Tenho muita estima por Cavaco Silva, e considero-o, de longe, o melhor primeiro-ministro desde o 25 de Abril.
Entrevistei-o várias vezes enquanto chefe do Governo e Presidente, e julgo que ele apreciou especialmente essas entrevistas, pois foram as únicas que publicou nos seus livros.
Embora não cultive a intimidade com jornalistas, longe disso, nas vésperas de sair de Belém teve a amabilidade de me convidar para uma última conversa de despedida, coisa que não terá feito a muita gente.
Admito, pois, que a estima seja mútua.
Ao longo da sua vida pública, Cavaco escreveu artigos na imprensa em ocasiões estudadas, que abalaram o mundo político.
Recordo textos seus depois de ter deixado de ser ministro das Finanças do Governo de Sá Carneiro, escritos de parceria com Eurico de Melo, que fragilizaram profundamente Balsemão, então líder do PSD e primeiro-ministro.
Também me lembro de um artigo chamado O Monstro, que arrasava o volume da despesa pública.
E doutro sobre o erro de Portugal construir dez estádios para o Euro 2004.
E quem não se recorda do texto sobre a má moeda, que, como Jorge Sampaio depois admitiu, contribuiu fortemente para a demissão de Pedro Santana Lopes?
Nesta semana, Cavaco Silva publicou mais um artigo, agora sobre as ‘contas certas’.
Segundo ele, a expressão ‘contas certas’ foi «inventada pelo poder socialista» para esconder a má governação.
E explicou que se trata de «um conceito que não existe nos livros de finanças públicas» e que o objetivo de um orçamento não é ter as contas certas mas sim garantir o bom funcionamento dos serviços públicos na saúde, na educação, na justiça, etc.
Em sua opinião, o valor do défice nem deveria ser definido pelo Governo mas sim por uma comissão técnica.
Confesso que ao ler este texto me veio a cabeça a frase de Jorge Sampaio quando disse à então ministra das Finanças, Manuela Ferreira Leite: «Há mais vida para lá do Orçamento» (que muita gente interpretou como «Há mais vida para além do défice»).
Na altura, escrevi uma crónica a criticar asperamente Sampaio por essa afirmação.
Andava a ministra das Finanças a fazer um esforço titânico para conter a despesa pública e equilibrar o Orçamento – e vinha o próprio Presidente da República demolir esse esforço.
Dias depois recebi um cartão de Manuela Ferreira Leite, que eu não conhecia, apenas com estas palavras: «Não imagina como me soube bem o seu artigo».
Ora, hoje, passados exatamente 20 anos, não posso deixar de dizer o mesmo.
Num momento em que, depois de anos e anos de desprezo pelo equilíbrio orçamental, o PS assume a ideia das contas certas, vem Cavaco Silva dizer que isso não interessa nada e nem sabe o que isso é.
Foi um artigo profundamente infeliz.
Obviamente não vou discutir com Cavaco Silva o significado de ‘contas certas’ em teoria económica, nem isso interessa nada.
O que interessa é o que significa ‘contas certas’ para o cidadão comum, e isso todos sabemos muito bem o que é: quer dizer que o país não terá défice orçamental, não precisará de contrair empréstimos para cobrir esse défice e não acrescentará mais dívida à dívida que já existe.
É isto que o cidadão comum entende por ‘contas certas’ – e está-se nas tintas para o que isso quer ou não dizer nos livros de finanças públicas.
É claro que um orçamento pode ter as contas certas e ser péssimo; mas se não tiver as contas certas, se as receitas não cobrirem as despesas, se precisar de pedir dinheiro ao mercado e acumular mais dívida, é que é mau de certeza (a menos que o défice se traduzisse em investimentos públicos altamente rentáveis, o que nunca aconteceu).
As contas certas equivalem à estabilidade política: não são condição suficiente, mas são condição necessária.
A estabilidade por si não chega.
Pode haver estabilidade política e a governação ser má.
Mas em clima de instabilidade é que não se constrói nada.
Os exemplos abundam e não vale a pena enumerá-los.
Cavaco podia, pois, limitar-se a dizer isto.
Podia dizer que o PS tem usado o slogan ‘contas certas’ para esconder a má governação; podia enumerar os problemas que existem em vários serviços públicos como a saúde, a educação ou a habitação; podia falar do empobrecimento e da emigração jovem; mas desprezar o cumprimento do défice e dizer que nem sabe o que isso significa foi um tremendo erro.
Veio dar trunfos à esquerda irresponsável que despreza o défice público porque não pensa em pagar as dívidas.
Aliás, para consubstanciar a sua posição, Cavaco referiu um texto de um economista que apoiou o Bloco de Esquerda (Ricardo Paes Mamede), o que não deixa de ser revelador.
Cavaco Silva diz que a expressão ‘contas certas’ é «vaga e nebulosa», não sabendo bem qual o seu significado.
Pois os portugueses sabem muito bem, por experiência própria, o que são ‘contas erradas’ – e por elas já sofreram bastante na pele.
P.S. – Creio que o caso das gémeas brasileiras, que já é antigo, foi agora lançado pelo PS para se vingar de Marcelo por este ter dissolvido o Parlamento. O futuro encarregar-se-á de o confirmar (ou não).