O conjunto de textos intitulado “Os ossos de Eça de Queiroz”, que João Pedro George publicou no Nascer do Sol de 27 de Novembro a 1 de Dezembro, ultrapassa em muito o debate de ideias sobre o conceito e pertinência do Panteão, dedicando-se sobretudo à devassa infundada da Fundação Eça de Queiroz (FEQ) e de uma família.
O que aí escreveu e propagou motiva este direito de resposta, que faço como representante da FEQ.
Antes, vejo-me obrigado a realçar que os artigos de George, apesar da aparência que o Nascer do Sol lhes decidiu emprestar, não podem ser confundidos com textos jornalísticos. Se o fossem, relatariam os factos com rigor e exatidão, interpretando-os com honestidade – assim dita o código ético da profissão. O seu autor ouviria as partes com interesses atendíveis e comprovaria os factos relatados. Distinguiria com clareza o facto da opinião. Não faria acusações sem provas. Combateria o sensacionalismo.
O autor enviou-me, há umas semanas, um laudo inquisitório mascarado de perguntas, de onde já se retirava uma pequena parte das insinuações que agora fez. Observando o teor das perguntas, e não sendo João Pedro George jornalista, nem me informando que estaria a escrever para um jornal (tão-só que escrevia um “ensaio” para o qual solicitava as respostas), optei por não responder.
Desta feita, George utiliza o espaço que o Nascer do Sol lhe concede, e onde o “ensaio” passou a uma longa sequência de artigos apresentados à guisa de reportagem jornalística, para, entre outros, veicular os seguintes erros, omissões e distorções (umas vezes em discurso direto, outras socorrendo-se, com pouca coragem, de citações de terceiros cuja veracidade não se deu ao trabalho de verificar):
– Que o anterior presidente da FEQ, Afonso Eça de Queiroz Cabral, ter-se-ia aproveitado da suposta fragilidade de Maria da Graça Salema de Castro (fundadora da FEQ) para se insinuar na instituição de modo a obter ganhos, supõe-se que monetários. Que fique muito claro: desde 2007, altura em que Maria da Graça Salema de Castro se encontrava de perfeita saúde, Afonso Eça de Queiroz Cabral trabalhou sempre pro bono e abnegadamente para a FEQ, primeiro como administrador e depois como presidente. A sua dedicação graciosa foi não só indispensável para o normal funcionamento da FEQ, como também o foi para o bem-estar da própria fundadora. Com acompanhamento próximo do conselho de administração, bem como das quatro sobrinhas de sangue da fundadora, esta concordou que seria melhor passar a viver num lar, de onde, nos meses em que aí permaneceu antes de morrer, continuou a presidir à FEQ.
Estes factos, que não são refutáveis, contrariam as calúnias de José Maria Eça de Queiroz, bisneto do escritor e um dos proponentes da providência cautelar contra a trasladação, e de Rodrigo Fragateiro, casado com uma irmã deste (também ela proponente da providência cautelar), e em tempos um dos administradores da FEQ.
Quanto a José Maria Eça de Queiroz, diz que “o meu primo Afonso Cabral começou a aparecer em Santa Cruz do Douro numa altura em que a Maria da Graça já estava muito fragilizada”: como referi, Afonso Eça de Queiroz Cabral exerceu funções a partir de 2007, muito antes de a fundadora estar “fragilizada”, o que aconteceu particularmente no último ano de vida, em 2015. E termina: “quando ficou pior, puseram-na num lar [Centro Social de Santa Cruz do Douro]. Foi nessa altura que Afonso Cabral assumiu a presidência”. Sobre o lar já restituí a verdade. De resto, a presidência de Afonso Eça de Queiroz Cabral foi assumida, e só podia ter sido assumida, depois da morte de Maria da Graça Salema de Castro, cujo cargo, como o próprio George indica, era vitalício. Ora, vitalício – de acordo com qualquer dicionário, talvez excepto os que George usa – quer dizer “destinado a durar toda a vida”.
Quanto a Rodrigo Fragateiro, prova-se a sua perfeita incompetência como administrador ao dizer que, por volta de 2010, a FEQ atravessava “uma gravíssima situação financeira provocada pelo fim dos direitos de autor”. Os direitos de autor de Eça terminaram muito antes da existência da FEQ, que, tendo sido instituída em 1990, nunca dispôs desses rendimentos para se sustentar. De resto, a difamação que João Pedro George se compraz em divulgar, sem sentido crítico e sem prova dos factos, tem variadas mentiras. Entre outras: ao contrário do que o próprio Rodrigo Fragateiro diz, não se demitiu, antes não foi convidado a continuar pela então presidente; a fundadora, ou qualquer membro do conselho de administração, nunca usou, junto de entidades privadas ou públicas, o apelo “salvem o Eça”, apenas alertou, quando pertinente, para a sua situação financeira; e Rodrigo Fragateiro indica que a “solução” para a crise que atravessávamos antecede a actuação de Afonso Eça de Queiroz Cabral, quando sabe perfeitamente que o então administrador e depois presidente foi instrumental para estabilizar a situação financeira da FEQ, implementando uma nova estratégia de gestão que passou pela construção do restaurante “Tormes” com fundos comunitários e apoio do município, adjudicando a exploração da vinha, aumentando o valor do bilhete de admissão, cortando gastos desnecessários, promovendo a adesão de mecenas e patronos, etc.
Do rol de insinuações propagadas pelo artigo, as que visam o carácter e idoneidade de Afonso Eça de Queiroz Cabral são de todas as mais aberrantes e inaceitáveis. Digo-o como representante de uma instituição que lhe deve muito, mas também o digo como filho. Os factos desmentem o artigo, não seria preciso mais. Mas quem, como eu, testemunhou diariamente desde os dezassete anos a entrega desinteressada de Afonso Eça de Queiroz Cabral à FEQ não honraria tal exemplo se ficasse calado.
– Além disso, o texto insinua, frequentemente escondendo-se atrás de citações, que a FEQ não cumpre o seu desígnio e que está ao serviço de alguns familiares de Eça de Queiroz, levantando-se a ideia de “morgado”, “feudo”, e outros que tais.
Para sustentar esta história, George omite culposamente que desde a sua constituição todos os administradores e demais membros dos órgãos sociais, bem como o anterior presidente e o actual, trabalham exclusivamente em regime pro bono. Apenas Maria da Graça Salema de Castro, enquanto presidente vitalícia, recebia um usufruto por conta da doação da casa e do espólio. Classifico esta omissão de culposa porque seria facilmente comprovável, já que os relatórios de contas da FEQ, e todos os documentos legais a que uma instituição deste cariz é obrigada, são publicados anualmente e encontram-se disponíveis no nosso site.
A proximidade com a família, sem a qual a FEQ não teria sido constituída, levou a que desde sempre, além de Maria da Graça Salema de Castro, alguns descendentes de Eça de Queiroz gostassem de participar, dispondo graciosamente do seu tempo em prol de uma causa cultural e de serviço público. O único retorno que tiveram foi a alegria de trabalharem para o bem cultural comum.
Nunca foi desígnio da FEQ, não está nos seus estatutos ou em qualquer documento, que a presidência seja assumida por um membro da família; não há sequer a sugestão de quotas familiares no conselho de administração. Aconteceu, até agora, por força da proximidade e do currículo de quem tem assumido os cargos.
– Citando terceiros sem contraditório, George aceita a ideia de que o espólio da FEQ está “fechado a sete chaves como se fosse propriedade privada da família”, e por isso impedido de “ser estudado e dado a conhecer ao público que por ele se possa interessar”. Esta tão aberrante mentira refuta-se simplesmente com a verdade: a casa-museu de Tormes está aberta ao público seis dias por semana e o seu arquivo acessível a quem o queira consultar, além de dispor do Núcleo Luís Santos Ferro, uma das maiores e melhores queirosianas do país. Em 2022, tivemos um total de 6499 visitantes, 22% dos quais alunos do ensino obrigatório, e só neste ano, até 1 de Dezembro, os números ascendem a 7723.
Já para não referir centenas de iniciativas, ao longo de mais de trinta anos, que cumprem plenamente o sentido de serviço público que nos guia. Destaco apenas algumas, visto que João Pedro George não se deu a esse trabalho: a edição de 28 números da revista Queirosiana, agora em parceria com o Centro de Literatura Portuguesa da Universidade de Coimbra, os Seminários Queirosianos, o Prémio Literário Fundação Eça de Queiroz/Fundação Millennium bcp, no valor de dez mil euros, atribuído, entre outros, a Djaimilia Pereira de Almeida, Frederico Pedreira e Joana Bértholo, e – para não me alongar – as Bolsas de Residência Literária Eça de Queiroz, em parceria com a Imprensa Nacional e com a DGLAB, que são inegavelmente o mais expressivo programa de residências literárias remuneradas em Portugal.
Além dos planos de actividades dos últimos dez anos, um resumo de 67 páginas com o currículo da FEQ está disponível no nosso site para quem, ao contrário de João Pedro George, tenha curiosidade em conhecer o nosso historial.
– Que a FEQ falhou nas suas funções porque “nunca parece ter exercido qualquer influência ou pressão no sentido de salvar o palacete” de Verdemilho, em Aveiro (aí viveu Eça de Queiroz a primeira infância), que “nunca mereceu da FEQ, que se saiba, qualquer atenção”.
O autor, desfilando o seu aparente conhecimento da matéria em não um, mas cinco longuíssimos artigos, consegue em duas frases denunciar a sua própria leviandade: “nunca parece”, “que se saiba”. Pois bem: a FEQ tentou, há alguns anos, sem sucesso, sensibilizar o executivo da Câmara Municipal de Aveiro (mediante contacto conjunto de Maria da Graça Salema de Castro e Campos Matos) para a recuperação desse imóvel – que, importa sublinhar, não nos pertence, facto que George sonegou. Acrescento que o imóvel está há várias décadas em ruínas, muito antes da própria constituição da FEQ, sobrando apenas parte da fachada.
A FEQ, como George também quis omitir, não tem nem podia ter capacidade financeira para adquirir e recuperar essa ruína. A ideia de que não adquirir e recuperar uma ruína em Aveiro é uma falha nossa, denotando dessa forma pouco comprometimento com a memória de Eça, é simplesmente uma bizarria.
– Que a FEQ boicotou a “Exposição Eça de Queiroz”, em São Paulo, ao negar “o empréstimo de qualquer objeto do espólio do escritor”. A exposição, como o próprio George reconhece, nunca chegou, seja como for, a acontecer; quando confrontada por Campos Matos com a ideia da exposição, a FEQ manifestou disponibilidade para ceder cópias, fotografias e demais material de apoio que se achasse necessário, mas não para enviar peças únicas sem cabais garantias de segurança.
A menção à cobertura do risco de perda da secretária onde Eça escrevia “por um seguro elevado” expõe ao ridículo a narrativa do autor: obviamente, nenhum seguro cobre a perda de uma peça de valor incalculável, porque imaterial, e a temeridade com que se sugere que deveríamos ter-nos prontificado a enviar partes essenciais do espólio de Eça para o lado de lá do oceano correndo o risco de que elas – e não o seu valor calculado por uma seguradora – não regressassem a Portugal põe a nu o propósito panfletário do autor. Imagine-se o que diria o polemista George se, pelo contrário, a secretária se tivesse perdido no Brasil, deixando-nos, contudo, com uma bela indemnização.
Veja-se o contraponto decorrido anos mais tarde, entre Novembro de 2018 e Fevereiro de 2019: fruto de uma parceria com a Fundação Calouste Gulbenkian, que ofereceu todas as condições de segurança, normal contacto entre instituições e curadoria de Isabel Pires de Lima, a FEQ cedeu gratuitamente a esmagadora maioria do seu espólio – sem esquecer a secretária – para uma exposição que teve cerca de trinta mil visitantes, muitos dos quais escolares.
Referindo-se aos supostos “casos” da ruína de Aveiro e da exposição de São Paulo, João Pedro George escreve: “Enquanto estas coisas acontecem, a grande preocupação da Fundação Eça de Queiroz parece ser a trasladação dos ossos do escritor para Lisboa”. George terá a sua percepção do tempo, mas convém dizer que a ideia da exposição ocorreu em 2011 e o imóvel encontra-se em ruínas há cem anos, pelo que apontar a iniciativa da panteonização (votada pela Assembleia da República em Janeiro de 2021) como concomitante só serve para efeitos dramáticos.
– Que a trasladação de Eça para o Panteão é um cavalo mediático utilizado pela FEQ, parte da família e alguns políticos para cumprir um qualquer propósito grotesco que não apenas o de honrar Eça com a homenagem última que o país dedica aos maiores da sua história.
Note-se o seguinte facto: em grande medida, o mediatismo deste caso decorre da oposição judicial, tardia e infundada, de uma parte minoritária dos descendentes. Tanto assim é que a trasladação foi aprovada, sem pompa mediática e por unanimidade – ou seja, por todas as bancadas parlamentares – pela Assembleia da República há quase três anos. O mediatismo só surge verdadeiramente aquando da providência cautelar, que apenas foi pedida a uma semana da data da cerimónia, marcada para 27 de Setembro deste ano.
Realce-se também, porque George decidiu esconder, que as duas decisões do Supremo Tribunal Administrativo (STA) sobre a providência cautelar pedida por seis bisnetos do escritor – que se opuseram à maioria familiar dos seus primos, a uma proposta da FEQ, que detém o jazigo onde se encontram os restos mortais, e a uma decisão unânime na Assembleia da República – foram taxativas e arrasadoras para todo e qualquer argumento reivindicando a ilegalidade ou inconformidade do acto. Face a isto, João Pedro George decidiu realçar, de uma decisão preliminar com cinco páginas e de um acórdão com sete, apenas um parágrafo acessório, justamente o que mais servia aos seus argumentos.
Entretanto, porque não bastou desrespeitar uma maioria familiar, uma votação democrática do Parlamento e duas decisões do STA, os mesmos seis bisnetos decidiram recorrer. Assiste-lhes esse direito dentro do STA, como a qualquer requerente de uma providência cautelar, mas prevejo que sejam mais uma vez chamados à razão.
Além de explorar a questiúncula familiar, sempre com erros factuais e dando voz a insinuações caluniosas, há também o suposto desagrado regional. O que oculta George? Que não é só na família que a oposição à trasladação é largamente minoritária. Também em Baião, e em Santa Cruz do Douro, o tema não agita multidões, tendo até sido bandeira eleitoral de uma candidatura derrotada à Junta de Freguesia local nas últimas eleições autárquicas – e a noticiada manifestação à porta da FEQ, em Setembro último, teve pouco mais de vinte participantes, numa freguesia onde habitam 1654 pessoas.
Diga-se também, já que os artigos de George não o fazem, que a iniciativa sempre contou com o apoio da Câmara Municipal de Baião e do seu presidente, tendo inclusive a Assembleia Municipal aprovado, por maioria, um voto de congratulação.
Por último, fica o iníquo da tese: que a FEQ tem motivos obscuros para querer que a memória de Eça seja imortalizada no Panteão Nacional. George, que acha que falhámos nos nossos propósitos por supostamente não termos sensibilizado para a recuperação de uma ruína, acha também que precisamos de motivações políticas – ou, pior, monetárias – para promover essa homenagem ao escritor.
Poderia prosseguir o relatório de todas as mentiras, omissões e distorções de João Pedro George, mas seria tão longo e maçador quanto os seus artigos. Fica reposta a verdade no que diz respeito às insinuações mais graves, que teriam o seu colorido num fórum obscuro da Internet. Sendo o Nascer do Sol um órgão de comunicação social, os textos apresentados sob a aparência de jornalismo não podem passar sem emenda.