da manhã e ir para outro club de jazz ao lado que abria às três da manhã. A mentalidade era completamente diferente. Via as mulheres na Suécia e na Dinamarca e olhava para as minhas irmãs e dizia: ‘Por amor de Deus!’. A maneira de vestir, de estar, não tinha nada a ver. Foi em Paris que conheci esta atriz francesa e, quando fui ver os ensaios dela, percebi que queria fazer teatro. Cheguei a Portugal e fui ao Conservatório Nacional para saber o que tinha de fazer para entrar na escola de teatro. Acabei o segundo ano, quando íamos para o terceiro ano fechou por falta de verbas. Em 75 ainda fui fazer teatro de rua com a Teresa Ricou, fomos para Paris, uma série de atores.
Faziam espetáculos e recebiam umas coroas?
Fizemos desde Paris até Roma. Depois voltámos a Portugal. Mas para estudar não havia absolutamente nada. Tinha de se entrar numa companhia de teatro, ou assim, não era fácil. Portanto em janeiro de 76 resolvi ir-me embora à procura de um sítio para ir estudar. Acabei por ficar em Viena. Fiquei os primeiros seis meses em casa do Victorino d’Almeida, andei com ele a fazer aqueles programas de televisão.
Conhecia-o de onde?
Conhecia-o porque eu fazia figuração especial na ópera do S. Carlos e fiz a ópera dele, ‘O Canto da Ocidental Praia’. Quando cheguei a Viena telefonei-lhe. Perguntou-me onde é que estava. ‘Estou num hostel’. ‘Então vem cá para casa’. Fiquei lá uns seis meses. Mas conheci lá a minha primeira mulher, uma pianista húngara, casámos e fomos para os Estados Unidos. E depois aí comecei a estudar.
Representação.
Estudei na Lee Strasberg, também estive na Stella Adler, estudei com ela, estudei com o Nicholas Ray, um grande realizador da altura… E, pouco a pouco, comecei a trabalhar.
Normalmente há uma fase mais difícil até à afirmação.
Eu fui para lá em 76, fiz o meu primeiro filme em 1980, o primeiro filme profissional, grande, em 81, portanto…
Foi rápido.
Tive uma certa facilidade. Em 82 já foi com o Michael Caine, o Richie Gere, O Cônsul Honorário, um filme grande, e em 86 fiz o filme dos [irmãos] Taviani [Buongiorno Babilonia] que abriu Cannes em 87. A partir daí nunca mais parei de trabalhar.
Enquanto estudava nos Estados Unidos ainda trabalhou num bar…
Trabalhei em vários. Mas houve um no Soho, que nessa altura era uma grande mistura entre artistas, atores e muito mafioso…
Nessa altura havia muito crime em Nova Iorque, não era? [Em 1980 a taxa de homicídios em Nova Iorque era três vezes a atual]
Ui! Mas eu achava piada àquela Nova Iorque, via-se que era perigosa mas era uma Nova Iorque também excitante. Fui à abertura do Studio 54, vi uma série de coisas. Sobretudo para quem estava habituado a um país como o nosso, estar em Nova Iorque, com todos os eventos, as galerias melhores do mundo, as grandes festas… Vinha cá uma vez por ano no Natal e ao fim de duas semanas queria ir-me embora.
Porque achava provinciano?
Completamente. Os meus irmãos iam todos ao aeroporto receber-me… E Nova Iorque era o sítio para estar, para estudar teatro. Eu só fui para a Califórnia há 20 anos, porque acabei por me fartar de Nova Iorque, é muito cansativo, muita gente. Ainda tenho lá um apartamento, em Brooklyn, onde vive o meu filho.
Disse que assistiu a ‘coisas incríveis’ nesse bar onde trabalhou. Fiquei curioso.
Havia o Bruce, que estava sempre lá no bar, e que eu vi fazer certas coisas… Uma vez apareceu-me com as mãos cheias de sangue. E eu disse-lhe: ‘Estás com as mãos cheias de sangue’. Quando voltou de lavar as mãos, contou-me: ‘Epá, martelei-lhe a cabeça toda’. Então havia um gajo que estava a dirigir o bar do lado, que eram eles que controlavam, e o gajo tinha ido fumar um charro – esta era a parte da máfia contra a droga.’Eu já lhe disse mil vezes para não fumar, o gajo desrespeitou-me porque foi lá fora com uma namorada e vieram os dois a cheirar a marijuana, e eu tive que lhe martelar a cabeça’. Eram coisas que um gajo ficava assim… Ele às vezes fechava o bar para reuniões da máfia, e os gajos só aceitavam duas pessoas, em quem tinham confiança para estar lá a servir – era eu e a Denise. Portanto nós ouvíamos as coisas todas. Posso contar-lhe outra história. Havia lá um cowboy. O que é um cowboy? É um gajo da famiglia italiana, um mafioso, tinha estado preso, saiu e chamavam-lhe ‘cowboy’ porque extorquia no território dos outros. Um dia disse que não pagava a conta. Eu chamei o dono e ele: ‘Não faças nada, quando o Bruce passar aí diz-lhe que esse gajo anda aí a chatear’. Disse ao Bruce: ‘Este gajo anda aqui, diz que não paga…’. ‘Não te metas com ele, esse gajo é perigoso’. Um dia li uma notícia no jornal a dizer que o gajo tinha sido encontrado morto na parte de trás de um carro em Canal Street. Estava no território dos outros, limparam-lhe o sarampo. Esse a mim não me fez pena nenhuma, porque era um chato de todo o tamanho. Mas víamos muita coisa. E a polícia também era muito corrupta.
Iam lá receber o soldo?
Havia este gajo, o Bob, e outro, o David, que eram amigos mas fingiam que não se conheciam. Iam para o bar, sentava-se cada um de um lado do bar e bebiam shots de Rémy Martin Louis XIII até acabar a garrafa.
Isso é caríssimo.
Naquela altura custava 75 dólares cada shot! Um deles andava de Jaguar E, com salário de polícia… Completamente doidos. Chegavam lá com uma garrafa de Tropicana, sumo de laranja, a metade, eu pegava naquilo, ia para a cozinha e despejava vodca lá para dentro até encher. E eles levavam aquilo e iam conduzir, dar as suas voltas. O first precint [jurisdição policial da ponta sul de Manhattan] naquela altura foi considerado dos mais corruptos da polícia, estava mesmo ao lado de Little Italy e de Chinatown…
Essa experiência foi-lhe útil enquanto ator?
É evidente que quando comecei a fazer os maus da fita baseei-me muito nestes gajos que conheci. Se bem que os maus da fita que eu conheci eram bastante mais simpáticos do que os que eu fazia…
Esse mundo é um bocado fascinante, ao mesmo tempo.
É como o mundo deste filme [O Último Animal]. O próprio ator que faz de Didi nasceu no Maranhão, foi para o Rio de Janeiro viver na favela, o irmão foi chefe da favela e foi assassinado aos 24 anos. Aos 24 anos era chefe da favela. Para ele, este filme é muito real.
Associamos muito o Brasil ao crime. O Joaquim tem trabalhado no Brasil. Já se cruzou com essa realidade?
Em São Paulo nunca vi, porque fico sempre em Jardins, que é uma zona de que eu gosto muito e onde não se vê criminalidade. Aliás está muito protegida porque tem muita gente com dinheiro. No Rio de Janeiro cruza-se muito mais. A favela acaba onde começam os bairros chiques. Quando fizemos este filme estávamos em São Conrado, eu saía do hotel e a cem metros tinha a Rocinha. Estive em épocas em que o Rio estava muito perigoso. Lembro-me de um amigo que veio de Nova Iorque, eu estava a filmar no Chile e encontrámo-nos no Rio de Janeiro, a meio caminho. Ele foi assaltado na rua por cinco miúdos, reagiu, saltaram-lhe em cima, tiraram-lhe o dinheiro, levaram-lhe tudo, ficou com as calças todas rasgadas. Mas eu tive alturas em que andava à vontade e nunca senti problema nenhum. O Rio tem tido épocas diferentes. Cada vez que o real esteve mais alto, ficava melhor. Com a baixa do real aquilo começa a criar problemas sociais e o crime vai à cidade.
Parece que se sente cada vez mais à vontade neste papel do criminoso de meia-idade, bem estabelecido… Dá a ideia de que faz aquilo sem esforço,
Esforço há sempre, tenho que criar os personagens e tentar que sejam um bocadinho diferentes. Em filmes da Europa nunca costumei fazer de mau da fita, faço mais padres, cardeais e papas [risos]. Agora nos Estados Unidos, comecei por fazer um filme com o Harrison Ford, o Perigo Imediato, e depois o Desperado, com o Banderas, fiz maus das fita que ficaram famosos, e a partir daí…
Foi uma imagem que lhe ficou colada à pele?
Pois. Continuo a fazer filmes na Europa que não têm nada a ver com o mau da fita, a diferença é que os filmes americanos têm uma visibilidade muito maior, e as pessoas lembram-se sempre de mim é dos maus da fita.
Isso também tem a ver com o sotaque. É um paradoxo de Hollywood: podemos ver nazis a falar inglês, Napoleão a falar inglês, mas alguém com um sotaque latino já tem de ser chefe de um cartel. Nunca pensou aperfeiçoar o inglês para ter mais margem de escolha, para poder fazer outros papéis?
Não, porque eu trabalhava por ter sotaque. Eu quando comecei a fazer papéis em Hollywood foi exatamente quando começaram a usar pessoas com sotaque verdadeiro, e depois como falava francês, falava italiano, falava espanhol, podia sempre fazer coisas diferentes. Trabalhava por ter sotaque, se não era mais um.
Igual aos outros.
A minha carreira foi criada por eu ter sotaque. É evidente que pensei sempre: ‘Não vou lá chegar acima como os americanos’, mas senti que trabalhava sempre porque tinha sotaque. Foi uma vantagem. Os miúdos agora tentam todos falar com sotaque americano.
O ator põe coisas suas, dá sugestões para o papel, ou limita-se a executar o que lhe pedem?
Neste filme com o Leonel Vieira trabalhámos muito, até a nível de guião, eu dizia-lhe: ‘Isto não me parece aqui muito…’
Não era credível?
Havia coisas que não me soavam bem e depois na montagem, também. Isso nos grandes filmes americanos é mais difícil de fazer. Mas também acontece. O Harrison Ford teve uma conversa comigo, em que eu fiquei a olhar ele, parecia que me estava a insultar. E disse-lhe: ‘Não fales assim comigo, estou aqui com a minha mulher e o meu filho’. E o gajo começa-se a rir: ‘Estava só a testar, porque acho que o teu papel tem de crescer. O outro gajo é o da droga, mas tu é que és o da inteligência por trás dele, e eu vou lutar contra ti’. E assim foi, o papel cresceu imenso. O gajo estava-me ali a testar para ver se eu tinha os colhões para lhe dizer o que achava. Nos filmes na Europa temos mais…
Mais liberdade?
Fazemos mais parte do filme.
Não são só uma peça na engrenagem, é isso?
Agora, nos filmes grandes, nos Estados Unidos, temos lá a nossa roulotte, vêm-nos chamar e lá vamos trabalhar. Tem-se menos importância.
Parece que o Robert DeNiro ficou irritadíssimo com o DiCaprio por estar sempre a improvisar nos diálogos do último filme do Scorsese.
Eu agora também fiquei um bocado chateado neste filme com o Jake Gyllenhaal porque o gajo mudava tudo. Às tantas disse-lhe: ‘Tem um bocadinho de respeito pelos outros. Estás sempre a mudar. E se eu começar a falar em português e fizer a cena toda em português? Ou em francês? Como é que vais fazer? Estás aí com inglês e mudas-me a cena toda’. ‘Ah, mas não ficou melhor?’ ‘Não sei. Para mim não ficou melhor. Andei um bocado a improvisar, nunca dizes a mesma merda…’. Não me dei bem, há gajos…
Mais difíceis?
Com os mais velhos nunca tive problema nenhum. Nem com os Gene Hackmans, nem com os Harrison Fords. Estes gajos mais novos devem ter a mania que são… vedetas!
Aqui há 20 ou 30 anos o Joaquim tinha fama – e se calhar o proveito – de ser um bocado boémio.
Com aquela idade é-se sempre um bocado. Se não é um bocado chato. Agora há estes gajos todos vegans e não sei quê, que é uma chatice. Também tinha o restaurante, o Porcão, aberto até tarde, estava lá muitas vezes. Com trinta e tal anos vivia ali na Lapa, ia sair, também com a minha mulher, depois cheguei a uma altura em que disse: ‘Vamos embora daqui’. E fomos viver para Sintra, acalmei muito mais. Um gajo chega a uma altura em que começa a ficar cansado.
As coisas que gosta de fazer hoje não são as mesmas que há 20 ou 30 anos?
Sou cada vez menos social. Geralmente almoço com amigos, sempre no mesmo sítio, à noite deixei de sair praticamente. Tenho 66 anos, um gajo já não tem tanta paciência para andar por aí. Gosto mais de ficar a ler um livro, estar a ver uma série, a ver um filme, ver futebol, sei lá. Acho que isto vem com a idade, também. E depois gosto de me levantar cedo. Sou de deitar cedo e acordar cedo. Os meus amigos músicos gostam todos de deitar tarde e levantar tarde. Eu é o contrário. Gosto é de trabalhar de manhã.
Teve sempre trabalho, nunca teve alturas de menos procura?
Este ano não trabalhei muito. Ainda fui até aos Estados Unidos, tive de lá estar em janeiro e fevereiro, e voltei para ver as obras em minha casa. Depois também houve a greve dos atores e dos escritores [guionistas]. Foi bom porque no ano anterior tinha trabalhado muito. Durante muitos, muitos anos, estava a acabar um filme e já estava a preparar o outro, fazia três, quatro filmes por ano, em línguas diferentes, em sítios diferentes. Vivia praticamente só em hotéis. Torna-se cansativo e não era exatamente o ideal para a família… O meu filho mais velho, até aos seis anos, viajou muito, ia sempre com a mãe nos filmes que eu fazia. Depois, com a escola, começou a ser mais difícil.
Teve de se fixar.
Com a minha filha mais nova foi mais difícil porque eu separei-me da mãe dela muito mais cedo. Fui para a Califórnia para fazer o 24 horas, e depois resolvi mudar-me para lá, e a mãe dela não se adaptou. A minha filha era muito pequena, e eu tinha mesmo de vir a Portugal para estar com ela. Entre filmes vinha sempre um bocado cá para estar com ela.
E nessa vida entre cá e lá, às vezes quando está fora e olha para o país isto não lhe parece meio cómico, meio trágico?
Acho um bocado uma comédia e uma tragédia o que se passa com os nossos governos, o que se passa com os bancos, o que se passa com os políticos. E ninguém vai dentro, não há ninguém que vá preso. Parece que as pessoas se esquecem, voltam a votar nos mesmos. Isto deve ser o único país em que as pessoas foram condenadas e voltam a ser reeleitas. Outras fogem para o Brasil, voltam e são reeleitas… O português parece que não aprende. E a Justiça não funciona, isso é um dos grandes problemas que eu vejo em Portugal. Não há justiça, e não há vergonha. Sai lá fora nos jornais que temos dos governos mais corruptos. O que é que eu acho? Eu pergunto é o que acham os estrangeiros que vieram para cá viver.
Se calhar é uma realidade que lhes passa um bocado ao lado…
A mim passa-me um bocado ao lado também porque eu não trabalho cá. Tivemos 40 anos de Salazar, e mais seis de Caetano, fizeram uma revolução e agora temos estes dois partidos a ver quem vai para o poder para roubar mais. Porque quando vemos a maneira de os políticos viverem neste país… Com os salários que eles ganham não podem viver daquela maneira.
Mas olhamos para os Estados Unidos e também é um manicómio.
Se o Trump voltar para o poder tenho a impressão que aí volto definitivamente.
Portugal tem os problemas que tem, mas a América também não é perfeita.
Portugal tem problemas mas também tem coisas boas. Come-se bem, as pessoas são afáveis. Agora, os salários são muito baixos, sinceramente não sei como é que os portugueses vivem com tão pouco dinheiro. Depois conheço uma série de gente que vive acima das possibilidades, uns trabalham para o Governo, outros porque se endividam. A dívida aos bancos deve ser enormíssima, as pessoas utilizam o cartão de crédito mais do que podem…
Estando lá fora consegue ver esses problemas com mais clareza?
Nos Estados Unidos vê-se muita pobreza, também. Eu estou um bocado farto de Los Angeles – em Santa Mónica não tanto, mas vai-se para Venice e a quantidade de vagabundos nas ruas é impressionante. E doidos. Como a Califórnia tem bom tempo, há muitos sítios em que lhes dão dinheiro para eles se meterem na camioneta para irem para a Califórnia. A praia de Venice está insuportável.
Mas vivem quê, em tendas?
Em tendas, na rua… Gajos com casas de milhões têm tipos lá fora a viver em tendas, a defecar na rua… Então com o covid foi uma desgraça.
Já atingiu a um estatuto que lhe permite só fazer o que gosta, poder escolher o que faz?
Hoje em dia estou bem na vida, foram 42 anos a trabalhar, pus dinheiro de parte, investi, está tudo bem. Se me oferecem coisas de que não gosto mesmo, não faço.
Mesmo que paguem muito?
Quando são muito bem pagas a pessoa acaba por fazer. Não sou fã dos Fast and Furious, mas com o dinheiro que pagavam, fui fazer. Esses filmes de ação grandes pagam sempre imenso dinheiro, porque aquilo vende. E não é só o dinheiro que nos pagam na altura, é o dinheiro que vamos fazer de direitos de autor.
Tem ainda algum sonho por cumprir?
Nunca tive assim grande sonho… Gosto de ser surpreendido, ler um guião e dizer: ‘Isto está-me a apetecer fazer’. O problema é que nos oferecem muitos guiões, nós lemos e pensamos: ‘Epá, que chatice!’ E não queremos fazer. Isso é o que acontece mais. Mas de resto estamos bem! Gosto de estar em Portugal, mas gosto também de ter a possibilidade de ir para lá, percebe?
Claro. E não lhe acontece ter as coisas mas não ter o tempo para usufruir delas?
A coisa boa do ator é que dei a volta ao mundo a fazer filmes. E estamos às vezes dois meses num sítio, quatro meses noutro sítio, três meses noutro… Temos a vantagem de conhecer o mundo como ele é. Em vez daquele gajo que vai passar duas semanas ali, anda a passear, a tirar fotografias, e não vê nada. Não conheceu as pessoas, não conheceu a realidade do país. E eu acho que no cinema acabamos por conhecer a realidade do país onde filmamos.
Pensava que os atores viviam um bocado numa bolha.
Não, porque estamos lá, vivemos lá, as equipas são geralmente de lá, acabamos por sair com as pessoas, conhecer as pessoas e a maneira de eles viverem. Eu preferi conhecer o mundo assim. Às vezes dizem-me ‘Então e as férias?’. Eu nas férias vou para casa, quero é estar em casa. [risos] Quero lá mais viagens, mais hotéis… Agora como estou cá muitas vezes gosto de ir até ao Alentejo para casa de amigos, ou de ir para o Norte, acho o Norte muito bonito. Um gajo mete-se no carro, vai para uma estalagem, daquelas coisas bonitas. Agora ir para hotéis… Disso já eu estou farto!